segunda-feira, 11 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4317: Os Bu...rakos em que vivemos (8): Estância de férias Mato de Cão, junto ao Rio Geba (J. Mexia Alves)

1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil da CART 3492, (Xitole / Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15, (Mansoa).

Caro Carlos

Tendo em vista a série Os Bu... rakos em que vivemos, lembrei-me do Mato de Cão, pois então, nome oficial segundo sei, da reconhecida estância de férias junto ao Geba, e que albergou durante largos meses o Bando do 52.

Ora bem, chegava-se ao Mato Cão, (tiro-lhe o de), vindo de Bambadinca, pelo rio Geba, de sintex a remos, aportando aos restos de um antigo cais(?), onde se desembarcava.

Se me não falha a memória, logo à esquerda, e com vista para a bolanha do lado do Enxalé, ficava o complexo dos balneários, sobretudo a zona de duches.
Dado o clima ameno e soalheiro, estes duches ficavam ao ar livre, e eram constituídos por um buraco no chão, que dava acesso a um poço, cheio de uma água leitosa, e que respondia inteiramente aos melhores padrões da qualidade de águas domésticas.

Os utentes colocavam-se à volta do referido buraco e, alegremente, todos nus em franca camaradagem, (nada de más interpretações!), utilizavam uma espécie de terrina da sopa, em alumínio da tropa, presa por umas cordas, e que, trazida à superfície cheia de água, era a mesma retirada da referida terrina com umas estéticas latas de pêssego em calda, derramando depois os militares a água sobre as suas cabeças para procederem aos seus banhos de limpeza.

Para se chegar ao destacamento propriamente dito, subia-se então uma ladeira íngreme, (o burrinho da água só a conseguia subir em marcha atrás), acedendo-se então à parada à volta da qual, mais coisa menos coisa, se desenvolvia todo o complexo militar.

À esquerda, salvo o erro, ficavam os espaldões de dois morteiros 81 e respectivas instalações, dormitórios do pessoal do pelotão de morteiros.

Um pouco mais à frente e do lado direito ficava o bar e a sala de banquetes, toda forrada a chapas de zinco e assim também coberta, sendo aberta do lado da frente para o exterior, como convém a instalações de férias em climas tropicais.

A arca a pitrol refrescava as cervejas que o pessoal ia com todo o prazer consumindo. Fazia também algum gelo para dar mais alegria aos uísques emborcados, sobretudo ao fim da tarde.

Para encurtar razões, e sobretudo o texto, os quartos de dormir eram todos situados abaixo do chão, cavados na terra, para que assim não se perdesse o calor que tanta falta fazia nas longas noites de Inverno da Guiné!

Por cima, o telhado, de chapas de zinco, era sustentado normalmente em paus de cibo, que assentavam em graciosos bidões cheios de uma massa de cimento e terra.
Lembro-me de como era agradável o jogo que então fazia, quando deitado na cama, os ratos, de quando em vez, passeavam por cima do mosquiteiro, e com pancadas secas os projectava contra o tecto, voltando depois a cair sobre o mosquiteiro.

Tal jogo e divertimento não se consegue nas melhores estâncias de férias das Caraíbas!

No espaço central deste planalto, (porque o Mato Cão era um pequeno planalto), erguiam-se as tabancas do pessoal africano do Bando do 52.

Tudo estava rodeado de umas incompreensíveis valas sobretudo para o lado Sinchã Corubal, Madina, Belel, junto à qual, se a memória não me atraiçoa, estava uma guarita térrea com uma metralhadora Breda.

Ao fim da tarde, e na esplanada do bar e sala de banquetes, bebendo umas cervejas e uns uísques, o pessoal esperava ansioso o ligar da iluminação pública, o que curiosamente nunca acontecia, talvez pelo facto de não haver gerador no Mato Cão.

Bem, o Mato Cão era um verdadeiro Bur…ako, tendo apenas a vantagem, valha-nos isso, do pessoal amigo do PAIGC não ter incomodado muito durante a minha estadia.

Há aliás um post no blogue, de alguém ligado à Força Aérea que faz uma descrição do Mato Cão, por onde passou de helicóptero, que é reveladora das condições de vida (**).

Ah,… uma coisa boa… tinha um lindíssimo Pôr-do-Sol!

Abraço camarigo do
Joaquim Mexia Alves

Mando fotografias que podem escolher obviamente.
Tenho pena de não ter nunhuma dos banhos!!!
Na 2024 está este vosso amigo com os Furriéis Bonito, Santos e Varrasquinho, por ordem de alturas!!

A chega à Estância era sempre um momento vivido com prazer

Para que não fiquem dúvidas quanto à qualidade do serviço, aqui fica a vista parcial das modelares instalações

Na sala de jantar imperava o conforto e era obrigatório o uso de traje formal, como documenta a imagem

Um pequeno descanso após as lautas refeições, era sempre bem-vindo

Os momentos de diversão eram proprcionados utilizando os mais modernos equipamentos à disposição. Indispensável a companhia de animais domésticos, seleccionados entre as melhores raças da espécie.

Mais um recanto. Cada hóspede tinha direito a dois colaboradores, sempre atentos às suas necessidades

O convívio e a camaradagem são notáveis. Reparem que o camarada da direita (Fur Mil Varrasquinho), para não correr o risco de estragar a sequência de alturas, se encolhe ligeiramente

Prova de que não estamos aqui a enganar as pessoas, é este lindíssimo pôr-do-sol em Mato Cão.

Fotos: © J. Mexia Alves (2009). Direitos reservados.
Fotos editadas e legendadas pelo editor



2. Comentário de CV:

Desculpem-me, mas é mais forte do que eu. Tenho que meter a colherada.

O camarada Mexia há muito que nos presenteia com alguns mimos literários, carregados de humor e ironia. Duas coisas indispensáveis quando queremos doirar a pílula.

O período entre o 25 de Abril e o 1.º de Maio é, por excelência, a época em que, como aves migratórias, aparecem os heróis da clandestinidade, que coitados, em países subdesenvolvidos como França, Bélgica, Holanda e equiparados, para evitarem a chatice de irem fazer a guerra colonial, sofreram as mais violentas agruras, disparando perigosas canções revolucionárias, enquanto figurões, como o Mexia Alves, se deleitavam em luxuosos aquartelamentos militares da Guiné, Angola e Moçambique, onde a falta de conforto era coisa impensável.

No caso particular, Burako de Mato de Cão (***), fala quem sabe, pois as Termas de Monte Real foram fundadas pela família deste nosso camarada.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Maio > Guiné 63/74 - P4288: Espelho meu, diz-me quem sou eu (1): Joaquim Mexia Alves

Vd. último poste da série de 27 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4252: Os Bu... rakos em que vivemos (7): Destacamento de Rio Caium (Luís Borrega)

(**) Possivelmente o António Martins de Matos... Vd. poste de 11 de Março de 2009 >Guiné 63/74 - P4010: FAP (15): Correio com antenas... (António Martins de Matos, ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanca, 1972/74)

... Mas não é. O Joaquim já descobriu qual é, é um poste, mais antigo, de 2 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1912: Um buraco chamado Mato Cão (Nuno Almeida, ex-mecânico de heli / Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 52)

Aqui vai um excerto: é uma história, bonita, de solidariedade entre a gente do ar e da terra:

(...) Mensagem de Nuno Almeida, ex-Esp MMA (Canibais), DFA Guiné, que vive em Lisboa (foto à esquerda, cortesia do blogue de Victor Barata, Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74), a quem agradeço, mais uma vez´, este depoimento, mas não volto a convidar para aderir à nossa Tabanca Grande, porque ele já cá está, de pleno direito... (LG):

Camarada Mexia Alves:

Estava a ler o blogue do Luís Graça e vi a sua referência a Mato Cão, o que me fez recordar um episódio, não sei se passado, também, consigo e que passo a relatar:

Fui mecânico de helicópteros da FAP e cumpri o ano 1972 na Guiné. Um dia, creio que no Verão de 1972, fui com um heli fazer o que, creio, se chamava o Comando de Sector (levar o [Ten-] Coronel de Bambadinca a visitar os aquartelamentos).

Fomos visitando vários locais e, quando sinto o piloto fazer manobra para proceder a uma aterragem, fico em estado de choque, pois não se vislumbrava nada no terreno que indicasse haver ali alguém ou algo minimamente capaz de albergar seres humanos. Inicialmente temi que o piloto tivesse detectado alguma falha no aparelho e fosse aterrar para que eu verificasse a condição do mesmo e poder continuar a voar. Mas quando aterramos (num espaço de mato desbravado e completamente inóspito), e a intensa poeira, levantada pelas pás do heli, começa a assentar, vejo surgirem, de buracos cavados no chão, homens em estado de higiene e aspecto físico degradantes (pelo menos aos olhos dum militar que dormia em Bissau e tinha água corrente para se lavar a seu bel prazer).

Chocou-me, e ao piloto também, a situação sub-humana em que esses homens estavam a viver.

A sua reacção, ao verem o [Ten-] Coronel, foi a de parecer que o queriam linchar, tal era a sua revolta pelo que estavam a ser obrigados a suportar.

Quando regressámos a Bambadinca, o piloto foi ao bar e comprou dois pacotes de tabaco Marlboro, escreveu neles algo que creio foi: "com a amizade da Força Aérea", e quando passámos à vertical de Mato Cão largámos esses pacotes, querendo demonstrar a nossa solidariedade para com quem tão maltratado estava a ser.

Mais tarde, em [25 de] Novembro de 1972, fui ferido [com gravidade], ao proceder a uma evacuação, na mata de Choquemone, em Bula, e aí melhor me apercebi das privações e sobressaltos que, a todo o momento, uma geração de jovens, na casa dos 20 anos, foi obrigada a suportar, adquirindo mazelas físicas e, principalmente, psicológicas, que ainda hoje perduram, e que muitos teimam em não aceitar que existem e estão latentes no nosso dia-a-dia.

Abraços, do ex-1º cabo FAP Nuno Almeida (o Poeta)
(...)

(***) O sítio, paradisíaco, do Mato Cão era tão popular na época que no nosso blogue há mais de três dezenas de referências com este descritor: Vd. marcadores ou palavras-chave na coluna do lado esquerdo...

Esta estância (turística) também era muito frequentada por outros camaradas nossos como o Beja Santos (Pel Caç Nat 52, 1968/70), Luís Graça e Humberto Reis (CCAÇ 12, 1969/71), Jorge Cabral (Pel Caç Nat 63, 1969/1)... Mas nesse tempo não ainda havia as luxuosas infra-estrtuturas hoteleiras aqui tão bem descritas pelo J. Mexia Alves (devem ter construídas e inauguradas depois, em 1972)... O turistame fazia lá campismo selvagem... Bons tempos! Nessa altura o Rio Geba era muito concorrido, até se faziam comboios entre o Xime e Bambadinca e até mesmo Bafatá (no chamado Geba Estreito)... Dizem-nos que o rio agora está assoreado, por aquelas bandas... (LG)

5 comentários:

Anónimo disse...

Camaaradas,
Este CV é muito "venenoso" e "oportunista". Então as aves migratórias são ou não as que não têem poiso certo, sempre à procura dos melhores lugares? Se cantavam nas agruras clandestinas? Naturalmente, porque faziam do que gostavam. O problema foi o cheque em branco que lhes passaram, de que ainda se fartam, os coitadinhos, agora a coberto de uma democracia insípida e descontrolada, que não tem controle, que inventou as impunidades, e as diferenças, na igualdade dos cidadãos perante a Lei. Problema sério, que não fica mal abordar aqui, onde o valor da Honra deve estribar a nossa relação.
Abraços fraternos
J.Dinis

Joaquim Mexia Alves disse...

Já agora camarigos editores da nossa Tabanca, o post que refiro da Força Aérea é:

Guiné 63/74 - P1912: Um buraco chamado Mato Cão (Nuno Almeida, ex-mecânico de heli / Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 52)

Já o descobri!!!

Abraço camarigo

paulo santiago disse...

Não conheci o Mato Cão com as
"óptimas"instalações de que fala o
Mexia Alves.Fui lá um dia de Sintex
com motor,para lá com a descida da
maré,para cá com a subida.Foi para
aí em Dezembro/71,tinha sido
aquela "estância de férias"ocupada
pouco tempo antes,e no barco de
"recreio"ía,além do soldado
barqueiro,oTen-Cor PolidoroMonteiro
comandante do BART de Bambadinca,
o AlfMil de Armas Pesadas e o AlfMi
Médico Vilar.
As instalações na altura estavam
bem implantadas,com todo o respeito
pelo ambiemte,nada de agressões
ambientais.Dispondo-se em semi-
-circulo,havia uns 40 bu...rakos
com as dimensões de um colchão,em
cada canto um pau(1m)ao alto para
suster a rede mosquiteira.Depois
havia a cozinha,a céu aberto,que
consistia num estrado de ferro,sob
o qual se acendia a fogueira.Era
um "camping"funcional e barato.
Fogachal?...muito.No Domingo a
seguir à visita"brincaram"à guerra
durante 1hora...ouvia-se bem em
Bambadinca,e um dos atacantes ficou
lá com a pistola à cinta.
Acrescento,o Ten-Cor Polidoro ficou
lá naquele"campo de férias"não
regressou,ao fim da tarde,connosco
à sede do batalhão.Tinha "tomates"
O Ten-Cor que foi lá,em 72,de heli,
deverá ter sido o Tiago Martins,
comandante do Mexia.
Era o PELCAÇNAT 63,comandado pelo
AlfMil Manuel Coelho,que lá se
encontrava quando visitei tão
parasídiaco local.
Paulo Santiago

Anónimo disse...

Caro Mexia Alves
Compreendo bem a tua ironia e calculo como seria aquela m....
No Mato Cão que conheci das viagens de Enxalé a Missirá para reabastecer ou a Bambadinca, só paravamos por azar, como foi o caso de andarmos a recolher, provavelmente onde mais tarde terias o teu “Burako”, os restos do corpo pulverizado de um soldado da 1439 que ia ao lado do pneu onde rebentou uma mina a/c (está sepultado em Bambadinca) e a procurar a arma que nunca encontramos, concluindo-se que tinha voado para o rio.
Abração e até à Ortigosa
Henrique Matos

Antonio Graça de Abreu disse...

Mais um texto notável, agora do Joaquim Mexia Alves. Tão bem escrito, Mato de Cão tão bem descrito!
E toda a ironia a envolver as nossas vidas numa terra quente, fascinante e infeliz, para onde nos atiraram os sortilégios da História, num extremado tempo de existir, jovens, quase puros.
Sofremos muito, fizémo-nos homens naqueles campings despudoradamente selvagens.
Passaram-se muitos anos e hoje, homens mais do que feitos, somos irmãos.
Um abraço,
António Graça de Abreu