Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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sexta-feira, 19 de dezembro de 2025
Guiné 61/74 - P27546: Parabéns a você (2444): Humberto Reis, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) e João Melo, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAV 8351/72 (Aldeia Formosa e Cumbijã, 1972/74)
Nota do editor
Último post da série de 15 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27530: Parabéns a você (2443): António Sousa de Castro, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista da CART 3494/BART 3873 (Xime e Mansambo, 1971/74)
quarta-feira, 17 de dezembro de 2025
Guiné 61/74 - P27539: Humor de caserna (228): O Natal de Missirá que teve bacalhau ensaboado e, como prenda, o Menino... Braima (Abraão, em fula) (Jorge Cabral, 1944-2021)
– Caraças!, o bacalhau sabe a sabão! – disse o Branquinho.
E eu para o cozinheiro Teixeirinha:
– Quanto tempo esteve de molho?
– Esqueci-me, meu Alferes, mas o Pechincha, disse que, na terra dele, costumavam lavá-lo com sabão e que ficava bom.
– Porra, Teixeirinha! Se não fosse Natal, estavas lixado! Assim, vais à cantina buscar cervejas para a malta toda e pagas a meias com o Pechincha…
Batatas, umas latas de conserva e cerveja morna, pois a arca frigorífica tinha explodido na semana anterior, foi a nossa ceia de Natal.
Meia hora depois apareceu o soldado Alfa Baldé aos gritos:
– Alfero! Alfero! Já nasceu! Já nasceu É macho! É macho!
– Eu não te tinha dito?!
A alegria do Alfa era legítima. Já tinha três filhas e duas mulheres, mas há uns meses fora à sua Tabanca buscar outra mulher, herdada do irmão que havia morrido.
– Vou ver o teu filho, Alfa! Não lhe vais chamar Alfero Cabral. Vai ser Jesus!
– Desculpa, Alfero! Tem que ser Braima!
E fui com o Branquinho e com o Amaral. Só lá estavam mulheres e o Bebé, todo enfaixado. Logo que entrámos, o Amaral, que estava um pouco tocado, exclamou:
– Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!
Vai fazer 46 anos! Dos Três Reis Magos, um morreu e os outros dois estão velhos…Como a Maimuna, já parecem "Antepassados"… (*)
Jorge Cabral
Lisboa, 7/12/2016 (Revisão / fixação de texto, título: LG)
Foto: © António Branquinho / Jorge Cabral (2007). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
O texto (e o contexto) partilhado é uma memória vívida e comovente de um Natal passado em Missirá, no ano de 1970, durante a guerra colonial na Guiné. É uma narrativa curtíssima, mas rica em detalhes, humor e humanidade. Em dois parágrafos e meia dúzia de diálogos , o autor cria uma atmosfera natalíica, de densidade humana e literária raríssima.
O nosso amigo e camarada Jorge Cabral, falecido precocemente, é escritor de primeira água. N o futuro merecerá figurar em qualquer antologia do conto sobre a temática da guerra colonial.
Cenário: a ceia de Natal aconteceu numa mesa "engordurada, sem toalha", no destacamento de Missirá. O narrador (o alferes) e os seus camaradas, metropolitanos, "tugas" (Branquinho, Amaral, Teixeirinha) reuniram-se para o que deveria ser um jantar especial. No Natal, em Portugal, come-se bacalhau, com batatas e "pencas" (no Norte). É uma data festiva. A maior do ano.
Incidente: o prato principal era bacalhau com batatas (supremo luxo, naquelas paragens). No entanto, quando começaram a comer, o Branquinho notou que o bacalhau "sabia a sabão".
Explicação: o cozinheiro, Teixeirinha, confessou que se tinha esquecido do tempo de demolha e que o soldado Pechincha lhe dissera que, na terra dele, costumavam "lavá-lo com sabão" para ficar bom.
Punição: o Alferes, numa mistura de frustração e espírito natalício, mandou o Teixeirinha, como castigo, ir à cantina buscar cervejas para todos, a pagar a meias com o Pechincha.
Ceia final: a ceia resumiu-se a batatas, latas de conserva e cerveja morna (pois o frigorífico tinha avariado na semana anterior).
Notícia: meia hora após a ceia, o soldado Alfa Baldé, que já tinha três filhas e duas mulheres, e recentemente trouxera uma nova esposa, adotada por levirato (**), mais a bisavó idosa, Maimuna, irrompe, a gritar de alegria: "Alfero! Alfero! Já nasceu! Já nasceu! É macho! É macho!"
Batismo proposto: o Alferes, num gesto de afeto e ironia, sugeriu que o bebé se chamasse Jesus, mas o Alfa Baldé, fula e muçulmano, já tinha nome para a criança: seria Braima (na língua fula, é uma variação do nome árabe Ibrahim, o equivalente a Abraão em português).
Visita: o "alfero Cabral", mais os furriéis Branquinho e Amaral, foram ver o recém-nascido.
Momento mágico: ao entrarem, o Amaral, que estava "um pouco tocado" (pela cerveja, mesmo "choca"), proclamou: "Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!"
Conclusão: o narrador reflete sobre o tempo que passou (46 anos, de 1970 a 2016) e sobre a inevitabilidade da velhice.
(iv) A memória selectiva e o Natal como exceção:
O texto começa com uma afirmação fundamental: “Poucos são os Natais de que me lembro.”
A memória aqui não é cronológica, é afetiva. Entre dezenas de anos e vários Natais, só um se fixa, o de Missirá, 1970. O Natal surge como ritual deslocado, arrancado do seu cenário simbólico europeu e transplantado para o mato guineense. É um Natal “possível”, não ideal.
(v) O bacalhau: símbolo nacional convertido em farsa
O bacalhau, pilar do Natal português, obrigatório à mesa nesse dia mágico, aparece ensaboado, literalmente contaminado pelo erro, pela improvisação, pelo desenrascanço, pela santa ignorância ( bem-intencionada, apesar de tudo).
O episódio é magistral porque:
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subverte o sagrado produto gastronómico nacional (que é o bacalhau);
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introduz o humor de caserna (o castigo não é a "prisão", é cerveja, paga a meias pelo desastrado cozinheiro Teixeirinhz e o "chico-esperto" do soldado Pechincha):
-
revela a cadeia de mal-entendidos culturais (o Pechincha, a tradição “da terra dele”, a de ensaboiar o bacalhau em vez de o demolhar em várias águas e vários dias).
Aqui, o riso nasce do choque entre vários mundos, mas nunca há desprezo, humilhação, apenas risota, humanidade.
(vi) A autoridade do “Alfero”: justa, teatral, cúmplice
O narrador constrói a figura do alferes Cabral como:
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autoridade funcional;
-
figura quase teatral:
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mediador cultural.
O castigo é simbólico e coletivo. Não humilha, integra. Isto revela o comando humanizado, típico de quem percebe que naquela guerra ninguém está “inteiro” e tem "toda a razão".
(vii) O nascimento: epifania no meio do caos
O nascimento do filho do soldado guineense Alfa Baldé é o centro simbólico do conto. É um Natal sem presépio formal, sem luzes, sem enfeites, sem artifícios;
-
um parto real, no mato, natural, sem parteira (como terá sido o de Jesus na gruta de Belém);
-
um menino que nasce enquanto outros matam ou morrem;
um menino que tem de ser "Braima"... e não o "Jesus" dos cristãos ou o "Alfero Cabral", comandante daquela tropa matrapilha.
A figura da Maimuna / “Antepassada” é absolutamente extraordinária:
-
guardiã do tempo;
-
elo entre gerações;
-
quase uma personagem mítica
O sorriso com um único dente é um recurso literário de enorme economia e força.
(viii) Os Três Reis Magos: embriaguez, teatro e revelação
Quando o Amaral diz: “Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!”
o microconto atinge o seu auge. Aqui acontece tudo ao mesmo tempo:
-
o Natal cristão é reencenado de forma profana e ecuménica;
Jesus é um menino pretinho:
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a guerra transforma-se em farsa absurda;
-
os soldados são atores improvisados num palco de todo improvável.
É o teatro do absurdo em plena guerra, com a gente gosta de dizer das "estórias cabralianas" (de que o "alfero Cabral" publicou, no nosso blogue, mais de 9 dezenas).
(ix) O tempo final: melancolia sem sentimentalismo
O último parágrafo é devastador na sua contenção: “Dos Três Reis Magos, um morreu e os outros dois estão velhos…”. Aliás, cinco anos depois, morreria o narrador, e em 2023 o Branquinho. O Teixeirinha e o Pechincha não sabemos se são nomes reais.
Sem lamento, sem retórica. Apenas o tempo. A guerra passou, mas deixou corpos gastos e memórias resistentes, como a de todos nós.
A comparação final com a Maimuna fecha o círculo: todos acabamos “antepassados”. Todos seremos amanhã antepassados, quando os nossos filhos e netos se lembrarem de nós, se um dia forem à Guiné, em viagem de turismo: "Os nossos antepassados, que andaram por estes matos, rios e bolanhas..."
(x) Conclusão
Este microconto é um ato de resistência pela memória, um riso contra a desumanização, uma homenagem implícita aos soldados anónimos que combateram naquela guerra absurda, um Natal sem redenção, mas com dignidade e humanidade.
O Jorge Cabral escrevia como alguém queria sobreviver contando histórias. e isso é talvez a forma mais honesta de literatura de guerra. N a realidade, eu sempre o oconheci como o mais "paisano" dos combatentes. Ele que era filho de militares e foi até "menino da Luz", seguramente contra a sua vontade.

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Notas do editor LG:
(*) Último poste da série > 11 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27518: Humor de caserna (227): Ainda o Pechincha, que o Hélder Sousa comnheceu em Bissaiu... "P*rra, que este gajo ainda está mais apanhado do que eu!"
(**) Levirato: o costume, observado entre alguns povos, nomeadamente semitas, que obriga um homem a casar-se com a viúva de seu irmão quando este não deixa descendência masculina, sendo que o filho deste casamento é considerado descendente do morto. Este costume é mencionado no Antigo Testamento como uma das leis de Moisés. O vocábulo deriva da palavra "levir", que em latim significa "cunhado". Fonte: Wikipedia.sexta-feira, 12 de dezembro de 2025
Guiné 61/74 - P27522: Em bom português nos entendemos (28): B'ráassa, Brasa, Brassa ou Birassu (como os balantas se autodenominam) ( Cherno Baldé, Bissau)
Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > Nhabijões >2º semestre de 1970 > Luta balanta, entre dois "blufos", presenciada por militares destacados para protecção do reordenamento (à esquerda, o fur mil Henriques, da CCAÇ 12, de calções, tronco nu e óculos escuros, hoje editor deste blogue; na altura, devia etsar a comandar um pelotão da CCS/BART 2917 que guarnecia o destacamento: era tudo "básicos e gajos com porradas"..)... Ao fundo, a nova tabanca, reordenada...
Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-Fur Mil At Inf, Op Esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Capa do livro de Cammilleri, Salvatore - A identidade cultural do povo balanta. Lisboa: Edições Colibri; Edições FASPEBI, 2010, 110 pp., ilustrado. Tradução do italiano: Lino Bicari (1935-2024) e Maria Fernanda Dâmaso.
Este termo é, na verdade, a adaptação para a escrita de como eles pronunciam a sua própria designação ("B'ráassa") e que se refere à forma como eles se veem como "o povo" ou "os homens".
No entanto, é comum encontrar as três variações (B'ráassa, Brasa e Brassa) na literatura, incluindo a portuguesa:
Brassa é a forma mais aceite e precisa (em portugão-padrão);
Balanta é o termo mais comum e oficialmente reconhecido em português para este grupo étnico; trata-se de um "exónimo".
Portanto, em português, o termo comum para o grupo é Balanta, mas se a intenção for referir-se à autodenominação do povo, Brassa é a escolha mais correta. Mas nenhum dos termos está grafado nos nossos dicionários, seja em Portugal (Priberam, por exemplo) ou no Brasil (Houaiss).
O etnógrafo e missionário italiano Salvatore Cammilleri usa o termo "brasa" no seu livro "A identidade cultural do povo balanta".
M'bana Ntchigana, autor do blogue "Intelectuais Balantas da Diáspora", utiliza de preferência o etnónimo "B'ráassa" ou até "Braza". Ele vise no Brasil
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Cherno Baldé |
2. Vale a pena, entretatanto, trancrever aqui um comentário do nosso amigo Cherno Baldé, colaborador permanente do nosso blogue para as questões etnolinguísticas:
Em complemento junto um pequeno extracto de uma passagem da monografia que estou a preparar há alguns anos, mas que ainda não conclui, citando o nosso amigo Armando Tavares, historiador portugues e colaborador do Blogue, e um outro conhecido investigador africano e especialista do império de Gabu, natural da Guiné-Conacro, Djibril Tamsir Niane, falecido no ano passado.
"Segundo o historiador Armando Tavares, durante muito tempo, na cartografia portuguesa, não existia o topónimo (Fajonquito) e em seu lugar a zona era conhecida como sendo Gam-Sonco ou Cansonco. Na nossa opinião, a designação desta localidade por Gam-Sonco terá a haver com a predomínio dos povos de origem autóctone Banhum, Jola, Pajadinca e de diferentes outras etnias, muito poderosas que estariam instaladas nessa região (ver Djibril Tamsir Niane) na altura da invasão e da conquista mandinga desta zona e que estaria ligado a instalação da Província do Birassu/Brassu (Brassa, dos balantas) assim como outras províncias vizinhas, tendo como capital a localidade de Berécolom ou Bércolon ou então seriam duas entidades diferentes (Gam-sonco e Sancolla) representando o mesmo espaço territorial ou espaços diferentes."
Portanto, a ser verdade, B'raassa ou Brassa, antes de ser a designação de uma etnia, seria um espaço geográfico onde os balantas e outros grupos étnicos conviviam desde os tempos do império mandinga de Gabu aos tempos presentes, com as naturais mudanças que a dinâmica da história dos povos se encarregou de fazer ao longo dos dois, três últimos séculos.
Gostaria de ouvir a opinião do meu compatriota M'bana N'tchigna sobre este assunto em especial e que, eventualmente, poderia desvendar outros mistérios menos conhecidos sobre os povos da Guiné no período anterior à colonização europeia em geral e portuguesa em particular. (**)
Assim, toda a zona norte da Guiné e parte da região de Casamança, no Senegal, se encontravam dentro desta antiga província, com epicentro no corredor de Farim/Mansoa que seria a capital provincial e donde os Brassas/Balantas sairam para depois se expandirem mais ao sul do pa~is, até às regiões de Quínara e Tombali.
Partindo deste ponto de vista analítico, na Guiné, os Balantas não seriam os únicos "Birassu" ou "Brassa", pois também entre os fulas existem grupos, pouco conhecidos ou estudados, mas que seriam desta origem histórica, os chamados fulas Birassunka Braçunka (em mandinga: Fulas de Biraçu), com especificidades próprias da língua e cultura ainda hoje existentes, aliás muito parecidas com as dos seus históricos vizinhos mandingas e balantas do norte.
Em resumo, quando um Balanta ou Djola ou Fula se identifica a si mesmo como "Brassa" ou "Birassu", isto queria dizer que se identificava com as suas raízes ou origens geográficas, em estreita ligação ao território/reino com o qual, para todos os efeitos, se identifica em relação aos outros.
Não esquecer que em África, os processos de formação das identidades com base em determinados territórios ou estados-nação, iniciados no periodo pré-colonial, foram interrompidos e violentamente substituídos por relações comerciais e outras, baseadas no tráfico de armas e de seres humanos impostas de fora para dentro ou vice-versa, e que nenhum povo africano, para poder sobreviver, podia ignorar ou dispensar em entre meados do séc. XV e fins do séc. XIX.
19 de outubro de 2018 às 11:55 (***)
quinta-feira, 11 de dezembro de 2025
Guiné 61/74 - P27516: Humor de caserna (225): O ganda Pechincha (ex-fur mil op esp, CART 11, Nova Lamego, 1969/70), que eu conheci em Bissau quando cheguei, em novembro de 1970 (Hélder Sousa)

- à esquerda, sentados: (1) Canatário (armas pesadas) | (2) Cândido Cunha;
- em pé: (3) Silva (trms) | (4) Abílio Duarte: | (5) Pinto;
- atrás: (6) Manuel Macias | (7) Pechincha (operações especiais);
- ao alto: (8) Sousa |
- ao centro: (9) 1º. srgt Ferreira Jr. (já falecido) | (10) Renato Monteiro (1946-2021) | (11) Ferreira (vagomestre); (12) Edmond (enfermeiro) | (13) Pais de Sousa (mecânico);
- sentado, à direita: (14) Valdemar Queiroz (1945 - 2025)
Para completar a lista da classe de sargentos da CART 2479 (futura CART 11), faltava: o 2º. srgt Almeida (o velho Lacrau) (já falecido); o fur mil Vera Cruz; e o fur mil Aurélio Duarte (também já falecido).
Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Moita > Praia do Rosário > 13 de maio de 2023 > CART 2479 / CART 11, "Os Lacraus", 1969/70 > Convívio > Um grupo de resistentes...
- o primeiro da esquerda para a direita, na primeira fila (sentados): Abílio Duarte, o Pais de Sousa, o Manuel Macias, o Alf Martins e um camarada condutor, não ifentificado;
- de pé, e também da esquerda para a direita: o Pechincha, o Silva, o Reina, o Saraiva, o Artur Dias e o Cândido Cunha.
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Hélder Sousa |
(...) Cheguei [à Guiné], a 9 de novembro [de 1970], quase na véspera do S. Martinho, e o desembarque deu-se um dia antes de todos aqueles que foram no [T/T] "Carvalho Araújo".
Fiquei alojado num quarto das instalações de sargentos em Santa Luzia, em Bissau, num espaço cedido para colocar uma cama articulada facultada pelos meus amigos, colegas e conterrâneos vilafranquenses, furriéis José Augusto Gonçalves (o Bate-Orelhas, como carinhosamente lhe chamávamos
Digo isto porque tive com ele algumas conversas, muito interessantes e educativas, que me elucidaram bastante sobre a situação que se vivia e como ele pensava que se iria desenvolver, o que, no essencial, não divergiam muito do que eu pensava.
Mas também não deixava a sua fama por mãos alheias e logo na noite de 11 para 12 de [novembro], fui testemunha privilegiada duma dessas situações.
Nessa noite comemorava-se o S. Martinho. Eu fui portador para os amigos vilafranquenses de alguns quilos de castanhas e de um garrafão de água-pé (por sinal, bem forte!), além de outros mimos.
Com um bidão, em frente às camaratas onde os quartos se encontravam, fez-se o assador e então vá de comer chouriços assados, salsichas e castanhas, tudo bem regado com a dita água-pé e outras bebidas estranhas, em grandes misturadas (cerveja, uísque, coca-cola, etc.), tudo a animar uma simulação de uma emissão de rádio protagonizada pelos camaradas das Transmissões com jeito para a coisa, como por exemplo o furriel Roque.
Com o avançar das horas era tempo de serenar, descansar os corpos e retomar forças para o dia seguinte.
Ora o nosso bom Pechincha avisou solenemente os meninos que ou paravam imediatamente a graçola ou tinham que se haver com ele à sua maneira.
Mas também como sempre sucede, há sempre alguém que procura forçar a sorte e um deles, que também me disseram que estava apanhado (afinal, quem é que não estava?, acho que dependia do grau) resolveu irromper no nosso quarto com uma panela na cabeça e a bater com duas tampas como se fossem pratos duma banda de música.
Entrou, com ar de quem estava muito contente da vida e satisfeito por desafiar as ordens, mas o que eu vi de imediato foi o nosso amigo Pechincha, que estava estendido sobre a sua cama e que era logo a primeira à entrada, estender o braço sobre a cabeceira da cama, agarrar numa espécie de um dos dois machados nativos que estavam lá a enfeitar e, sem mais explicações nem argumentos, arremessou-o para o intruso, acertando-o na panela que estava na cabeça, deixando-o com o ar mais aparvalhado de perplexidade que vi até hoje, [e abandonando] o quarto a tremer e a balbuciar: "este gajo está de facto mais apanhado do que eu!".
Uma outra vez, estava com o Pechincha na zona da baixa de Bissau, passámos junto ao Taufik Saad que, naquela ocasião, tinha tido a boa iniciativa de efectuar uma promoção de um artigo qualquer que já não me lembro, mas a infeliz ideia de dizer que era "uma autêntica pechincha"...
Estão a ver a cena?
E não é que foi mesmo?!
Era assim o Pechincha! Para muitos foi mais uma demonstração do seu apanhanço, mas eu, que estava com ele, e éramos só nós os dois naquela ocasião, percebi muito bem que foi tudo encenado...
(Revisão e fixação de texto, parênteses retos, título : LG)
_____________
Notas do editor LG:
O Abílio Duarte acrescentou mais os seguintes elementos, para esclarecimento do Hélder de Sousa e nosso:
(i) o Pechincha era Furriel de Operações Especiais, da Escola de Lamego;
(ii) eram os dois do mesmo pelotão, desde Penafiel até Nova Lamego [CART 2479 / CART 11];
(iii) (...) "só que o malandro era desenhador, e quando chegámos ao Gabú, deram-nos o Quartel de Baixo, Como era conhecido na altura. Como aquilo estava abandonado, e não tinha muitas condições, o nosso Capitão desafiou-o a fazer uns desenhos para as casas de banho e outras, para quando fosse a Bissau ir ter com o padrinho dele, que era o cor Robin de Andrade (****), para arranjar uma cunha e ter materiais de construção para nós fazermos as obras.
"O que aconteceu foi que os desenhos eram tão bons que o Pechincha foi para Bissau, e nunca mais voltou. Mas os materiais vieram (...).
(****) O coronel João Paulo Robin de Andrade: devia ser mais do que capitão, na altura, na Guiné (c. 1969/70); talvez fosse da arma de cavalaria; devia já ser oficial superior e estar colocado no QG; depois do 25 de Abril (a que esteve ligado), foi chefe do gabinete militar do general António Spínola (15 de maio / 30 de setembro de 1974). Nasceu em Oeiras, em 1923. Em novembro de 1975 passou à reserva, aos 52 anos.
segunda-feira, 24 de novembro de 2025
Guiné 61/74 - P27457: Humor de caserna (223): Contado ninguém acredita: o fur mil Pina que ficou com o dedo mindinho entalado no tapa-chamas da G3 (Mário Beja Santos, cmdt do Pel Caç Nat 52, 1968/70)
Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Bambadinca > Coamndo e CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > c. 1970 > David Payne, o médico referido nesta história,é o mais alto, no meio, de óculos, na na segunda, de pé. O Beja Santos é da ponta do çlado esquerdo, seguido do major Cunha Ribeiro (2º comandante do BCAÇ 2852); à esquerda do m+edico, o cap inf Carlos Alberto Maqcahdo de Brito (hoje cor ref), comandante da CCAÇ 12, e ainda o alf mil at int Abel Maria Rodrigues, também da CCAÇ 12.
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Tapa-chamas da G3; um buraco onde nunca se devia meter o deddo |
O David [Payne, alf mil médico, já falecido] ficou embasbacado, o dedo ia inchando, todos os esforços para lhe retirar o dedo resultavam infrutíferos. Em dado momento, o David, com a testa perlada de suor, chegou a admitir a hipótese de lhe cortar o dedo e aí o Pina gritou que não, preferia ter todas as dores necessárias até se encontrar uma solução para ficar com o dedo inteiro.
(*) Vd. poste de 4 de janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2407: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (14): O falso descanso em Bambadinca
(**) Último poste da série : 23 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27454: Humor de caserna (222): A chico-espertice às vezes também dava... m*rda (José António Sousa, 1949-2025 / António Carvalho)
terça-feira, 4 de novembro de 2025
Guiné 61/74 - P27384: A nossa guerra... a petromax (1): Quem é que ainda se lembra dos candeiros a petróleo ? Em 1964, em Guileje, Gadamael, Ganturé, Sangonhá, Cacoca, Cameconde... Em 1967/68, em Ponate, Banjara, Cantacunda, Sare Banda, Ponta do Inglês...
Foto (e legenda): © Jorge Araújo (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Fonte: Anúncio do OLX |
O de 150 velas dava para 10 horas (1 litro de querosene / petróloe). Aplicaçáo: Uso doméstico, iluminação de tenda pequena ou posto de sentinela;
O de 250 velas tinha um autonomia de 7 horas, dava para iluminar um secção do perímetro de
arame farpado, uma cozinha de campanha, um ficina.
O de 350 velas (5 horas de autonomia) iluminava um de pátio, um pequeno acampamento, uma enfermaria.
O de 500 velas (4 horas de autonomia) iluminava superfícies maiores: quartéis, destacamentos, missões religiosas, médios / grandes acampamentos. Um candeeiro Petromax de 500 CP (ou velas) é comparável, em brilho, a quatro lâmpadas incandescentes de 100 W, mas concentrando a luz num feixe mais intenso.
Como de costume segue-se a capinagem, a vedação de arame farpado em volta da tabanca, que seria agora um quartel, a colocação de cavaletes para instalação dos candeeiros a petróleo (petromaxes), a que alguns “valentes” iam dar pressão de ar durante a noite, sempre que necessário." (*)
O alferes morto foi o Carlos Alberto Trindade Peixoto. O outro morto foi o Furriel Raul Canadas Ferreira. Mas as circunstâncias da morte deles não estão devidamente relatadas.
Foi assim: este, como todos os destacamentos da CART 1690, não tinha luz eléctrica, nem mesmo um miserável gerador. Eles estavam os dois numa tenda a jogar às cartas, com um petromax aceso (depreende-se, aliás, do relatório as péssimas condições de instalação). Para os guerrilheiros foi muito simples, foi só apontar o RPG2. (...)
Banjara, 1967 (****)
Alguns dos artigos requisitados (excerto):
- fósforos,
- palha de aço,
- camisas para petromax de 150 velas.
- torcida e vidro (?) para o frigorífico (...),
- pregos para pregar as chapas,
- aerogramas,
- selos,
- 12 esferográficas (uma vermelha e as outras azuis),
- bloco de cartas,
- Omo e sabão,
- uma garrafa de whisky,
- Sumol ou outros sumos [...]
Foto: © Alfredo Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
____________
(*) Vd, poste de 6 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19752: Notas de leitura (1175): A Minha Guerra a Petróleo, por António José Pereira da Costa, Chiado Books, 2019 (Mário Beja Santos)
(**) Vd. poste de 27 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27355: O início da guerra (Armando Fonseca, ex-sold cond, Pel Rec Fox 42, mai 62 / jul 64) - Parte V: Depois de Ganturé, Sangonhá (maio / junho de 1964)
domingo, 2 de novembro de 2025
Guiné 61/74 - P27376: Humor de caserna (219): Heróis de quatro patas que bem mereciam uma cruz de guerra: Bambadica, 1963, o Lobo e a sua matilha de cães rafeiros (Alberto Nascimento, ex-sold cond auto, CCAÇ 83, 1961/63)
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| O boxer Toby, um cão que foi um bravo combatente, mais do que mascote. Foto do João Sacôto. |
Alguém apareceu um dia no quartel, com dois cachorros recém desmamados, que foram imediatamente adotados e batizados com os nomes de Gorco, ele, e Djiu, ela.
Adaptaram-se facilmente ao hotel e, quando começaram a vadiar pelas imediações, devem ter feito grande publicidade porque passado pouco tempo veio outro e mais outro e mais uns quantos, até perto da dezena de rafeiros que, agora bem nutridos, não mostravam vontade nenhuma de voltar à antiga vida de privações e maus tratos.
Mais tarde, o tenente Castro, comandante do destacamento, juntou à matilha um boxer, o Lobo que, pelo seu pedigree, foi aceite como comandante da tropa canina, que passou a segui-lo para todo o lado.
Embora alguns dos rafeiros se desenfiassem durante algumas horas de dia, a hora das refeições e a pernoita eram sagradas e, após a última refeição, esparramavam-se num espaço entre as duas construções que constituíam o quartel, formando uma roda de cães no meio da qual, não sei se por estratégia, se acomodava o Lobo.
Uma noite, estava eu num posto guarda a trocar umas palavras com o sargento Leote Mendes, quando o Lobo se levantou subitamente e saiu a grande velocidade, seguido com grande algazarra pelo resto da matilha.
Ficámos preocupados a pensar que a reacção dos cães se devia à passagem de algum viajante, já que era hábito quando a distância a percorrer era grande, fazerem os percursos de noite a pé enquanto mastigavam noz de cola e mais preocupados ficámos quando vimos que o Lobo trazia na boca um cantil de plástico cheio de leite.
Depois da operação de Samba Silate (****), alguns prisioneiros disseram que nessa noite o quartel estava já cercado e seria atacado, não fora o alarme dado pelos cães, o que os levou a pensar que factor surpresa já não surtiria efeito.
Felizmente para nós, enganaram-se. Não sei que armas traziam mas a nossa surpresa ia com certeza ser grande. Nunca se soube com certeza absoluta, eu pelo menos não soube, com que apoios esta operação contava do exterior e do interior do quartel, mas um dia depois, um cabo indígena de Bafatá que reforçava o nosso destacamento, desertou.
Depois deste episódio, que recordamos sempre nos nossos encontros anuais, a matilha começou a desaparecer.
Todos os camaradas que estavam na altura em Bambadinca sabem, julgo eu, o que ficaram a dever àqueles animais que, por acção indirecta, acabaram por ser as únicas vítimas, pelo seu natural instinto de guardiães e defensores de um território, que também era seu.
Alberto Nascimento
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Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 1 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27374: O segredo de... (52): Luís Graça & Humberto Reis (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, mai 69 /mar 71): Op Noite das Facas Longas, em que nem o pobre do "Chichas", a nossa mascote, escapou do tiro na nuca...
(**) Vd. poste de 19 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19507: Recortes de imprensa (102): "Diário de Notícias", 3/2/1966: o cão da CCAÇ 617, um bravo Boxer, que se bateu como um leão (João Sacôto / José Martins)
(...) " a CCAÇ 84, três meses depois de aterrar no aeroporto de Bissalanca, foi literalmente fragmentada e enviada para os mais diversos pontos do território, tendo o meu pelotão tido como último destacamento, entre Novembro de 1962 e 7 ou 8 de Abril de 1963, Bambadinca, sob o Comando de Bafatá.
"O primeiro destacamento, ainda em Julho de 1961, foi para Farim, após os primeiros e ainda pouco violentos ataques a Bigene e Guidaje. Seguiu-se o destacamento de Nova Lamego, conforme é dito no seu blogue (P 1292 - Contributos) onde o pelotão foi dividido por Buruntuma, Piche e Canquelifá.
"Só estou a mencionar o 1º pelotão da Companhia, porque à grande maioria dos camaradas dos outros pelotões só voltei a ver nos dias que antecederam o embarque para a Metrópole.
"Como a memória se perde no tempo por indocumentação, ou porque a essa memória se teve medo de atribuir qualquer importância (existiam e ainda existem muitos complexos sobre a guerra colonial), resolvi dar o meu contributo para esclarecer uma dúvida colocada no seu blogue, sobre quem teria participado nos massacres de Samba Silate e Poindom, no início de 63.
"Sem conseguir precisar o mês, um dia soubemos que a PIDE estava em Bambadinca para deter o padre António Grillo, italiano da Ordem Franciscana, acusado - não sabíamos se por denúncia, se por investigação - de colaborar, proteger, e fornecer alimentos a elementos do PAIGC, a partir de Samba Silate" (...).






















