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quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27539: Humor de caserna (228): O Natal de Missirá que teve bacalhau ensaboado e, como prenda, o Menino... Braima (Abraão, em fula) (Jorge Cabral, 1944-2021)


Ilustração: IA generativa (ChatGPT / OpenAI), composição orientada pelo editor LG


O Bacalhau ensaboado e os Três Reis Magos

por Jorge Cabral (1944-2021)

Poucos são os Natais de que me lembro. E no entanto, já passei mais de setenta. Mas este, o de Missirá 1970, nunca o  esqueci. 

Tínhamos bacalhau. Tínhamos batatas. Fomos tarde para a mesa, a mesma de todos os dias, engordurada, sem toalha. Chegou o panelão fumegante e começámos.

– Caraças!, o bacalhau sabe a sabão! – disse o Branquinho.

E eu para o cozinheiro Teixeirinha:

– Quanto tempo esteve de molho?

– Esqueci-me, meu Alferes, mas o Pechincha, disse que, na terra dele, costumavam lavá-lo com sabão e que ficava bom.

– Porra, Teixeirinha! Se não fosse Natal, estavas lixado! Assim, vais à cantina buscar cervejas para a malta toda e pagas a meias com o Pechincha…

Batatas, umas latas de conserva e cerveja morna, pois a arca frigorífica tinha explodido na semana anterior, foi a nossa ceia de Natal.

Meia hora depois apareceu o soldado Alfa Baldé aos gritos:

– Alfero! Alfero! Já nasceu! Já nasceu É macho! É macho!

– Eu não te tinha dito?!

A alegria do Alfa era legítima. Já tinha três filhas e duas mulheres, mas há uns meses fora à sua Tabanca buscar outra mulher, herdada do irmão que havia morrido. 

Não trouxera só a viúva, treouxe também uma velha, muito velha, a bisavó, que se chamava Maimuna, mas que o Alfero alcunhou logo de  a "Antepassada". Meia cega passava os dias à porta da morança, dormitando de boca aberta…Nunca falou comigo, mas quando eu passava, sorria mostrando o único dente que conservava:

– Vou ver o teu filho, Alfa! Não lhe vais chamar Alfero Cabral. Vai ser Jesus!
 
– Desculpa, Alfero! Tem que ser Braima!

E fui com o Branquinho e com o Amaral. Só lá estavam mulheres e o Bebé, todo enfaixado. Logo que entrámos, o Amaral, que estava um pouco tocado, exclamou:

– Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!

Vai fazer 46 anos! Dos Três Reis Magos, um morreu e os outros dois estão velhos…Como a Maimuna, já parecem "Antepassados"… (*)

Jorge Cabral 

Lisboa, 7/12/2016 (Revisão / fixação de texto, título: LG)


Nota de LG - Já morreram todos, o narrador e as suas personagens, o Cabral, o Branquinho, o Amaral... O que será feito do Menino Braima ? Terá chegado a completar um ano ? E depois os cinco anos ? A ser vivo, terá hoje 55 anos. O que é um feito notável  para um guineense. 



Jorge Cabral (1944-2021)

1. Comentário do editor LG:

O Jorge adorava o Natal. Fingia que não, como alguns de nós, mais cínicos, que dizem não ligam  nada ao Natal...E a prova é  que escreveu várias "estórias cabralianas" sobre o tema... Passadas na Guiné. 

Esta é das últimas, a nº 92,  que me entregou , em dezembro de 2016. Para comemorar, à sua maneira, mais um "Natal na Guiné". 

Passou lá dois Natais, tal como eu (o de 1969 e o de 1970). Um em Fá Mandinga e outro em Missirá (aqui muito mais isolado do mundo, com o rio Geba a separá-lo  da sede do sector L1, Bambadinca, que já era a "civilização". O  seu miserável destacamento era mais a norte, em terra de ninguém.

Foi meu camarada e amigo, meu contemporâneo. Três anos mais velho. Não o deixaram completar o curso de direito. Julgo eu, mas não tenho a certeza. Nunca falámos disso. 

Foi depois advogado e professor universitário de direito penal.

Vai fazer 4 anos, no próximo dia 28 deste mês, que ele deixou a terra que tanto amava. 
Morreu cedo demais. Deixou muitos amigos e amigas, inconsoláveis. A começar pelos seus antigos alunos e sobretudo alunas do curso de serviço social. A quem tratava  carinhosamente por "almas". E que ainda hoje lhe escrevem mensagens de muita saudade e ternura na sua página do Facebook (Jorge Almeida Cabral).

Era da arma de artilharia. Passou por Vendas Novas. Comandou um Pelotão de Caçadores Nativos, o Pel Caç Nat  63... Eram poucos, cerca de 30, a maior parte guineenses. 

Cinco anos depois, de ter escrito esta peça de antologia,  de humor de caserna (que acima reproduzimos), o Jorge morreu em plena pandemia. De cancro. Deixou-nos o coração destroçado.  

Pedi à IA que fizesses uma análise sumária do microcono. Género em que ele era mestre. Microconto pícaro, burlesco, absurdo. Ele fazia a guerra como quem representava uma peça do teatro do absurdo. 

 Pedi, além, disso, á menina  IA, que é "talentosa", para criar uma ilustração, divertida, caricatural, alusiva a esse Natal, algures no mato, na Guiné, em Missirá, em 1970, longe de casa (a 4 mil km de distância)... 

Era o Natal possível de muitos de nós, soldados portugueses. É uma homenagem saudosa ao "alfero Cabral" , como diziam os seus soldados. Mas também ao António Branquinho, nosso grão-tabanqueiro, irmão do Alberto.  Sem esquecer o Amaral, de que também me lembro ainda, mas mais vagamente.


Guiné > Zona leste >r Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Regulado do Cuor > Missirá > Pel Caç NAT 63 > 1971 > O António Branquinho, simulando tocar um instrumento tradicional,  com uma bajudinha, no meio,  e o Amaral (sentado). 

Segundo a oportuna observação do nosso amigo e consultor permanente para as questões etnolinguísticas, Cherno Baldé, "o instrumento, na lingua fula, chama-se 'Hoddu', é mais antigo e, provavelmente, serviu de inspiração para a criacão do cora dos Mandingas"... Em crioulo, "nhanheiro".


Foto: © António Branquinho / Jorge Cabral (2007). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



2. Análise literário do microconto Missirá, 1970 > A Noite de Natal do Bacalhau Ensaboado

(Pesquisa: LG + IA / Gemini e ChatGPT) (Condensaçáo, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

O texto (e o contexto) partilhado é uma memória vívida e comovente de um Natal passado em Missirá, no ano de 1970, durante a guerra colonial na Guiné. É uma narrativa curtíssima, mas rica em detalhes, humor e humanidade. Em dois parágrafos e meia dúzia de diálogos , o autor cria uma atmosfera natalíica, de densidade humana e literária raríssima. 

O nosso amigo e camarada Jorge Cabral, falecido precocemente, é escritor de primeira água. N o futuro merecerá figurar em qualquer antologia do conto sobre a temática da guerra colonial.

Vejamos alguns dos pontos principais da história e do seu contexto:

(i)  O jantar de Natal "cnsaboado"

Cenário: a ceia de Natal aconteceu numa mesa "engordurada, sem toalha", no destacamento  de Missirá. O narrador (o alferes) e os seus camaradas, metropolitanos, "tugas" (Branquinho, Amaral, Teixeirinha) reuniram-se para o que deveria ser um jantar especial. No Natal, em Portugal, come-se bacalhau, com batatas e "pencas" (no Norte). É uma data festiva. A maior do ano.

Incidente: o prato principal era bacalhau com batatas (supremo luxo, naquelas paragens). No entanto, quando começaram a comer, o Branquinho notou que o bacalhau "sabia a sabão".

Explicação: o cozinheiro, Teixeirinha, confessou que se tinha esquecido do tempo de demolha e que o soldado Pechincha lhe dissera que, na terra dele, costumavam "lavá-lo com sabão" para ficar bom.

Punição: o Alferes, numa mistura de frustração e espírito natalício, mandou o Teixeirinha, como castigo,  ir à cantina buscar cervejas para todos, a pagar a meias com o Pechincha.

Ceia final: a ceia resumiu-se a batatas, latas de conserva e cerveja morna (pois o frigorífico tinha avariado na semana anterior).

(ii) O nascimento do menino  e os Três Reis Magos

Notícia: meia hora após a ceia, o soldado Alfa Baldé, que já tinha três filhas e duas mulheres, e recentemente trouxera uma nova esposa, adotada por levirato (**), mais  a bisavó idosa, Maimuna,  irrompe, a gritar de alegria: "Alfero! Alfero! Já nasceu! Já nasceu! É macho! É macho!"

Batismo proposto: o Alferes, num gesto de afeto e ironia, sugeriu que o bebé se chamasse Jesus, mas o Alfa Baldé, fula e muçulmano, já tinha nome para a criança: seria Braima (na língua fula, é uma variação do nome árabe Ibrahim, o equivalente a Abraão em português).

Visita: o "alfero Cabral", mais os furriéis Branquinho e Amaral, foram ver o recém-nascido.

Momento mágico: ao entrarem, o Amaral, que estava "um pouco tocado" (pela cerveja, mesmo "choca"), proclamou: "Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!"

(iii) O passar do tempo

Conclusão: o narrador reflete sobre o tempo que passou  (46 anos,  de 1970 a 2016)  e sobre a inevitabilidade da velhice.

Metáfora: dos "Três Reis Magos", um já tinha morrido (o Amaral) e os outros dois estavam velhos (o Branquinho e o Cabral), comparando-se a si próprios com a bisavó Maimuna (a "Antepassada"), que passava os dias a dormitar. 

É uma história belíssima que contrasta a simplicidade e as dificuldades da vida militar em cenário de guerra  (a mesa suja, o bacalhau estragado, a cerveja morna) com a alegria e o simbolismo do Natal (o nascimento do "Menino Braima" e a visita dos "Três Reis Magos"). 

A memória do narrador é claramente moldada por este momento único e inesperado de humanidade partilhada, naquele lugar onde Cristo nunca parou (e onde nem sequer o Diabo perdeu as botas).

Outros pontos a destacar:

Este microconto é um exemplo  do microconto pícaro e burlesco, atravessado por uma camada de absurdo existencial, que transforma a experiência traumática da guerra colonial numa espécie de teatro do quotidiano, onde o riso não nega a dor, domestica-a.

(iv) A memória selectiva e o Natal como exceção:

O texto começa com uma afirmação fundamental: “Poucos são os Natais de que me lembro.”

A memória aqui não é cronológica, é afetiva. Entre dezenas de anos e vários Natais, só um se fixa, o de Missirá, 1970. O Natal surge como ritual deslocado, arrancado do seu cenário simbólico europeu e transplantado para o mato guineense. É um Natal “possível”, não ideal.

(v) O bacalhau: símbolo nacional convertido em farsa

O bacalhau, pilar do Natal português, obrigatório à mesa nesse dia mágico, aparece ensaboado, literalmente contaminado pelo erro, pela improvisação, pelo desenrascanço,  pela santa  ignorância ( bem-intencionada, apesar de tudo).

O episódio é magistral porque:

  • subverte o sagrado produto gastronómico nacional (que é o bacalhau);

  • introduz o humor de caserna (o castigo não é a "prisão", é cerveja, paga a meias pelo desastrado cozinheiro Teixeirinhz e o "chico-esperto" do soldado Pechincha):

  • revela a cadeia de mal-entendidos culturais (o Pechincha, a tradição “da terra dele”, a de ensaboiar o bacalhau em vez de o demolhar em várias águas e vários dias).

Aqui, o riso nasce do choque entre vários mundos, mas nunca há desprezo, humilhação,  apenas risota, humanidade.

(vi) A autoridade do “Alfero”: justa, teatral, cúmplice

O narrador constrói a figura do alferes Cabral como:

  • autoridade funcional;

  • figura quase teatral:

  • mediador cultural.

O castigo é simbólico e coletivo. Não humilha, integra. Isto revela o comando humanizado, típico de quem percebe que naquela guerra ninguém está “inteiro” e tem "toda a razão".

(vii) O nascimento: epifania no meio do caos

O nascimento do filho do soldado guineense Alfa Baldé é o centro simbólico do conto. É um Natal sem presépio formal, sem luzes, sem enfeites, sem artifícios;

  • um parto real, no mato, natural, sem parteira (como terá sido o de Jesus na gruta de Belém);

  • um menino que nasce enquanto outros matam ou morrem;

  • um menino que tem de ser "Braima"... e não o "Jesus" dos cristãos ou o "Alfero Cabral", comandante daquela tropa matrapilha.

A figura da Maimuna / “Antepassada” é absolutamente extraordinária:

  • guardiã do tempo;

  • elo entre gerações;

  • quase uma personagem mítica

O sorriso com um único dente é um recurso literário de enorme economia e força.

(viii) Os Três Reis Magos: embriaguez, teatro e revelação

Quando o Amaral diz: “Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!”

o microconto atinge o seu auge. Aqui acontece tudo ao mesmo tempo:

  • o Natal cristão é reencenado de forma profana e ecuménica;

  • Jesus é um menino pretinho:

  • a guerra transforma-se em farsa absurda;

  • os soldados são atores improvisados num palco de todo  improvável.

É o teatro do absurdo em plena guerra, com a gente gosta de dizer das "estórias cabralianas" (de que o "alfero Cabral" publicou, no nosso blogue, mais de 9 dezenas).

(ix) O tempo final: melancolia sem sentimentalismo

O último parágrafo é devastador na sua contenção: “Dos Três Reis Magos, um morreu e os outros dois estão velhos…”. Aliás, cinco anos depois, morreria o narrador, e em 2023 o Branquinho. O Teixeirinha e o Pechincha não sabemos se são nomes reais.

Sem lamento, sem retórica. Apenas o tempo. A guerra passou, mas deixou corpos gastos e memórias resistentes, como a de todos nós. 

 A comparação final com a Maimuna fecha o círculo: todos acabamos “antepassados”. Todos seremos amanhã antepassados, quando os nossos filhos e netos se lembrarem de nós, se um dia forem à Guiné, em viagem de turismo: "Os nossos antepassados, que andaram por estes matos, rios e bolanhas..."

(x) Conclusão

Este microconto é um ato de resistência pela memória, um riso contra a desumanização,  uma homenagem implícita aos soldados anónimos que combateram naquela guerra absurda, um Natal sem redenção, mas com dignidade e humanidade.

O Jorge Cabral escrevia como alguém queria sobreviver contando histórias. e isso é talvez a forma mais honesta de literatura de guerra. N a realidade, eu sempre o oconheci como o mais "paisano" dos combatentes. Ele que era filho de militares e foi até "menino da Luz", seguramente contra a sua vontade.


Capa do livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp.  

Tinha um II volume, praticamente pronto para ser publicado.  
A morte  emboscou-o.

________________

Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 11 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27518: Humor de caserna (227): Ainda o Pechincha, que o Hélder Sousa comnheceu em Bissaiu... "P*rra, que este gajo ainda está mais apanhado do que eu!"

(**) Levirato: o costume, observado entre alguns povos, nomeadamente semitas, que obriga um homem a casar-se com a viúva de seu irmão quando este não deixa descendência masculina, sendo que o filho deste casamento é considerado descendente do morto. Este costume é mencionado no Antigo Testamento como uma das leis de Moisés. O vocábulo deriva da palavra "levir", que em latim significa "cunhado". Fonte: Wikipedia.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27522: Em bom português nos entendemos (28): B'ráassa, Brasa, Brassa ou Birassu (como os balantas se autodenominam) ( Cherno Baldé, Bissau)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > Nhabijões >2º semestre de 1970 > Luta balanta, entre dois "blufos", presenciada por militares destacados para protecção do reordenamento (à esquerda, o fur mil Henriques, da CCAÇ 12, de calções, tronco nu e óculos escuros, hoje editor deste blogue; na altura, devia etsar a comandar um pelotão da CCS/BART 2917 que guarnecia o destacamento: era tudo "básicos e gajos com porradas"..)... Ao fundo, a nova tabanca, reordenada...

Nhabijões deve ter sido o maior ou um dos maiores reordenamentos jamais feitos no tempo de Spínola. Foi um duro golpe para o PAIGC. Os reordenamentos são do tempo do BCAÇ 2852 (1968/70) e BART 2917 (1970/72)... Uma equipa (técnica) da CCAÇ 12 (a par das CCS dos supracitados batalhões) foi destacada o reordenamento.

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-Fur Mil At Inf, Op Esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro de Cammilleri, Salvatore - A identidade cultural do povo balanta. Lisboa: Edições Colibri; Edições FASPEBI, 2010, 110 pp., ilustrado. Tradução do italiano: Lino Bicari  (1935-2024) e Maria Fernanda Dâmaso.


1. B'raassa, Brasa ou Brassa, o termo que os balantas da Guiné-Bissau usam para se autodenominarem. Há um problema com a transliteração de sons da língua balanta para português e, consequentemente,  com a grafia a ser fixada.  Por outro lado, o termo é menos comum, para os não-balantas. 

O termo que os próprios Balanta usam para se referir à sua identidade e que é o mais consistentemente citado na literatura de antropologia e linguística é Brassa. Trata-se de um "autónimo".

Este termo é, na verdade, a adaptação para a escrita de como eles pronunciam a sua própria designação ("B'ráassa")  e que se refere à forma como eles se veem como "o povo" ou "os homens".

No entanto, é comum encontrar as três variações (B'ráassa, Brasa e Brassa) na literatura, incluindo a portuguesa:

  • Brassa é  a forma mais aceite e precisa (em portugão-padrão);

  • Balanta é o termo mais comum e oficialmente reconhecido em português para este  grupo étnico; trata-se de um "exónimo".

Portanto, em português, o termo comum para o grupo é Balanta, mas se a intenção for referir-se à autodenominação do povo, Brassa é a escolha mais correta. Mas nenhum dos termos está grafado nos nossos dicionários, seja em Portugal (Priberam, por exemplo) ou no Brasil (Houaiss).

O etnógrafo e missionário italiano  Salvatore Cammilleri usa o termo "brasa" no seu livro "A identidade cultural do povo balanta". 

M'bana Ntchigana, autor do blogue "Intelectuais Balantas da Diáspora",  utiliza de preferência o etnónimo "B'ráassa" ou até "Braza". Ele vise no Brasil



Cherno Baldé

2. Vale a pena, entretatanto, trancrever aqui um comentário do nosso amigo Cherno Baldé, colaborador permanente do nosso blogue para as questões etnolinguísticas:

 (... ) Como tenho dito em tempos e até provas em contrário, sou de opinião que a origem da expressão ou designação " B'raassa ou Brassa",  como os Balantas se autodenominam, segundo o autor do presente texto, aliás um conto mítico sobre o lendário combatente, Pansau Na Isna, muito interessante, deve-se procurar na designação histõrica da província ocidental do antigo reino mandinga de Kaabu (Gabu,  na grafia portuguesa).

Existiam duas províncias muito grandes e concorrentes, o Farin Kaabu (província de Gabu,  na grafia portuguesa) e o Farin B'raassu (província de Braço. na grafia portuguesa) e esta província extendia-se, de Sul ao Norte, desde o rio Geba até ao rio Gâmbia de modo que, praticamente, abrangia o chamado chão balanta na atual Guiné-Bissau e a região senegalesa da Casamansa. 

De notar que, inclusive, as populações da etnia fula que habitam a mesma região são conhecidas igualmente como B'raassus (b'raassunke ou b'raassunkas nas linguas mandinga e fula) com um sotaque e formas de falar um pouco diferentes dos seus parentes da antiga provincia de Gabu (Farin Kaabu).

Em complemento junto um pequeno extracto de uma passagem da monografia que estou a preparar há alguns anos, mas que ainda não conclui, citando o nosso amigo Armando Tavares, historiador portugues e colaborador do Blogue,  e um outro conhecido investigador africano e especialista do império de Gabu, natural da Guiné-Conacro, Djibril Tamsir Niane, falecido no ano passado.

"Segundo o historiador Armando Tavares, durante muito tempo, na cartografia portuguesa, não existia o topónimo (Fajonquito) e em seu lugar a zona era conhecida como sendo Gam-Sonco ou Cansonco. Na nossa opinião, a designação desta localidade por Gam-Sonco terá a haver com a predomínio dos povos de origem autóctone Banhum, Jola, Pajadinca e de diferentes outras etnias, muito poderosas que estariam instaladas nessa região (ver Djibril Tamsir Niane) na altura da invasão e da conquista mandinga desta zona e que estaria ligado a instalação da Província do Birassu/Brassu (Brassa, dos balantas) assim como outras províncias vizinhas, tendo como capital a localidade de Berécolom ou Bércolon ou então seriam duas entidades diferentes (Gam-sonco e Sancolla) representando o mesmo espaço territorial ou espaços diferentes."

Portanto, a ser verdade, B'raassa ou Brassa, antes de ser a designação de uma etnia, seria um espaço geográfico onde os balantas e outros grupos étnicos conviviam desde os tempos do império mandinga de Gabu aos tempos presentes,  com as naturais mudanças que a dinâmica da história dos povos se encarregou de fazer ao longo dos dois, três últimos séculos.

Gostaria de ouvir a opinião do meu compatriota M'bana N'tchigna sobre este assunto em especial e que, eventualmente, poderia desvendar outros mistérios menos conhecidos sobre os povos da Guiné no período anterior à colonização europeia em geral e portuguesa em particular. (**)



3. Já há tempos, em 2018, o Cherno Baldé, se tinha pronunciado sobre esta questão da origem dos Balantas / Brassa:

(...) Segundo as fontes orais a que tivemos acesso, o termo ou etnónimo Brassa vem do termo mandinga Birassu, Brassu, Buraçu ou Braçu, conforme as fontes em Mandinga ou Fula, Portugués ou Francês, que era a provincia ocidental do reino mandinga de Gabu (ou Kaabu) e que viria a tomar várias formas nas diferentes línguas dos povos que ai viviam antes e após o fim do imperio, na sua grande maioria mandingas, fulas, balantas, djolas, etc.

Assim, toda a zona norte da Guiné e parte da região de Casamança, no Senegal, se encontravam dentro desta antiga província, com epicentro no corredor de Farim/Mansoa que seria a capital provincial e donde os Brassas/Balantas sairam para depois se expandirem mais ao sul do pa~is, até às regiões de Quínara e Tombali.

Partindo deste ponto de vista analítico, na Guiné, os Balantas não seriam os únicos "Birassu" ou "Brassa", pois também entre os fulas existem grupos, pouco conhecidos ou estudados, mas que seriam desta origem histórica, os chamados fulas Birassunka Braçunka (em mandinga: Fulas de Biraçu), com especificidades próprias da língua e cultura ainda hoje existentes, aliás muito parecidas com as dos seus históricos vizinhos mandingas e balantas do norte.

Em resumo, quando um Balanta ou Djola ou Fula se identifica a si mesmo como "Brassa" ou "Birassu", isto queria dizer que se identificava com as suas raízes ou origens geográficas, em estreita ligação ao território/reino com o qual, para todos os efeitos, se identifica em relação aos outros.

Não esquecer que em África, os processos de formação das identidades com base em determinados territórios ou estados-nação, iniciados no periodo pré-colonial, foram interrompidos e violentamente substituídos por relações comerciais e outras, baseadas no tráfico de armas e de seres humanos impostas de fora para dentro ou vice-versa, e que nenhum povo africano, para poder sobreviver, podia ignorar ou dispensar em entre meados do séc. XV e fins do séc. XIX.

19 de outubro de 2018 às 11:55 (***)

(Revisão / fixação de texto: LG)
__________________

Notas do editor LG:

(*) Último poste da série  18 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26814: Em bom português nos entendemos (27): "Caputo" e "chicoronho", aplicados aos habitantes brancos do sul de Angola, antes da independência (António Rosinha / Luía Graça)

(**) Vd. poste de  9 de dezembro de 2025 > Guiné 761/74 - P27508: (D)o outro lado do combate (69): O "herói do Como", o Pansau Na Isna (1938-1970), em registo de "conto popular africano"“: tuga ka pudi anda na lama (M'bana N'tchigna)

(***) Vd. poste de 20 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19120: (De)Caras (121): O ex-padre italiano LIno Bicari foi meu professor em Bafatá, depois da independência, e casou com uma prima minha, Francisca Ulé Baldé, filha do antigo régulo de Sancorlã, Sambel Koio Baldé, fuzilado pelo PAIGC (Cherno Baldé, Bissau)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27516: Humor de caserna (225): O ganda Pechincha (ex-fur mil op esp, CART 11, Nova Lamego, 1969/70), que eu conheci em Bissau quando cheguei, em novembro de 1970 (Hélder Sousa)



Espinho > Silvlade > Fevereiro de 1969 > Jantar de despedida antes da partida, a 18, para o TO da Guiné... Um grupo (14) de sargentos e furriéis milicianos da CART 2479, futura CART 11, "Os Lacraus" (1969/70):
  • à  esquerda, sentados: (1) Canatário (armas pesadas) | (2) Cândido Cunha;
  • em pé: (3) Silva (trms) | (4) Abílio Duarte: | (5) Pinto;
  • atrás: (6) Manuel Macias | (7) Pechincha (operações especiais);
  • ao alto: (8) Sousa |
  • ao centro: (9) 1º. srgt Ferreira Jr. (já falecido) | (10) Renato Monteiro (1946-2021) | (11) Ferreira (vagomestre); (12) Edmond (enfermeiro) | (13) Pais de Sousa (mecânico);
  • sentado, à direita: (14) Valdemar Queiroz (1945 - 2025)

Para completar a lista da classe de sargentos da CART 2479 (futura CART 11), faltava:  o 2º. srgt Almeida (o velho Lacrau) (já falecido); o fur mil Vera Cruz; e o fur mil Aurélio Duarte (também já falecido).

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Moita > Praia do Rosário > 13 de maio de 2023 > CART 2479 / CART 11, "Os Lacraus", 1969/70 > Convívio > Um grupo de resistentes... 
  • o primeiro da esquerda para a direita, na primeira fila (sentados): Abílio Duarte, o Pais de Sousa, o Manuel Macias, o Alf Martins e um camarada condutor,  não  ifentificado;
  • de pé, e também da esquerda para a direita: o Pechincha, o Silva, o Reina, o Saraiva, o Artur Dias e o Cândido Cunha.
Foto (e legenda): © Abílio Duarte (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar. Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Humor de caserna > O Pechincha que eu conheci, em Bissau (*)

por Hélder Sousa  (**)

Hélder Sousa


(...) Cheguei [à Guiné], a 9 de novembro [de 1970], quase na véspera do S. Martinho, e o desembarque deu-se um dia antes de todos aqueles que foram no [T/T] "Carvalho Araújo".

Fiquei alojado num quarto das instalações de sargentos em Santa Luzia, em B
issau, num espaço cedido para colocar uma cama articulada facultada pelos meus amigos, colegas e conterrâneos vilafranquenses, furriéis José Augusto Gonçalves (o Bate-Orelhas, como carinhosamente lhe chamávamos 
na Escola Industrial de Vila Franca de Xira por causa da sua, dele, habilidade de movimentar as orelhas como um abano com um simples esticar de queixo) e Vitor Ferreira, os quais compartilhavam o quarto também com o furriel Pechincha (só me lembro do apelido), que estava em comissão no QG e tinha estado durante meses numa companhia nativa [a CART 11, Nova Lamego, onde era fur mil op esp; arranjou depois uma boa cunha e acabou por ficar em Bissau o resto da comissão] (...).(***)

Pois este amigo Pechincha, que era, salvo erro, de Moscavide e trabalhava como desenhador na Câmara Municipal de Lisboa, tinha fama de estar um bocado apanhado e com uma pancada enorme, mas acho que aquilo era mais para ganhar fama e benefício dela.

Digo isto porque tive com ele algumas conversas, muito interessantes e educativas, que me elucidaram bastante sobre a situação que se vivia e como ele pensava que se iria desenvolver, o que, no essencial, não divergiam muito do que eu pensava.

Mas também não deixava a sua fama por mãos alheias e logo na noite de 11 para 12 de [novembro], fui testemunha privilegiada duma dessas situações.

Nessa noite comemorava-se o S. Martinho. Eu fui portador para os amigos vilafranquenses de alguns quilos de castanhas e de um garrafão de água-pé (por sinal, bem forte!), além de outros mimos.

Com um bidão, em frente às camaratas onde os quartos se encontravam, fez-se o assador e então vá de comer chouriços assados, salsichas e castanhas, tudo bem regado com a dita água-pé e outras bebidas estranhas, em grandes misturadas (cerveja, uísque, coca-cola, etc.), tudo a animar uma simulação de uma emissão de rádio protagonizada pelos camaradas das Transmissões com jeito para a coisa, como por exemplo o furriel Roque.

Com o avançar das horas era tempo de serenar, descansar os corpos e retomar forças para o dia seguinte.

Acontece é que, como sempre sucede em situações semelhantes, nem todos estavam pelos ajustes e com a previsão para breve da viagem de regresso do "Carvalho Araújo", havia alguns, cujos nomes não ficaram registados na minha memória, que integrariam essa viagem final para a peluda, como diziam, e estavam dispostos a prolongar a sua festa, até com atitudes menos próprias e profundamente negativas, principalmente para quem tinha fortes experiências no mato, como seja arremessar as garrafas vazias para cima dos telhados de zinco dos quartos, o que, como calculam, a mim ainda não produzia efeito mas para quem já tinha reflexos condicionados era bastante aborrecido.

Ora o nosso bom Pechincha avisou solenemente os meninos que ou paravam imediatamente a graçola ou tinham que se haver com ele à sua maneira. 

Dada a fama que tinha, que não regulava lá muito bem e que era bem capaz de usar arma, os ânimos serenaram quase de imediato e na generalidade.

Mas também como sempre sucede, há sempre alguém que procura forçar a sorte e um deles, que também me disseram que estava apanhado (afinal, quem é que não estava?, acho que dependia do grau) resolveu irromper no nosso quarto com uma panela na cabeça e a bater com duas tampas como se fossem pratos duma banda de música.

Entrou, com ar de quem estava muito contente da vida e satisfeito por desafiar as ordens, mas o que eu vi de imediato foi o nosso amigo Pechincha, que estava estendido sobre a sua cama e que era logo a primeira à entrada, estender o braço sobre a cabeceira da cama, agarrar numa espécie de um dos dois machados nativos que estavam lá a enfeitar e, sem mais explicações nem argumentos, arremessou-o para o intruso, acertando-o na panela que estava na cabeça, deixando-o com o ar mais aparvalhado de perplexidade que vi até hoje, [e abandonando] o quarto a tremer e a balbuciar: "este gajo está de facto mais apanhado do que eu!".

Uma outra vez, estava com o Pechincha na zona da baixa de Bissau, passámos junto ao Taufik Saad que, naquela ocasião, tinha tido a boa iniciativa de efectuar uma promoção de um artigo qualquer que já não me lembro, mas a infeliz ideia de dizer que era "uma autêntica pechincha"...

Estão a ver a cena? 

O Pechincha resolve entrar de rompante na loja, cartão de identificação na mão, onde se podia confirmar que Pechincha autêntica era ele, portanto a "falsificação" teria que ser imediatamente retirada da montra!

E não é que foi mesmo?!

Era assim o Pechincha! Para muitos foi mais uma demonstração do seu apanhanço, mas eu, que estava com ele, e éramos só nós os dois naquela ocasião, percebi muito bem que foi tudo encenado... 

Ah, ganda Pechincha! Se por acaso nos visitares e leres isto, junta-te a nós! (...)

(Revisão e fixação de texto, parênteses retos, título : LG)
_____________

Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 24 de novembro de 2025 > Guiné 671/74 - P27458: Humor de caserna (224): À quarta é que é de vez: cartunes 'inteligentes' da menina IA (Alberto Branquinho / Luís Graça)

(**) Excerto do poste de 19 de fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2556: Estórias de Bissau (16) : O Furriel Pechincha: apanhado ma non troppo (Hélder Sousa)


(...) O Pechincha já aqui foi magistralmente evocado pelo Hélder de Sousa (**), Sabemos que era de Moscavide, o Humberto Reis [o nosso "cartógrafo"] conheceu-o na Guiné, de Contuboel  (ambos eram de Operações Especial, mas o Pechincha, era de um curso anterior)... Sabemos que, antes da tropa,  era desenhador na Câmara Municipal de Lisboa...

Ele, Hélder de Sousa, "pira", acabado de chegar, conheceu-o também em Bissau, já "apanhado do clima",em fimd e comissão... Depois, e tal como o Humberto, perdeu-se-lhe o rasto.

O Abílio Duarte acrescentou mais os seguintes elementos, para esclarecimento do Hélder de Sousa e nosso:

(i) o Pechincha  era Furriel de Operações Especiais, da Escola de Lamego;

(ii) eram os dois do mesmo pelotão, desde Penafiel até Nova Lamego [CART 2479 / CART 11];

(iii) (...) "só que o malandro era desenhador, e quando chegámos ao Gabú, deram-nos o Quartel de Baixo, Como era conhecido na altura. Como aquilo estava abandonado, e não tinha muitas condições, o nosso Capitão desafiou-o a fazer uns desenhos para as casas de banho e outras, para quando fosse a Bissau ir ter com o padrinho dele, que era o cor Robin de Andrade (****), para arranjar uma cunha e ter materiais de construção para nós fazermos as obras.

"O que aconteceu foi que os desenhos eram tão bons que o Pechincha foi para Bissau, e nunca mais voltou. Mas os materiais vieram (...).

"O mais giro desta foto, mas não se consegue ver, é que o Pechincha nos seus desenhos punha os bonecos com frases do Spinola, e a nossa preocupação era, se aparecesse o Spínola, termos sempre uma brigada pronta para apagar as bocas do Pato Donaldo e companheiros." (...)

(****) O coronel João Paulo Robin de Andrade: devia ser mais do que capitão, na altura, na Guiné (c. 1969/70); talvez fosse da arma de cavalaria; devia já ser oficial superior e estar colocado no QG; depois do 25 de Abril (a que esteve ligado), foi chefe do gabinete militar do  general António Spínola (15 de maio / 30 de setembro de 1974). Nasceu em Oeiras, em 1923. Em novembro de 1975 passou à reserva, aos 52 anos.

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27457: Humor de caserna (223): Contado ninguém acredita: o fur mil Pina que ficou com o dedo mindinho entalado no tapa-chamas da G3 (Mário Beja Santos, cmdt do Pel Caç Nat 52, 1968/70)



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Bambadinca > Coamndo e CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  c. 1970 >  David Payne, o médico referido nesta história,é o mais alto, no meio, de óculos, na na segunda, de pé. O Beja Santos é da ponta do çlado esquerdo, seguido do major Cunha Ribeiro (2º comandante do BCAÇ 2852);  à esquerda do m+edico, o cap inf Carlos Alberto Maqcahdo de Brito (hoje cor ref), comandante da CCAÇ 12, e ainda o alf mil at int Abel Maria Rodrigues, também da CCAÇ 12.

Na primeira fila, da esquerda para a direita, um militar que não conseguimos identificar, seguidos de três alf mil, José António G. Rodrigues , António Carlão, ambos da CCAÇ 12,  e  Isamel Augusto (CCS).  

Tratava-se da a equipa de futebol de oficiais de Bambadinca que acabara de jogar contra uma equipa de sargentos. Cunha Ribeiro, david Payne, José Antónioo Rodrigues e António Carlão já náo est´~ao entre os vivos.
 
Foto (e legenda): © João Pedro Cunha Ribeiro (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Em novembro de 1969, o alf mil Mário Beja Santos, em fim de comissão, deixa Missirá e é colocado em Bambadinca, com o seu Pel Caç Nat 52. Toda a gente esperava ter direito a umas merecidas férias. Mas  foi puro engano.  A 20 desse mès,o Beja santos começou logo "como oficial de dia" e à noite foi "montar uma emboscada para a estrada do Xime" (*)

No dia seguinte dava à conta à Cristina  [Allen, 1943-2021] , a sua noiva, das peripéricas rocambolescas dessa noite. São daquelas histórias passadas na Guiné que, contadas, ninguém acredita. 

Este episódio. que me passou na  altura completamemente despercebido, merece agora, ao fim de quase 18 anos (!), figurar na nossa série "Humor de caserna" (**)...Felizmente que tudo acabou em bem para o azarado fur mil Pina, do Pel Caç Nat 52 (e posteriormente do Pel Caç Nat 63) (***)


O dedo mindinho do furriel Pina entalado no tapa-chamas da G3

por Mário Beja Santos


Tu não vais acreditar neste episódio burlesco: saímos depois do jantar para uma emboscada decidida pelo major de Operações, a caminho do Udunduma, em ataque anterior a Bambadinca foi aqui que os rebeldes puseram os canhões sem recuo e morteiros.

Estava uma noite serena, saí com duas secções, acompanhou-me o Pina, o Pires tem agora trabalho numa terra aqui perto chamada Sinchã Mamajai. Teríamos feito um quilómetro por um caminho saibroso, e subitamente um grito medonho atravessou a noite, logo me apercebi que não era nem emboscada nem mina. 

Fui ao local da gritaria e dei com o Pina estatelado no chão a gritar com um dedo mínimo dentro do cano da espingarda. Tentei tirar-lhe o dedo, impossível. Ele escorregara no saibro e acontecera aquela coisa impensável.

 Imagina o que é regressar a Bambadinca com o Pina lívido, um soldado a segurar-lhe a arma, ele a gemer com o seu dedo esfanicado lá dentro. À cautela, retirei-lhe o carregador para evitar acidentes. 

Fomos para a enfermaria, ele sentado com a arma em cima da marquesa, com o braço estendido.

 

Tapa-chamas da G3;
um buraco onde nunca se devia
meter o deddo


O David   [Payne, alf mil médico,   já falecido] ficou embasbacado, o dedo ia inchando, todos os esforços para lhe retirar o dedo resultavam infrutíferos. Em dado momento, o David, com a testa perlada de suor, chegou a admitir a hipótese de lhe cortar o dedo e aí o Pina gritou que não, preferia ter todas as dores necessárias até se encontrar uma solução para ficar com o dedo inteiro. 

O Reis sapador foi buscar varetas, começou a esgravatar à volta do tapa-chamas, o Pina deu um urro, tal era o sofrimento, o Reis enfureceu-se e enfiou-lhe um tabefe, não sei que é que ele se julgava, se feiticeiro ou a desmontar uma mina, pedi ao David para lhe dar uma injecção ao Pina que o deixasse a dormir... 

Lembrei-me então que tínhamos desempanadores e pedi para falar com o   [1º cabo mec auto João de Matos Alexandre. O primeiro cabo desempanador Alexandre conhecia perfeitamente Missirá, dizendo que sempre que a visitara fora recebido à morteirada. Foi ele quem conseguiu desatarraxar o tapa-chamas, o dedo tinha a falangeta quebrada, com fractura exposta, lá se deu um calmante ao Pina (que foi na manhã seguinte evacuado para Bissau) e eu regressei para os mosquitos na emboscada.

(Revisão / fixação de texto: LG)

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(**) Último poste da série : 23 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27454: Humor de caserna (222): A chico-espertice às vezes também dava... m*rda (José António Sousa, 1949-2025 / António Carvalho)

(***) Segundo o Beja Sanyos, o fur mil Pina, infeliz protagonista desta história, também integrou, posteriormente, o Pel Caç Nat 63, na altura comandado pelo alf mil  Jorge Cabral (1943-2021). Náo consigo descobrir o seu nome completo. Do meu tempo, lembro-me dos fur mil António Branquinho e do Amaral. O seu nome não consta da História nem do BCAÇ 2852 (1968/70) nem do BART 2917 (1970/72).

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27384: A nossa guerra... a petromax (1): Quem é que ainda se lembra dos candeiros a petróleo ? Em 1964, em Guileje, Gadamael, Ganturé, Sangonhá, Cacoca, Cameconde... Em 1967/68, em Ponate, Banjara, Cantacunda, Sare Banda, Ponta do Inglês...



Candeeiro antigo a petróleo Hipólito de 350 velas
(Com a devida vénia, OLX: anúncio já não disponivel)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) >  Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > Setembro de 1973 > CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74) > Uma foto rara : assinalado a amarelo está um candeeiro a petróleo de camisa, um petromax, possivelmente de 350 velas, que era fabricado em Portugal pela Casa Hipólito, de Torres Vedras. 

"A mesa polivalente, onde se comia, escrevia, lia,  jogava e conversava. Em suma: o espaço de socialização e de partilha. Da esquerda para a direita: Gregório Santos, José Sebastião, Ricardo Teixeira e eu [Jorge Araújo] participando no 'mata-bicho' das tardes, preparando-nos para mais uma noite de muitas estrelas."

Foto (e legenda): © Jorge Araújo  (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 




Capa do livro "Casa Hipólito : história, memórias e património de uma fábrica torriense / Joaquim Moedas Duarte ; pref. José Amado Mendes ; rev. cient. Jorge Custódio. - 1ª ed. - Torres Vedras : Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras : Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial, 2017. - 376 p. : il. ; 23 cm



1 Quem se lembra do velho "petromax" que iluminou muitas das nossas noites de breu na Guiné ? E nomeadamenmet nos primeiros anos da guerra, em destacamentos perdidos no mato ...

Eu nunca tive o "privilégio" de ter um pretomax no destacamento da ponte do rio Udunduma, na missão do sono em Bambadincanzinho, nas tabancas fulas em autodefesa que fui reforçar ou no destacamento do reordenamento (de população balanta e mandinga) de Nhabijões !... 


Fonte: Anúncio do OLX
Mas há quem se lembre... O petromax, das fotos acima, era da  Casa Hipólito, de Torres Vedras. Era um candeeiro a petróleo, de camisa.. Havia vários modelos, todos a petróleo/querosene, só mais tarde evoluiu para o gás...  

Havia candeiros de 150 velas, 250 velas, 350 velas, 500 velas... Pelo que vejo nos anúncios do OLX, estes candeeiros antigos podem ainda hoje valer entre os 50 e os 150 euros...Os modelos novos podem custar 300, 400, 500 euros...

O de 500 velas (ou CP="candle power") era o de topo de gama. 

O de 150 velas dava para 10 horas (1 litro de querosene / petróloe). Aplicaçáo: Uso doméstico, iluminação de tenda pequena ou posto de sentinela;

O de 250 velas tinha um autonomia de 7 horas, dava para iluminar um secção do perímetro de
arame farpado, uma cozinha de campanha, um ficina.

O de 350 velas (5 horas de autonomia) iluminava um de pátio, um pequeno acampamento, uma enfermaria.

O de 500 velas (4 horas de autonomia) iluminava superfícies maiores: quartéis, destacamentos, missões religiosas, médios / grandes acampamentos. Um candeeiro Petromax de 500 CP (ou velas) é comparável, em brilho, a quatro lâmpadas incandescentes de 100 W, mas concentrando a luz num feixe mais intenso.

Náo sabemos qual(quais) o(s) modelo(s) disponibilizado(s) pela Intendência. Mas pelo menos o de 150 velas já existia em 1967, 

"Petromax" era/é  uma marca registada, de origem alemã, fabricada em Portugal sob licença,a partir de 1949. Mas a Hipólito também tinha modelos próprios.


2. Ter um petromax em casa, no meu tempo de miúdo, era uma novidade, uma  coqueluche. Usava-se na pesca aretsanal e na pesca ao candeio (o pescador mais "abonado"; ainda me lembro da lanterna, luminária  ou lampião a carbureto)... Nas oficinas, para trabalhar à noite. E os mais remediados passaram a substituir o velho candeeiro a petróleo pelo petromax, enquantio não chegava a eletricidade de Castelo de Bode (a barragem foi inaugurada em 21/1/1951).

A palavra "petromax" entrou no nosso vocabulário nos anos 50. E o termo já está hoje grafado nos  nossos dicionários.

Temos diversas referências ao uso do "petromax" na iluminação das nossas instalações militares no CTIG (a par das garrafas de cerveja que, depois de vazias,  eram cheias de petróleo, levavam uma tampa  furada por onde passava uma mecha, torcida ou pavio funcionando à noite como luminária ou candeeiro improvisado).

Segundo a descrição da Wikipédia, "consta de um depósito, onde está introduzida uma bomba de pressão, do qual sai um tubo tendo na extremidade um vaporizador e fixa a este uma camisa em seda em forma de lâmpada, protegida por um cilindro em vidro. No cimo tem uma chaminé por onde saem os gases." (Vd, imagem acima).
 
Para quem quiser saber mais, aconselha-se uma visita à página do Facebook Memórias da Casa Hipólito de Torres Vedras, da autoria de Joaquim Moedas Duarte, criada no âmbito do Mestrado em Estudos do Património, da Universidade Aberta de Lisboa. 

Sabemos que esta grande empresa metalúrgica (o maior empregador da região) forneceu diversos equipamentos de iluminação para as Forças Armadas. Começou por ser uma pequena oficina de latoaria no início do séc. XX. Algumas décadas depois era já uma grande metalúrgica, com 1400 colaboradores.


3. Vejamos algumas referências ao petromax no CTIG:

Já temos uma série "A minha guerra a petróleo" (*), da autoria do ex-cap art (hoje coronel na reforma) António J. Pereira da Costa, membro da nossa Tabanca Grande.

Iremos citá-lo em próximo poste. Inspirados naquele título, é que nos lembrámos de repescar postes com referência a este descritor, "petromax". 

Em todo o caso, convém lembrar que a "A minha guerra a petróleo" (título que o autor voltou a usar no livro de memórias que publicou, sob a  chancela da Chiado Books, em 2019) tem um sentido metafórico e irónico. Mais diria que é também  uma amostra da literatura "pícara" que se tem publicado sobre a nossa guerra.

 Temos que revisitar esta série. Mas para já registe-se que o tom  que o nosso Tó Zé (para os amigos da Amadora)  usa, é  muitas vezes reflexivo e sarcástico, evocando as dificuldades logísticas e humanas da guerra (por exemplo, o combustível escasso, o calor, o esforço físico e moral, a burocracia). Neste contexto, a expressão “a petróleo” serve também para sublinhar   o carácter absurdo, tecnicodependente e mecanizado da guerra moderna,  que não funcionaria sem máquinas, motores, material, combustível, e sobretudo sem  uma máquina pesada que se impõe sobre o indivíduo. Aliás, nenhuma guerra.

Física e metaforicamente falando, foi de facto uma "guerra a petróleo", a nossa... Nalguns caso, um pouco mais evoluída, do ponto de vista da tecnologia com a introdução do "petromax " e a seguir do "gerador elétrico"...

Tudo indica, entretanto, que nos primeiros anos da guerra, na Guiné, o uso do "petromax" (ou lanterna de incandescência...)  fosse mais generalizado, servindo inclusive para iluminar o perímetro de defesa dos aquartelamentos, como no caso de Bedanda, por exemplo, ao tempo do nosso camarada Rui Santos, em 1963, bem como outros aquartelamentos  e destacamentos.

Cite-se, na região de Tombali, e ao longo da fronteira  com a Guiné-Conacri,  no 1º semestre de 1964, destacamentos como  Guileje, Gadamael, Ganturé, Sangonhá, Cacocca, Cameconde, etc.

Mas também na zona Leste, na região de Bafatá: Ponta do Inglês,no subsector do Xime (setor L1), Banjara, Cantacunda, Sare Banda, etc., no subsector de Geba (sector L2)... Ou na região do Cacheu, Ponate, por exemplo...

Em sítios isolados (destacamentos, tabancas em autodefesa, etc.), o uso do "petromax" levantava questões de segurança. Era um alvo fácil . E talvez por isso fosse distribuído com parcimónia. Não sabemos, por exemplo, quantos camaradas nossos morreram, de tiros isolados, à noite, disparados por "snipers". Ou de ataques junto ao arame farpado, como Sare Banda, 1968.

Depois vieram os geradores e passou a haver luz elétrica, pelo menos à noite... Mas, nos destacamentos, em Ponate, em 1966,  em Banjara, em 1967, na Ponta do Inglês, em 1968, no Biombo, em 1970, no rio Udunduma, em 1973, etc. continuava a recorrer-se ao "petromax".


Sangomhá, 1964 (**)

(...) "Depois de, em Ganturé, existirem as condições mínimas de sobrevivência para a instalação das tropas que aí permaneciam, o Pel Rec Fox 42 juntamente com tropas recém chegadas à Guiné [CART 640 ] e com um Pelotão de Milícias rumou até Sangonhá a 21 de maio de 1964.

Como de costume segue-se a capinagem, a vedação de arame farpado em volta da tabanca, que seria agora um quartel, a colocação de cavaletes para instalação dos candeeiros a petróleo (petromaxes), a que alguns “valentes” iam dar pressão de ar durante a noite, sempre que necessário." (*)

.
Sare Banda ,8 de setembro de 1968 (***)

(...)  Sare Banda (...) estava perto de Sinchã Jobel (importante base do PAIGC, e muito bem equipada, como é claro pelo material que deixaram), e é natural que fosse atacada.

O alferes morto foi o Carlos Alberto Trindade Peixoto. O outro morto foi o Furriel Raul Canadas Ferreira. Mas as circunstâncias da morte deles não estão devidamente relatadas.

Foi assim: este, como todos os destacamentos da CART 1690, não tinha luz eléctrica, nem mesmo um miserável gerador. Eles estavam os dois numa tenda a jogar às cartas, com um petromax aceso (depreende-se, aliás, do relatório as péssimas condições de instalação). Para os guerrilheiros foi muito simples, foi só apontar o RPG2. (...)


Banjara, 1967 (****)

De qualquer modo, as companhias deviam ter, em "stock", este precioso utensílio... mas era preciso garantir a disponibilidade de querosene/petróleo iluminante e de "camisas"...
 .




Guiné > Zona leste > Geba > Banjara > CART 1690 (1967/69) > Excerto de uma requisição de material, com data de 9/6/67, feita pelo alf mil Alfredo Reis,  na altura a comandar o destacamento de Banjara.

Alguns dos artigos requisitados (excerto):
  • fósforos, 
  • palha de aço,
  • camisas para petromax de 150 velas.
  • torcida e vidro (?) para o frigorífico (...),
  • pregos para pregar as chapas,
  • aerogramas,
  • selos, 
  • 12 esferográficas (uma vermelha e as outras azuis),  
  • bloco de cartas,
  • Omo e sabão, 
  • uma garrafa de whisky, 
  • Sumol ou outros sumos [...]

Foto: © Alfredo Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

(Continua)

(Revisão / fixação de texto, itálicos, negritos: LG)
____________

Notas do editor LG:


(*) Vd, poste de 6 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19752: Notas de leitura (1175): A Minha Guerra a Petróleo, por António José Pereira da Costa, Chiado Books, 2019 (Mário Beja Santos)
(***) Vd. poste de 28 de maio de 2005 > Guiné 63/74 - P28: Um ataque a Sare Banda (1968) (A. Marques Lopes)

(****) Vd. poste de 20 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15388: Álbum fotográfico de Alfredo Reis (ex-alf mil, CART 1690, Geba, 1967/69) (3): O que é um homem precisava no mato, num miserável destacamento como o de Banjara, em 1967 ?

domingo, 2 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27376: Humor de caserna (219): Heróis de quatro patas que bem mereciam uma cruz de guerra: Bambadica, 1963, o Lobo e a sua matilha de cães rafeiros (Alberto Nascimento, ex-sold cond auto, CCAÇ 83, 1961/63)




Cartoon: adaptação e edição por Chat Português (GPT-5 Thinking mini). Disponível em https://gptonline.ai/. Ideia original: LG sob imagem original de João Sacoto  / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 > Meados de 1969 > Um periquito em Bambadinca, ao tempo do BCAÇ 2852 (1968/70),   o editor deste blogue, quando noutra incarnação foi Fur Mil Armas Pesadas Inf, pertencente à subunidade de intervenção CÇAÇ 2590 / CCAÇ 12... Nas suas costas, a grande bolanha de Bambadinca... (Bambadinca ficava num morro, 30 e tal metros acima do mar, tendo a Norte o rio Geba e a Sul a bolanha.)

Um anos depois, já após a chegada do BART 2917, os cães vadios enxameavam a parada do aquartelamento e tornavam-se um pesadelo, à noite, não deixando ninguém dormir... (Dentro do aquartelamento, ou do perímetro de arame farpado ficavam ainda as instalações civis: posto administrativo, escola primária, missão católica capela, reservatório de água, etc.)

Foi na sequência dessa situação que se decidiu preparar e executar a Op A Noite das Facas Longas, de que resultou talvez a maior mortandade em canídeos de toda a guerra da Guiné... Como tantas outras ações das NT, esta não ficará certamente para a História, mas já aqui foi evocada e sumariamente contada (*).

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


    

O boxer Toby, um cão
que foi um bravo
combatente,
mais do que mascote.

Foto do João Sacôto.
1. Os cães também fazem parte da nossa "pequena história", ou das nossas "pequenas histórias" que pouco ou nada irão interessar à História com H grande. 

Temos pelo menos dez referências a este descritor. Até tivemos "cães de guerra". CCAÇ 763, "Os Lassas" (Cufar, 1965/67) teve "cães de guerra". Tinha uma secção cinotécnica. Mas a sua utilização, eficaz e eficiente, naquela guerra e naquele terreno, deparou-se com vários obstáculos. E a experiência foi abandonada. O maior inimigo do cão de guerra ainda era, afinal, o macaco- cão. Quando se encontravam no mato, não havia quem os segurasse.

Mas dalemos de outros cães que, à partida, não foram treinados para operações de guerra. E que mesmo assim participaram na guerra. 

Se há uma cão que merecia uma cruz de guerra, era o Toby, ferido em combate, bravo e leal companheiro do nosso João Sacôto e do seus camaradas da CCAÇ 617 (Catió, 1964/66) (**).

Cães que foram, mais prosaicamente, mascotes iu animais de companhia certamente os houve, na Guiné, ao longo da nossa guerra, um pouco por toda a parte. 

De um lado e do outro. O IN também os tinha, nas "barracas"  e tabancas", com a missão de o alertar da chegada das NT, no mato. 

Alguns dos nossos cães, infelizmente, como o Boby e o Chicas, que viveram connosco em Bambadinca, acabaram por ser vitimas do "fogo amigo" (*).

 Mas falando de cães que conviveram connosco, temos  de lembrar aqui, mais uma vez, nem que seja em registo  humorístico (***), o Lobo (também um Boxer)   e a sua matilha de cães rafeiros que no início  oficial da guerra, no 1º trimestre de 1963,  terão abortado  um ataque do IN a Bambadinca, ao tempo 
do Alberto  Nascimento, ex-sold cond auto, CCAÇ 84 (Bambadinca, 1961/63).
 

O Lobo e a sua matilha de cães rafeiros

por Alberto Nascimento


Alguém apareceu um dia no quartel, com dois cachorros recém desmamados, que foram imediatamente adotados e batizados com os nomes de Gorco, ele, e Djiu, ela.

Adaptaram-se facilmente ao hotel e, quando começaram a vadiar pelas imediações, devem ter feito grande publicidade porque passado pouco tempo veio outro e mais outro e mais uns quantos, até perto da dezena de rafeiros que, agora bem nutridos, não mostravam vontade nenhuma de voltar à antiga vida de privações e maus tratos.

Mais tarde, o tenente Castro, comandante do destacamento, juntou à matilha um boxer, o Lobo que, pelo seu pedigree, foi aceite como comandante da tropa canina, que passou a segui-lo para todo o lado.

Embora alguns dos rafeiros se desenfiassem durante algumas horas de dia, a hora das refeições e a pernoita eram sagradas e, após a última refeição, esparramavam-se num espaço entre as duas construções que constituíam o quartel, formando uma roda de cães no meio da qual, não sei se por estratégia, se acomodava o Lobo.

Uma noite, estava eu num posto guarda a trocar umas palavras com o sargento Leote Mendes, quando o Lobo se levantou subitamente e saiu a grande velocidade, seguido com grande algazarra pelo resto da matilha. 

Atravessaram a estrada e durante algum tempo continuámos a ouvir um barulho infernal, sem conseguirmos compreender o que se estava a passar, até que os latidos cessaram e pudemos vislumbrar o regresso da matilha.

Ficámos preocupados a pensar que a reacção dos cães se devia à passagem de algum viajante, já que era hábito quando a distância a percorrer era grande, fazerem os percursos de noite a pé enquanto mastigavam noz de cola e mais preocupados ficámos quando vimos que o Lobo trazia na boca um cantil de plástico cheio de leite. 

Deduzimos e desejámos que alguém tivesse tido a ideia de desviar a atenção dos cães, das suas canelas para o cantil de leite, largando-o enquanto fugia.

Depois da operação de Samba Silate (****), alguns prisioneiros disseram que nessa noite o quartel estava já cercado e seria atacado, não fora o alarme dado pelos cães, o que os levou a pensar que factor surpresa já não surtiria efeito.

Felizmente para nós, enganaram-se. Não sei que armas traziam mas a nossa surpresa ia com certeza ser grande. Nunca se soube com certeza absoluta, eu pelo menos não soube, com que apoios esta operação contava do exterior e do interior do quartel, mas um dia depois, um cabo indígena de Bafatá que reforçava o nosso destacamento, desertou.

Depois deste episódio, que recordamos sempre nos nossos encontros anuais, a matilha começou a desaparecer. 

Uns nunca mais voltaram ao quartel, outros voltaram doentes, acabando por morrer por envenenamento e nós passámos a redobrar a nossa atenção aos sistemas de vigilância e defesa, que dependiam mais de nós que do equipamento que possuíamos, na altura limitado às G3, granadas e uma metralhadora fixa num ponto estratégico.

Todos os camaradas que estavam na altura em Bambadinca sabem, julgo eu, o que ficaram a dever àqueles animais que, por acção indirecta, acabaram por ser as únicas vítimas, pelo seu natural instinto de guardiães e defensores de um território, que também era seu.


Alberto Nascimento

 
(Revisão / fixação de texto, títiulo: LG)

2. Ficha deunidade: CCAÇ 84

Companhia de Caçadores nº 84
Identificação:  CCaç 84
Unidade Mob: RI 1 - Amadora
Crndt: Cap Inf Manuel da Cunha Sardinha | Cap Mil Inf Jorge Saraiva Parracho
Divisa: -
Partida: Embarque em 06Abr61 e 09Abr61; desembarque em 06Abr61 e 09Abr61 | Regresso: Embarque em 12Abr63

Síntese da Actividade Operacional

Foi colocada em Bissau, onde manteve a sua sede durante toda a comissão, inicialmente na dependência directa do CTIG e depois integrada no BCaç 236.

A partir de 24Ag061, destacou efectivos da ordem de pelotão e secção para várias localidades, nomeadamente para Teixeira Pinto, Farim, Mansabá e Bambadinca, em missão de soberania e segurança das populações, onde foram atribuídos aos batalhões responsáveis pelos sectores respectivos.

A partir de 15Fev62, embora mantendo o comando em Bissau, os pelotões foram todos atribuídos a outros batalhões, instalando-se em Empada, em reforço do BCaç 237 em Piche e Nova Lamego, com secções destacadas em Buruntuma, Pirada e Nova Lamego, em reforço do BCaç 238 e continuando um pelotão estacado em Bambadinca, em reforço do BCaç 238.

Em 01Abr63, a subunidade foi toda reagrupada em Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações - Não tem História da Unidade.

Fonte:  Fonte: Excerto de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág, 305.

(***) 30 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27365: Humor de caserna (218): Análise interpretativa da história de Fernandino Vigário, "O jovem alferes graduado capelão, cheio de sangue na guelra, que queria ensinar o padre nosso ao...Vigário"


(...) " a CCAÇ 84, três meses depois de aterrar no aeroporto de Bissalanca, foi literalmente fragmentada e enviada para os mais diversos pontos do território, tendo o meu pelotão tido como último destacamento, entre Novembro de 1962 e 7 ou 8 de Abril de 1963, Bambadinca, sob o Comando de Bafatá.

"O primeiro destacamento, ainda em Julho de 1961, foi para Farim, após os primeiros e ainda pouco violentos ataques a Bigene e Guidaje. Seguiu-se o destacamento de Nova Lamego, conforme é dito no seu blogue (P 1292 - Contributos) onde o pelotão foi dividido por Buruntuma, Piche e Canquelifá.

"Só estou a mencionar o 1º pelotão da Companhia, porque à grande maioria dos camaradas dos outros pelotões só voltei a ver nos dias que antecederam o embarque para a Metrópole.

"Como a memória se perde no tempo por indocumentação, ou porque a essa memória se teve medo de atribuir qualquer importância (existiam e ainda existem muitos complexos sobre a guerra colonial), resolvi dar o meu contributo para esclarecer uma dúvida colocada no seu blogue, sobre quem teria participado nos massacres de Samba Silate e Poindom, no início de 63.

"Sem conseguir precisar o mês, um dia soubemos que a PIDE estava em Bambadinca para deter o padre António Grillo, italiano da Ordem Franciscana, acusado - não sabíamos se por denúncia, se por investigação - de colaborar, proteger, e fornecer alimentos a elementos do PAIGC, a partir de Samba Silate" (...).