De qualquer modo, há outros exemplos históricos do recurso à "política da terra queimada", como estratégia militar para devastar territórios, privando o inimigo de recursos (alimentos, abrigo...).
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l Batalha do Buçaço (1810). Gravura da época. Fonte: Arquivo Histórico- Milityar | Wikipedia |
2. Para não irmos mais longe, cite-se o caso da guerra peninsular (1807-1814): durante as invasões napoleónicas, as tropas luso-britâncias aplicaram a política de terra queimada para atrasar o avanço das tropas francesas e privá-las de recursos alimentares.
A política de terra queimada envolveu a evacuação das populações, e a destruição de searas, pomares, moinhos, pontões , casas e e demais bens que não podiam ser transportados.
Essa tática foi utilizada especialmente durante a terceira invasão francesa (1810-1811), comandada por Massena, após a batalha do Buçaco (27 de setembro de 1810) e durante o avanço e recuo para as Linhas de Torres Vedras.
Tanto as tropas luso-britânicas como a guerrilha portuguesa também recorriam à destruição de gado, alimentos e outros víveres para causar fome e dificultar a subsistência dos invasores.
(i) A dupla estratégia de Wellington: As Linhas de Torres e a política de "Terra Queimada" que puseram fim às invasões napoleónicas
Durante a terceira e última invasão francesa de Portugal, em 1810, o General Arthur Wellesley, futuro Duque de Wellington, engendrou uma brilhante e implacável estratégia defensiva que se revelaria decisiva para a derrota e expulsão das tropas napoleónicas.
Esta estratégia assentava em dois pilares fundamentais e interdependentes:
- a construção das monumentais e secretas Linhas de Torres Vedras;
- a aplicação de uma rigorosa política de terra queimada.
Longe de serem uma mera barreira física, as Linhas de Torres Vedras eram um complexo e sofisticado sistema defensivo que se estendia por dezenas de quilómetros, desde o Tejo até ao Oceano Atlântico, protegendo a capital, Lisboa.
A sua construção, iniciada em segredo em novembro de 1809, um ano antes da chegada do exército francês, foi uma obra de engenharia militar, genial, sem precedentes.
O sistema era composto por três linhas defensivas principais, aproveitando as elevações naturais do terreno. Eram constituídas por uma rede de mais de 150 fortes, redutos, postos de artilharia (mais de 6 centenas de bocas de fogo), estradas militares e outros obstáculos, guarnecidos por dezenas de milhares de soldados portugueses e britânicos (cerca de 40 mil)
A primeira linha, a mais exterior e fortemente fortificada, foi concebida para deter o avanço inicial do inimigo.
A segunda linha oferecia uma posição de recuo, enquanto a terceira, mais próxima de Lisboa, visava proteger uma eventual evacuação das tropas britânicas por mar, um cenário que Wellington sempre considerou.
O grande trunfo das Linhas de Torres residia no facto de serem praticamente desconhecidas do exército invasor, comandado pelo Marechal André Massena. E mesmo dos seus construtores (cada um só conhecia a sua seção, ou local; quem tinha a visão do conjunto era o próprio Wellington e o seu engenheiro militar, o coronel Richard Fletcher.
Ao chegar às suas imediações, em outubro de 1810, após a Batalha do Buçaco, Massena deparou-se com uma barreira formidável e inesperada, que se revelaria intransponível.
(Imagem à direita: Arthur Wellesley (1769-1852), 1º duque de Welington. Fonte: Wukipedia)
(iii) A política de Terra Queimada: a fome como arma...de dois gumes
Complementar à defesa estática proporcionada pelas Linhas de Torres, Wellington implementou uma brutal, mas eficaz, política de terra queimada.
À medida que o exército anglo-luso se retirava estrategicamente para o refúgio das Linhas, foi dada ordem para que a população civil abandonasse as suas terras, levando consigo todos os bens e gado que conseguisse transportar.
Tudo o que não podia ser levado era sistematicamente destruído: colheitas foram queimadas, moinhos desmantelados, pontes derrubadas e celeiros esvaziados.
O objetivo era criar um vasto deserto à frente das Linhas, privando o exército francês de qualquer meio de subsistência. A proclamação de Wellington foi clara: nada deveria ser deixado para trás que pudesse ser utilizado pelo inimigo.
Esta política teve consequências devastadoras para a população portuguesa, que sofreu enormes privações, fome e doenças. (No entanto, do ponto de vista militar, foi um golpe de mestre: o exército de Massena, que dependia da requisição de mantimentos no terreno para se abastecer, viu-se rapidamente a braços com uma crise logística insustentável.)
(iv) O desfecho da invasão: a vitória da estratégia das Linhas de Torres e da "política de terra queimada"
Enquanto o exército anglo-luso se encontrava seguro e bem abastecido dentro das Linhas, com o porto de Lisboa a garantir o fornecimento contínuo de homens e provisões, as forças francesas definhavam do lado de fora.
Durante meses, Massena manteve as suas tropas (3 exércitos, 65 mil homens) em frente às Linhas, na esperança de que Wellington saísse para uma batalha em campo aberto, o que nunca aconteceu.
A fome, as doenças e o constante assédio por parte das milícias portuguesas foram dizimando o exército francês. Sem esperança de receber reforços ou mantimentos e confrontado com a aproximação do inverno, Massena foi forçado a ordenar a retirada em março de 1811.
A perseguição movida pelas tropas de Wellington transformou a retirada francesa num pesadelo e num desastre, culminando na sua expulsão definitiva de Portugal.
A combinação genial das Linhas de Torres Vedras com a política de terra queimada demonstrou a visão estratégica de Wellington e a resiliência do povo português.
Esta dupla abordagem não só salvou Portugal da ocupação napoleónica (e partilha do território, que seria dividido em três partes), como também marcou um ponto de viragem na Guerra Peninsular, contribuindo decisivamente para o eventual colapso do império de Napoleão Bonaparte.
Claro, há o reverso da medalha: resultou em enormes sofrimentos para a população portuguesa, incluindo assassinatos e maus-tratos, ruína agrícola, saques e incêndios em cidades, vilas e aldeias.
Muitas aldeias foram evacuadas e transformadas em territórios desérticos, levando à fome, a epidemias e à escalada dos preços dos géneros alimentícios. O sacrifício da terra queimada, embora essencial para travar os franceses, empobreceu grandemente o país, justificando-se pelo objetivo de proteger a independência nacional.
(v) Um rasto de morte e desolação
As Invasões Napoleónicas, que assolaram Portugal entre 1807 e 1814, deixaram um profundo rasto de morte e destruição.
É extremamente difícil apurar o número exato de vítimas, as estimativas apontam para uma perda demográfica significativa, que terá ultrapassado as 200 mil pessoas, podendo mesmo aproximar-se das 300.000, entre civis e militares.
Este valor representa uma quebra demográfica considerável para um país que, no início do século XIX, contava com uma população total de aproximadamente 2,9 a 3 milhões de habitantes. (E que só duplicaria 100 anos depois, 6 milhões em 1910.)
A contagem precisa das vítimas é dificultada pela natureza do conflito, que não se limitou a batalhas campais. A fome, as epidemias e os massacres perpetrados sobre a população civil foram responsáveis pela grande maioria das mortes.
A terceira invasão, liderada pelo marechal Massena em 1810-1811, é consensualmente considerada a mais brutal e devastadora para os portugueses.
No início do século XIX, a população portuguesa rondava os 3 milhões de pessoas;
- dados mais específicos indicam que em 1801 a população era de 2.931.930 habitantes;
- durante o período das invasões, nomeadamente em 1811, registou-se uma diminuição para 2.876.602 habitantes, um reflexo direto do impacto da guerra, da fome e das doenças na demografia do país.
As múltiplas ( e interligadas) causas da elevada morbimortalidade
Ações militares: as batalhas, escaramuças e cercos ao longo dos sete anos de conflito resultaram num número significativo de baixas militares, tanto do exército regular como das milícias e ordenanças que se opunham aos invasores; as tropas regulares portuguesas (cerca de 20 a 30 mil homens mobilizados) sofreram baixas consideráveis: os números variam, mas as estimativas apontam para em 10 a 15 mil mortos em combate ou por doença, sem contar desertores e incapacitados.
Massacres e violência sobre civis: as tropas francesas (Junot, Soult e Massena), e por vezes também as aliadas, cometeram diversas atrocidades contra a população civil; vilas e aldeias foram pilhadas e queimadas, e os seus habitantes massacrados; a violência fazia parte da tática de intimidação e retaliação contra a resistência popular; há relatos contemporâneos que falam em dezenas de milhares de civis mortos diretamente (talvez 40 a 60 mil ao longo das campanhas.
Fome generalizada: a política de "terra queimada", adotada tanto pelas tropas em retirada como pela resistência para dificultar o avanço inimigo, levou à destruição de colheitas e à requisição forçada de alimentos; o episódio mais devastador foi a política de terra queimada durante a 3.ª Invasão (1810-11): populações inteiras do norte e centro foram obrigadas a abandonar casas e colheitas para dificultar a progressão de Masséna.
- Epidemias: a subnutrição, as más condições de saúde e higiene, a deslocação de populações, a concentração de refugiados e tropas criaram o ambiente ideal para a propagação de doenças como o tifo, a disenteria e a varíola, que ceifaram milhares de vidas.
Vários historiadores (como Oliveira Martins) falam que Portugal terá perdido perto de 300 mil pessoas no total das invasões.
A combinação destes fatores resultou numa catástrofe demográfica que marcou profundamente a sociedade portuguesa. A perda de vidas, aliada à destruição de infraestruturas e à desorganização social e económica, deixou o país exaurido e contribuiu para a instabilidade política e social que se seguiu ao fim do conflito.
A perda de quase um décimo da sua população (cerca de 300 mil num total de 3 milhões em 1801), num período de sete anos (1807/14) representou uma catástrofe demográfica de enormes proporções para Portugal e marcou um dos períodos mais mortíferos da sua história.
Com a fuga da corte para o Brasil (donde só regressará em 1821), as invasões napoleónicas e a crescente influência inglesa na vida política nacional, assiste-se, por outro aldo, à destruição do incipiente desenvolvimento do capitalismo industrial em Portugal, iniciado em meados do séc XVIII, sobretudo com o pombalismo.
A política de terra queimada (sobretudo na 3ª invasão, 1810/11) ficou marcada na memória popular portuguesa, especialmente nas regiões centro e norte do país, como uma das mais severas provações já enfrentadas pela população civil. Foram relatados casos extremos de devastação onde até estradas e casas foram destruídas para impedir o acesso dos franceses a qualquer recurso útil.
A expressão "ir p'ró maneta" vem dessa época. O "maneta" era a alcunha do Louis Henri Loison (1771-1816): perdera um braço num episódio de caça, foi talvez o mais sanguinário e rapace dos generais franceses de Napoleão, participou nas três invasões franceses (facto a comprovar)...