Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > Rua principal de Contuboel, vendo-se à direita a célebre carrinha Ford do Manel Djoquim. Esta foto, sendo de 1969, foi tirada no tempo seco... Portanto, só pdoe ser do 1º semestre de 1969. O Valdemar Queiroz esteve em Contuboel, no Centro de Instrução Militar, entre fevereiro e julho de 1969. O nosso editor Luís Graça também lá esteve, mas já no inicío da época das chuvas (de 2 de junho a 18 de julho de 1969). O "homem do cinema" fazia uma paragem, ficando retido em Bissau ou fazendo férias em Lisboa, no pico da época das chuvas (, o que coincidia com as férias grandes escolares das filhas na capital do Império, com a mãe, Julinha, e a empregada cabo-verdiana). (Esta e a foto de baixo foram reproduzidas no livro de Lucinda Aranha (O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim. Alcochete: Alfarroba, 2018), na pág. 96.
Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > O Valdemar Queiroz a ver os cartazes, espetados numa árvore, do filme da semana : Riffi em Paris, película francesa, de 1966, dirigida por Denys de La Patellière e com Jean Gabin no principal papel... Filme de gângsters, popular na época... Chegava à Guiné três anos depois...Melhor do que nada... Hoje os guineenses não têm uma única sala de cinema..
Uma ternura (e uma preciosidade), esta foto!... A "fábrica de sonhos", ambulante, era a da nhô Manel Djoquim. Com ele, a "sétima arte" chegava a sítios recônditos de África...
Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Notas de leitura:
Lucinda Aranha - O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim. Alcochete: Alfarroba, 2018, 165 pp.
Prometi a mim mesmo, e à autora, fazer uma nota de leitura, mais detalhada e pessoal, deste livrinho que só agora, ao longo do verão passado, fui lendo e anotando, de lápis na mão, como eu (ainda) gosto de ler os livros, em papel.
Devo, de resto, à autora, minha vizinha e nossa grã-tabanqueira, uma palavra de apreço e agradecimenhto pela oferta do livro com a seguinte dedicatória:
Cortesia de: Lucinda Aranha Antunes - Andanças na Escrita |
Este agradecimento ela tornou-no também público na sua página do Facebook, Lucinda Aranha Antunes - Andanças na Escrita, 28 de maio de 2019:
"Agradeço à Tabanca Grande e ao blogue luisgracaecamaradasdaguine o apoio que me deram nas fases de investigação e divulgação do meu novo livro."
A autora vive na Praia de Santa Cruz, no vizinho concelho de Torres Vedras, é licenciada em História, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É professora, reformada, do ensino secundário. É coautora de programas e guias de apoio orientadores de trabalho de alunos e professores. É autora dos livros "Melhor do que cão é ser cavaleiro" (2009) e "no Reino das orelhas de burro"(2012), editados pela Colibri. Integra a nossa Tabanca Grande, desde 15 de abril de 2014.
O livro "O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim" (e o seu "making of") suscitou um bastante interesse no nosso blogue e já foi objeto, na devida altura, de uma excelente recensão do nosso crítico literário, Mário Beja Santos (*).
2. Destaco, entretanto, aqui, outros comentários publicados no nosso blogue. Por exemplo, Valdemar Queiroz contribuiu com duas preciosas fotos, que documentam a passagem, por Contuboel, no 1º semestre de 1969, do homem do cinema, e que ele fez chegar à autora (, voltando nós a reproduzi-las, acima).
E, a este propósito, o Valdemar Queiroz escreveu o seguinte, como comentário no poste P1299 (**);
Eu próprio, Luís Graça, também já tinha feito, em 16/4/2014, muito antes do livro sair, o seguinte comentário (**):
"Olá, Lucinda: Como agora se usa dizer, principalmente entre mulheres (com pedido de desculpas...), é um texto muito 'giro'. Se alguém disser isto do seu texto, considere um insulto. É mais!
Tanto um como o outro, não só o conheceram como têm para com ele uma "dívida de gratidão" e guardam memórias muito impressivas de alguns dos filmes que ele projetou quer em Fajonquito (no norte da Guiné, setor de Contuboel), quer no leste, na antiga Nova Lamego (hoje, Gabu).
(...) "Cara Lucinda Aranha: (...) Venho por este meio agradecer ao seu pai, porque eu adorava cinema, era muito novo, estava perto de completar os 5 anos aproximadamente, lembro-me sempre de pedir dinheiro a minha mãe para ir ver os filmes, na maioria das vezes não pagava porque os guardas da Casa Gouveia conheciam-me porque levava leite de vaca para os donos da Casa Gouveia [, em NovaLamego].
"Os filmes eram projectados no quintal da Casa Gouveia, eu não queria ir à escola porque não era tradição na minha família alguém ir para escola, mas estava sempre a perguntar o que se passava nos filmes e, como as pessoas estavam muito concentrados para ler a legenda, não dava para me explicarem sempre o que se passava. Uum dia disse para a minha mãe que gostaria de perceber o que se passava nos filmes porque ninguém me explicava nada, ela disse me: 'Então chegou altura de pensares seriamente em ir para a escola'... Aceitei de imediato porque percebi de que sem a escola não poderia interpretar os filmes."
"Comecei a ter explicação numa senhora portuguesa que era professora primária, morava ao pé da minha casa, nunca mais abandonei a escola, não sou ninguém, mas pelo menos sou aquilo que sou graças ao seu pai, talvez se o senhor Manel Djoquim nunca tivesse chegado a Nova Lamego eu seria uma outra pessoa, até poderia ido à escola mas não seria da forma que aceitei e gostei da escola.
"Hoje passado todo este tempo recordo-me dos bons tempos da minha cidade, e como o seu pai nos ajudou a ver o mundo, nem rádio tínhamos em casa, de repente a começar a ver filmes, Tarzan, Sandokan, o Tigre da Malásia, Pierre Brice & Les Barker, como nos ensinou a ver outro lado do mundo através dos filmes... O seu pai era um homem bom, nunca ralhava com as crianças, sempre que notava que as crianças estava a furar a barreira, fazia de conta que não estava a ver, ele amava a sua profissão, gostava do povo, sentia o povo, com os seus calções que ficaram eternizados mesmo depois da sua partida, calções de Manel Djoquim." (...)
E, a este propósito, o Valdemar Queiroz escreveu o seguinte, como comentário no poste P1299 (**);
"Li com muito interesse o seu texto no nosso blogue. Julgo ter conhecido o sr. Manuel Joaquim Prazeres, pois vi alguns filmes em Contuboel e Nova Lamego que deviam ter sido exibidos por ele. Não devia de haver outra pessoa, em 1969/70, a exibir os filmes e até falei com ele.
"Falámos do critério do preço dos bilhetes: um soldado pagava um valor, o cabo outro valor e assim diferia conforme a patente. Ele dizia-me que havia alguns sargentos e oficiais que tiravam os galões para pagarem menos pelo bilhete. Também falámos da maneira despreocupada como ele se deslocava, de terra em terra, na sua carrinha, com um criado e, apenas, uma pequena espingarda para matar alguma lebre, como ele dizia. Agora, lendo o seu texto, percebemos a razão da facilidade com que o Sr. Manuel Prazeres se movimentava naquelas paragens.
"Falámos do critério do preço dos bilhetes: um soldado pagava um valor, o cabo outro valor e assim diferia conforme a patente. Ele dizia-me que havia alguns sargentos e oficiais que tiravam os galões para pagarem menos pelo bilhete. Também falámos da maneira despreocupada como ele se deslocava, de terra em terra, na sua carrinha, com um criado e, apenas, uma pequena espingarda para matar alguma lebre, como ele dizia. Agora, lendo o seu texto, percebemos a razão da facilidade com que o Sr. Manuel Prazeres se movimentava naquelas paragens.
"No meu álbum fotográfico e nas fotos de Contuboel aparece na foto da rua Principal, no lado direito, a carrinha que o Sr. Prazeres se deslocava e noutra foto os cartazes do filme 'Rififi em Paris' por ele exibido." (*)
"Que vidas!... Que histórias de vida!... Manuel Joaquim dos Prazeres só pode ser um descendente direto dos 'lançados', dos grandes aventureiros de Quinhentos, do 'tuga' que ama a África e os grandes espaços, e as suas gentes... E que sabe fazer a ponte entre a natureza e a cultura, a geografia e a história, o real e o imaginário, os bichos e os homens...
"Vi, por certo, algum filme dele, projetado na parede das instalações do comando ou no refeitório das praças, em Bambadinca e, antes, em Contuboel, entre junho de 1969 e março de 1971...
"Que belo texto, Lucinda!... Fico com ganas de ler o livro (...).
"Lucinda, mesmo não sendo tu filha de um combatente (em termos técnicos), és filha de alguém, que amou muito aquela terra, bem como Cabo Verde, e que foi uma testemunha privilegiada de uma época privilegiada... Até pelas figuras que conheceu!... És bem vinda à nossa Tabanca Grande, onde nos tratamos por tu, os camaradas... Mão me levas a mal que o faça, contigo, amiga, isso ajuda a encurtar distâncias... e a seguir a picada a direito... Bom sucesso para o livro!".
"Vi, por certo, algum filme dele, projetado na parede das instalações do comando ou no refeitório das praças, em Bambadinca e, antes, em Contuboel, entre junho de 1969 e março de 1971...
"Que belo texto, Lucinda!... Fico com ganas de ler o livro (...).
"Lucinda, mesmo não sendo tu filha de um combatente (em termos técnicos), és filha de alguém, que amou muito aquela terra, bem como Cabo Verde, e que foi uma testemunha privilegiada de uma época privilegiada... Até pelas figuras que conheceu!... És bem vinda à nossa Tabanca Grande, onde nos tratamos por tu, os camaradas... Mão me levas a mal que o faça, contigo, amiga, isso ajuda a encurtar distâncias... e a seguir a picada a direito... Bom sucesso para o livro!".
Por sua vez, o nosso camarada e escritor Alberto Branquinho também se apressou a saudar a Lucinda e o seu projeto literário. Ele tem memórias vivas dessas sessões de cinema ambulante que chegavam ao mato:
"Olá, Lucinda: Como agora se usa dizer, principalmente entre mulheres (com pedido de desculpas...), é um texto muito 'giro'. Se alguém disser isto do seu texto, considere um insulto. É mais!
"Pois aqui estou para lhe dizer, enquanto este post está 'vivo', que tive oportunidade de conhecer o seu pai em Bambadinca. Só podia ser ele, pois não havia outro, concerteza, calcorreando a Guiné naqueles tempos arriscados, deslocando-se de barco ou nas colunas militares. A Bambadinca chegou de barco (vindo de Bissau?). Montou a tenda de lona e esteve dois ou três dias. Num extremo o projector e no outro extremo a tela/écrã. Os espectadores acomodados sobre a direita e a esquerda da projecção. Havia uns quantos bancos no espaço central, onde ele acomodava oficiais e sargentos.
O problema não era cobrar os bilhetes na porta/abertura que a lona tinha para esse efeito, era controlar/impedir as 'entradas' da garotada entre a lona e o chão, a toda a volta. Ele tinha um ou dois ajudantes, se bem me lembro para esse efeito (e, concerteza, para a montagem da estrutura).
O problema não era cobrar os bilhetes na porta/abertura que a lona tinha para esse efeito, era controlar/impedir as 'entradas' da garotada entre a lona e o chão, a toda a volta. Ele tinha um ou dois ajudantes, se bem me lembro para esse efeito (e, concerteza, para a montagem da estrutura).
"Lembro-me de estar a projectar um filme francês ( que não era muito antigo e a cópia tinha uma boa imagem) e de repente: pló!, ficámos às escuras. O seu pai, que estava mesmo por baixo do projector, desatou aos berros contra a garotada, que ria às gargalhadas e fugia. Retirou a manga (extremamente madura) da lente, fez uma limpeza sumária, enquanto emitia uns desabafos, e a projecção continuou até final.
"Gostei que tivesse feito recordar o que atrás escrevo, desejo-lhe felicidades e sucesso para o livro."
3. Vejo, com agrado, que a autora soube tomar boa nota destas e doutras observações e memórias (e integrá-las no seu livro), destes e doutros dos nossos leitores, que ainda conheceram o personagem, "Manel Djoquim". Foi o caso, pro exemplo, dos "djubis" guineenses, Cherno Baldé (Fajonquito) e Vital Sauane (Gabu) (***).
"Gostei que tivesse feito recordar o que atrás escrevo, desejo-lhe felicidades e sucesso para o livro."
Quero aqui voltar a destacar dois desses comentários desses "miúdos", fascinados pelo cinema ambulante do "Manel Djoquim".
O Vital Suane está grato ao "Manel Djoquim" porque foi ele uma das pessoas que lhe mostrou, indiretamente, a importância que tinha a escola, para um jovem guineense. Foi o cinema que, de certo modo. lhe abriu as portas da escola ou o levou até aos bancos da escola:
(...) "Cara Lucinda Aranha: (...) Venho por este meio agradecer ao seu pai, porque eu adorava cinema, era muito novo, estava perto de completar os 5 anos aproximadamente, lembro-me sempre de pedir dinheiro a minha mãe para ir ver os filmes, na maioria das vezes não pagava porque os guardas da Casa Gouveia conheciam-me porque levava leite de vaca para os donos da Casa Gouveia [, em NovaLamego].
"Os filmes eram projectados no quintal da Casa Gouveia, eu não queria ir à escola porque não era tradição na minha família alguém ir para escola, mas estava sempre a perguntar o que se passava nos filmes e, como as pessoas estavam muito concentrados para ler a legenda, não dava para me explicarem sempre o que se passava. Uum dia disse para a minha mãe que gostaria de perceber o que se passava nos filmes porque ninguém me explicava nada, ela disse me: 'Então chegou altura de pensares seriamente em ir para a escola'... Aceitei de imediato porque percebi de que sem a escola não poderia interpretar os filmes."
"Comecei a ter explicação numa senhora portuguesa que era professora primária, morava ao pé da minha casa, nunca mais abandonei a escola, não sou ninguém, mas pelo menos sou aquilo que sou graças ao seu pai, talvez se o senhor Manel Djoquim nunca tivesse chegado a Nova Lamego eu seria uma outra pessoa, até poderia ido à escola mas não seria da forma que aceitei e gostei da escola.
"Hoje passado todo este tempo recordo-me dos bons tempos da minha cidade, e como o seu pai nos ajudou a ver o mundo, nem rádio tínhamos em casa, de repente a começar a ver filmes, Tarzan, Sandokan, o Tigre da Malásia, Pierre Brice & Les Barker, como nos ensinou a ver outro lado do mundo através dos filmes... O seu pai era um homem bom, nunca ralhava com as crianças, sempre que notava que as crianças estava a furar a barreira, fazia de conta que não estava a ver, ele amava a sua profissão, gostava do povo, sentia o povo, com os seus calções que ficaram eternizados mesmo depois da sua partida, calções de Manel Djoquim." (...)
(...) Eu conheci o Sr. Manuel Joaquim desde os meus 8/9 anos de idade em Fajonquito. Ele vinha à nossa aldeia, pelo menos, uma vez, em cada 2/3 meses, no seu velho camião carregado da sua máquina de sonhos para nos alegrar, e foi graças a ele que fomos descobrindo grande parte da cultura ocidental estilizada em gestos ousados, olhares atrevidos, carícias públicas e mil pedacos de um universo que entrava pouco a pouco dentro da nossa forma de ser e estar na vida.
"Pessoalmente, para o resto da minha vida estaria marcado pela postura e coragem dos actores (Cowboys e Índios indomáveis), o que, no fundo, era muito parecido com aquilo que nos tentavam inculcar nas nossas cerimónias iniciáticas designadas de Fanado tradicional.
"Dele ainda recordo-me dos seus enormes calções, meias esticadas até aos tornozelos e chapéu de abas largas, tipo Cipaio. A certa altura, um dos seus ajudantes era o Camões (zarolho) e por isso acreditavámos que com esta limitação visual podiamos sempre aproveitar para entrarmos sem que ele nos visse. Normalmente eramos apanhados e soltos de seguida dentro do recinto fechado para a projeção do filme.
"Naquela idade não precisávamos de cadeiras, e quando a projeção se iniciava, pouco a pouco, enchíamos o recinto, acabando por nos sentarmos mesmo por baixo do pano das imagens, importante mesmo era entrar e assim poder participar, no dia seguinte, de mais um episódio marcante, uma história de vida que só voltaria a acontecer passados 2 ou 3 meses.
"Quem não ficava contente com a chegada do Manel Djoquim eram as nossas pobres mães, pois sabiam que ele vinha, por certo, roubar, através dos seus filhos as pequenas economias conseguidas durante semanas ou meses com muito suor e canseira. (...)
(...) "No meu tempo [, 1964/66,] dizia-se que o PAIGC concedia a livre circulação a duas individualidades da Guiné, no entanto não alinhadas: ao Dr. Maurício, pela sua missão de erradicar a lepra, e ao Manuel Joaquim, no seu negócio de projecção de filmes, que também serviam para 'animar' a malta do PAIGC.
"Não só não os atacavam como não raro lhe apareciam a desviá-los das minas A/C [, anti-carro]. Nem a carrinha Peugeot do Dr. Maurício nem o Ford 'machimbonbo' do Manuel Joaquim alguma vez foram molestados. Lembro-me do Manuel Joaquim circular sem escolta entre Bafatá, Nova Lamego e terá ido a Bajocunda e Canquelifá. Conheci a Dr.ª Lucínda num encontro da Tabanca Grande em Monte Real e aproveito para a felicitar pelo seu livro e desejar-lhe Boas Festas" (...).
5. Manuel Joaquim dos Prazeres (1901-1977) é a figura central deste livro, de difícil classificação quanto ao género: Romance ? Sim, mas também biografia, historiografia, memórias de família...
A autora. filha do "Nequinhas" (nominho do empresário e homem do cinema, homem dos sete ofícios) disse-nos que se tratava de uma "biografia ficcionada". Mas há muitos factos e personagens que aqui se evocam e descrevem, que estão suficientemente documentados pelo álbum fotográfico do arquivo da família, pela pesquisa documental e pela memória oral.
Não é apenas a biografia, mais ou menos romanceada, de um pequeno empresário, "self made man", africanista, o último dos africanistas, que leva o cinema a todos os recantos da Guiné entre 1946 e 1971, depois de ter vivido e trabalhado duas décadas em Cabo Verde, é também a saga de sua família (ou famílias), narrada, com muita ternura, imaginação e humor, pela filha mais nova do 2º casamento (com a Julinha), a Lucinda.
A Lucinda, no livro, e se não erro na minha leitura, aparece como um "alter ego", a Maria do Carmo, a "rádio Andorra" (p. 14), "sempre sintonizada nas últimas notícias, difundindo dramas que chegavam invariavelmente aos ouvidos do pai [, de sete filhos, 1 rapaz e 6 raparigas, de dois casamentos,] e resultavam em novos dramas, novos sermões, novos castigos"... Um pai ausente e presente, à distância, que regressava todos os anos, a Lisboa, na época das chuvas, deixando em Bissau, em repouso, por escassos meses, a sua velha Ford e a tralha toda do cinema ambulante. Aproveitava a estadia em Lisboa não só para compensar a família das longas ausências no mato como para escolher e alugar. às distribuidoras, os filmes da próxima temporada.
(Continua)
"Pessoalmente, para o resto da minha vida estaria marcado pela postura e coragem dos actores (Cowboys e Índios indomáveis), o que, no fundo, era muito parecido com aquilo que nos tentavam inculcar nas nossas cerimónias iniciáticas designadas de Fanado tradicional.
"Dele ainda recordo-me dos seus enormes calções, meias esticadas até aos tornozelos e chapéu de abas largas, tipo Cipaio. A certa altura, um dos seus ajudantes era o Camões (zarolho) e por isso acreditavámos que com esta limitação visual podiamos sempre aproveitar para entrarmos sem que ele nos visse. Normalmente eramos apanhados e soltos de seguida dentro do recinto fechado para a projeção do filme.
"Naquela idade não precisávamos de cadeiras, e quando a projeção se iniciava, pouco a pouco, enchíamos o recinto, acabando por nos sentarmos mesmo por baixo do pano das imagens, importante mesmo era entrar e assim poder participar, no dia seguinte, de mais um episódio marcante, uma história de vida que só voltaria a acontecer passados 2 ou 3 meses.
"Quem não ficava contente com a chegada do Manel Djoquim eram as nossas pobres mães, pois sabiam que ele vinha, por certo, roubar, através dos seus filhos as pequenas economias conseguidas durante semanas ou meses com muito suor e canseira. (...)
4. Está visto que a história do nhô Manel Djoquim, caçador, fotógrafo, homem dos sete ofícios, empresário de cinema ambulante em Cabo Verde (1929/1943) e depois na Guiné (1943/73), finalmente posta em biografia (ficcionada) pela sua filha Lucinda Aranha Antunes (que só tem vivências indiretas de Cabo Verde e da Guiné), dava um belo filme como o inesquecível "Cinema Paraíso" (1988), escrito e dirigido por Giuseppe Tornatore, com música de Ennio Morricone, filme que já vi e revi três vezes.
De resto, como já aqui sublinhámos diversas vezes, tanto Cabo Verde como a Guiné desses tempos têm "matéria-prima" para grandes filmes... Oxalá os nossos realizadores (portugueses, guineenses, cabo-verdianos...) tivessem condições para pegar em histórias, algo riocambolescas mas ternurentas como esta... Estamos a falar do tempo colonial e da guerra colonial, tempos que pura e sinplesmente não podem ser "diabolizados", fazendo tábua da "petite histoire" dos homens...
Manuel Luís Lomba também se recorda do "Manel Djoquim" e faz-nos esta confidência, algo insólita, em comentário, de 18/12/2018 ao poste P19302 (***):
Manuel Luís Lomba também se recorda do "Manel Djoquim" e faz-nos esta confidência, algo insólita, em comentário, de 18/12/2018 ao poste P19302 (***):
"Não só não os atacavam como não raro lhe apareciam a desviá-los das minas A/C [, anti-carro]. Nem a carrinha Peugeot do Dr. Maurício nem o Ford 'machimbonbo' do Manuel Joaquim alguma vez foram molestados. Lembro-me do Manuel Joaquim circular sem escolta entre Bafatá, Nova Lamego e terá ido a Bajocunda e Canquelifá. Conheci a Dr.ª Lucínda num encontro da Tabanca Grande em Monte Real e aproveito para a felicitar pelo seu livro e desejar-lhe Boas Festas" (...).
"Manel Djoquim"... Cortesia de Lucinda Aranha Antunes (2018) |
A autora. filha do "Nequinhas" (nominho do empresário e homem do cinema, homem dos sete ofícios) disse-nos que se tratava de uma "biografia ficcionada". Mas há muitos factos e personagens que aqui se evocam e descrevem, que estão suficientemente documentados pelo álbum fotográfico do arquivo da família, pela pesquisa documental e pela memória oral.
Não é apenas a biografia, mais ou menos romanceada, de um pequeno empresário, "self made man", africanista, o último dos africanistas, que leva o cinema a todos os recantos da Guiné entre 1946 e 1971, depois de ter vivido e trabalhado duas décadas em Cabo Verde, é também a saga de sua família (ou famílias), narrada, com muita ternura, imaginação e humor, pela filha mais nova do 2º casamento (com a Julinha), a Lucinda.
A Lucinda, no livro, e se não erro na minha leitura, aparece como um "alter ego", a Maria do Carmo, a "rádio Andorra" (p. 14), "sempre sintonizada nas últimas notícias, difundindo dramas que chegavam invariavelmente aos ouvidos do pai [, de sete filhos, 1 rapaz e 6 raparigas, de dois casamentos,] e resultavam em novos dramas, novos sermões, novos castigos"... Um pai ausente e presente, à distância, que regressava todos os anos, a Lisboa, na época das chuvas, deixando em Bissau, em repouso, por escassos meses, a sua velha Ford e a tralha toda do cinema ambulante. Aproveitava a estadia em Lisboa não só para compensar a família das longas ausências no mato como para escolher e alugar. às distribuidoras, os filmes da próxima temporada.
(Continua)
___________
(*) Vd. postes de:
Notas do editor:
(*) Vd. postes de:
17 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19300: Notas de leitura (1132): “O Homem do Cinema, A la Manel Djoquim i na bim”, por Lucinda Aranha Antunes; edição da Alfarroba, 2018 (1) (Mário Beja Santos)
(***) Vd. poste de 18 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19302: (Ex)citações (348): O 'cinema Paraíso'... de Fajonquito e de Nova Lamego.. Recordações de nhô Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante (Cherno Baldé / Vital Sauane)
(****) Último poste da série > 18 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20466: Manuscrito(s) (Luís Graça) (175): Afinal, como explicar a História às criancinhas, se o futuro a Deus pertence?