quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20466: Manuscrito(s) (Luís Graça) (175): Afinal, como explicar a História às criancinhas, se o futuro a Deus pertence?

O Alzheimer da História 

por Luís Graça

Davam longos passeios, 
ao domingo,
os lisboetas,
de jardim em jardim, 

ao longo do rio,
que afinal já não era rio,

era braço de mar salgado.

A pé. 

Tinham trocado, 
na feitoria de Arguim,
os seus cavalos brancos, 

puríssimos lusitanos,
com os seus belos arreios,

de couro e madrepérola,
por escravos negros,

negros da Guiné.
E alguns, futuristas, por trotinetas,

talvez já a pensar 
que o clima estava a mudar.

E, no seu encalce, os turistas, voyeuristas,
com as suas superzooms digitais,
subiam as sete colinas 

para melhor ver as vistas
e os vitrais das catedrais

e, outros até, as pernas das meninas.

Grande era o mundo,
visto do miradouro da Senhora do Monte,
e Portugal, tão pequenino e caleidoscópico,
ali tão perto, 

ali ao fundo.

Já não passavam mais comboios de navios,
nem caravelas nem naus
ao largo do Bugio.
Até as fragatas e as varinas
tinham sido varridas pelo último tsunami.

Perderam-se, por má sorte das armas,
ou quiçá por algum “Te Deum” desafinado,
as joias da coroa, 
Dradrá, Nagar Aveli, 
Goa, Damão e Diu.

Junto às ruínas do palácio dos Estaus,
um manjaco do Canchungo
varria o lixo da História
para debaixo do tapete.

E era feliz, triplamente feliz,

se é que alguém pode ser triplamente feliz:
feliz por ter um emprego,
cama, mesa e roupa lavada.

Uma retrete e um trompete. 
Tocava na orquestra Todos,
em prol da implosão/inclusão
dos cinco dedos da mão.

E um crachá da União das Freguesias
da Mouraria e da Judiaria,

finalmente juntas, 
ao fim de tantos séculos.
“Manga de bom pessoal”,
jurava o antigo escravo, agora forro.

Feliz porque na ceia de Natal 
da Santa Casa da Misericórdia,
que sorte!,
haveria pencas, batatas e bacalhau,
como no tempo do seu antigo senhor 
que era do Norte.

E feliz, enfim, por não ter memória:
- Teixeira Pinto ?...
- Sim, o capitão-diabo!
- Capitão...?

Não, nunca ouvira falar de tal senhor.

Coitados dos povos que sofrem
da doença do Alzheimer da História!
Mas pode ser que tenhas mais sorte, 
meu irmão, 
na próxima vaga migratória,
na próxima reencarnação, 
na lotaria da genética,
na transmigração das almas,
na girândola da vida e da morte,

na revisão da História,
que está sempre a ser aumentada e melhorada.


Em novembro era verão,
ainda davam longos passeios pelo rio, 

os lisboetas, 
levando pela mão os seus loucos, 
mais os mudos, os surdos, e os cegos,
os inválidos do comércio
e os da última das guerras coloniais...
E quem mais ?
Eu sei lá, 
que a procissão ainda vai no adro,
mas ainda descortino, 
entre Xabregas e o Terreiro do Paço,
os sete anões da corte,
e os seus poetas menores,
e os avós e os netos da criadagem,
os cães e os gatos.
Ah!, e a gaiola com o periquito 
de algum pagem.


A Branca de Neve desaparecera há muito,

quando, ao que parece,
foi levar um dos sete anões, aflito,
a fazer chichi na praia de Pedrouços,
que era a praia da ralé.
Outros dizem que fora raptada
pelos corsários de Salé,
quando brincava às casinhas 

na praia da Torre de Belém.

Meus Deus!,
e os canhões do forte de São Julião da Barra,
logo ali ao lado ?!...
E a fábrica da pólvora em Barcarena ?!...
E ninguém chamou o 112?!

Ah!, tinha tudo para ser feliz, 
a pobre Branca de Neve,
no meu país. 
Foi uma pena.

Afinal, como explicar a História às criancinhas,
se o futuro a Deus pertence ?!

Lisboa, 25 de novembro de 2015/2019. Revisto.
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Nota do editor:

Último poste da série de 3 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20309: Manuscritos (Luís Graça) (174): as cores quentes e frias do outono da Tabanca de Candoz - III (e última) Parte

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