sábado, 31 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25898: Os nossos seres, saberes e lazeres (643): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (168): Igreja de Nossa Senhora da Piedade e Santo Quintino, não há mostruário de azulejo como este (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
A Igreja de Nossa Senhora da Piedade e Santo Quintino é o mais rico património edificado de Sobral de Monte Agraço, monumento nacional. Logo o aspeto assaz peculiar de ter uma fachada que incorpora vestígios ao lado do belo pórtico da igreja do século XIII, então denominada Igreja de Santa Maria do Monte Agraço. Deve-se a atual construção a D. Manuel I, é um mostruário de azulejaria profuso, do século XVI ao século XVIII, inclusive no altar-mor há azulejaria hispano-mourisca. Surpreende pela sua dimensão, vai atraindo o visitante para aquela capela-mor com duas capelas laterais, o olhar derrama-se pela versatilidade dos temas, o altar de Santo Quintino é um chamariz para a devoção popular, o púlpito de uma grande beleza, representando os Evangelistas. Habitualmente fechada, é possível visitá-la aos sábados entre as 15h e as 17h, e aos domingos entre as 10h e as 12h, após a celebração da missa. Se o visitante dispuser de tempo, tem muita coisa a ver no concelho de Sobral de Monte Agraço, logo o Centro de Interpretação das Linhas de Torres, o centro histórico, diferentes igrejas, o circuito do Alqueidão na Serra do Olmeiro.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (168):
Igreja de Nossa Senhora da Piedade e Santo Quintino, não há mostruário de azulejo como este – 1

Mário Beja Santos

A turma de alunos do professor João Martins, onde me incorporo nas aulas de ginástica de manutenção para gente marcadamente sénior, recebeu o convicto do dito professor de ir almoçar num domingo em sua casa, situada em S. Pedro da Cadeira, no limite do concelho de Torres Vedras; um grupo desses alunos organizou uma visita à igreja de Nossa Senhora da Piedade e Santo Quintino no concelho de Sobral de Monte Agraço, terra que tem muito para ver, logo o Centro de Interpretação das Linhas de Torres, o seu centro histórico, um conjunto de templos religiosos onde sobressai um monumento nacional de inequívoca originalidade, este que viemos visitar . Sobre esta igreja de S. Quintino encontra-se a seguinte referência numa obra muito bela intitulada “Tesouros Artísticos de Portugal”, uma edição das Seleções do Reader’s Digest, 1976, ainda se consegue comprar este importante calhamaço por 1€ na Feira da Ladra: “Foi construída no primeiro terço do século XVI. O portal, datado de 1530, apresenta uma curiosa simbiose de elementos decorativos manuelinos e renascentistas. O interior é de três naves de cinco tramos, com cobertura de madeira. Os arcos, de volta perfeita, assentam em colunas cilíndricas, com o fuste decorado a meio por um anel e com capitéis de flutas e palmetas, terminando em ábacos quadrados. A cabeceira é constituída pela capela-mor e duas capelas absidais, todas com coberturas de abóbodas de cruzaria. Corre as paredes das naves laterais um silhar de azulejos do tipo albarradas do século XVIII, datando, junto à porta, de 1738. Os arcos da nave são revestidos por azulejos do mesmo tipo. Decoram a parede da entrada e a cúpula do batistério azulejos do tipo ponta de diamante, da mesma época. Sobre o arco triunfal, ladeando um nicho manuelino que abriga um grupo escultórico do calvário, figuram dois painéis de azulejos policromos, do século XVIII, representando a Anunciação e a Visitação.” E agora começamos a visita pela porta principal.


A originalidade deste templo religioso é dada pelo pequeno portal à direita do belo pórtico, tal como os blocos que o envolvem, tem a ver com uma igreja que aqui existiu entre os séculos XIII e XVI, tratava-se da igreja de Santa Maria de Monte Agraço a cargo da Confraria de Santo Quintino. Ou seja, nesta fachada temos elementos que vão do século XIII ao século XVI, hoje são da igreja que hoje visitamos como em 1520, o pórtico é do estilo manuelino e renascentista e o interior que vamos agora visitar é também objeto de várias intervenções feitas em diferentes épocas.
Fui logo direito ao altar de Sto. Quintino, imagem de pedra datada de 1532, tem cá em baixo um barrete que a devoção popular associa às curas do santo. Nas paredes, os painéis dos séculos XVIII são cenas do martírio de Sto. Quintino. Há um painel no altar de Sto. Quintino que dá informações úteis ao visitante: não se conhece em Portugal outra freguesia que tenha São Quintino como oráculo, e dá pormenores sobre o teto do altar, Sta. Luzia e S. Sebastião.
Tanto sofrimento para chegar ao Céu
Azulejada no século XVII, decoram a parte superior na parede de entrada azulejos com o padrão de ponta de diamante. Todo o seu interior de três naves é revestido de azulejos do século XVII, o inferior é do século XVIII; a cabeceira é constituída pela capela-mor e duas capelas laterais.
O batistério tem formato circular e é rematado por uma pequena cúpula, forrado de azulejos seiscentistas e sustentado por quatro colunas. No seu interior merece referência um painel de azulejos do século XVIII representando o batismo de Cristo.
A capela-mor tem arco triunfal, podemos observar azulejos do século XVIII onde figuram a Anunciação e a Visitação. A parede do fundo está revestida de azulejos do século XX (cópia do século XVII). Nas paredes laterais temos painéis alusivos à Virgem, século XVIII.
Aspeto do arco triunfal e da abóbada da capela-mor
Imagem próxima da capela-mor
Na parte frontal do altar existem azulejos do século XVI, são hispano-mouriscos
Conjunto azulejar mostrando Cristo entregando as chaves a S. Pedro
Pormenor da parede lateral da capela-mor
Vista da igreja a partir da capela-mor da imagem da dimensão da azulejaria e do coro

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 24 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25876: Os nossos seres, saberes e lazeres (642): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (167): Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior - 6 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25897: Timor: passado e presente (19): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte X: O ano de 1944, de intensos bombardeamentos dos Aliados sobre Díli






Timor > Díli > c. 1945 > Ruínas de Díli após a II Guerra Mundial. Relatório do governo da colónia de Timor, 1946-47. Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino. Cortesia de RTP > 4.A II Guerra Mundial e o início das descolonizações (com a devida vénia...)






Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX.




António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália  Editora, s/d, 242 pp.)  e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 33 pp.). São dois livros, de mais difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.



Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". 
 Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.




Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 



1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte X:   O ano de 1944, de intensos bombardeamentos dos Aliados sobre Díli (pp. 80-87)


(i) 1944 é  mais um ano de martírio para a pequena colónia portuguesa de Timor,  para a população timorense (que não seria mais do que 400 mil em 1940) e para a não-timorense (umas escassas 3 centenas de portugueses) com frequentes bombardeamentos da aviação dos Aliados, por um lado, e a continuação das arbitrariedades e prepotências dos ocupantes japoneses, por outro. 

O ano fica marcado pela prisão de dois elementos-chave da população portuguesa da colónia, o engenheiro Artur Resende do Canto e o tenente António Oliveira Liberato. O primeiro pertencia à Missão Geográfica de Timor, e estava a exercer, voluntária, abnegada e corajosamente,  as funções de administrador do concelho de Díli. O segundo era o adjunto da Companhia de Caçadores, que já tinha perdido, em 1942, o seu comandante, o cap inf  Costa Freitas.

Há uma novo cônsul nipónico, que fala espanhol, e um vice-cônsul que fala português (sendo casado com uma brasileira). Mas nem por isso a situação dos portugueses, detidos na ilha, vai melhorar. 
Nem muito menos a da população autótone, 
que os japoneses insidiosamente tentaram virar contra Portugal.

Quando se comemora os 25º aniversário do referendo de 30 de agosto de 1999, em que 4 em cada 5 timorenses (78,5%) se manifestaram livremente pela independência do território, curvamo-nos à memória de todos aqueles que, durante a ocupação japonesa, 
na II Guerra Mundial, 
 deram-nos exemplos de dignidade, coragem e patriotismo.  

A questão de Timor chegou a ser um foco de tensão entre Portugal e os seus velhos aliados ingleses. A invasão por tropas autralianas e holandesas foi a gota de água e o pretexto de que os japoneses precisavam para, por sua vez, ocuparem o território,  de importância estratégica para ambos os lados,

 Portugal chegou a estar em risco (ou foi ponderada a hipótese pelos ingleses) de entrar na II Guerra Mundial por causa da minúscula e longínqua parcela do império que era Timor, segundo revelam documentos do arquivo do Foreign Office, estudados pelo diplomata e investigador português, Carlos Teixeira da Mota (1941-1984),  "O caso de Timor na II Guerra Mundial : documentos britânicos", Lisboa,  Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1997, 202 pp.   

Em 28 de novembro de 1944, Portugal assina finalmente um acordo (secreto) com os EUA (com mediação inglesa):  em troca da concessão de facilidades militares nos Açores (ilhas de Santa Maria), Portugal conta com a ajuda americana para recuperar a soberania de Timor, território ocupado prlosd japoneses e objeto da cobiça dos australianos.

Timor é paradigmático: é aqui, no Sudoeste Asiático (mas também no norte de África, ambos sangrentos palcos de guerra) que, em boa verdade,  começa(m) a(s) descolonização(ões)...


(...) A 23 de janeiro recebemos em Lahane comunicação de Liquiçá informando-nos que, no dia anterior, aviões australianos haviam atacado Liquiçá tendo metralhado a enfermaria onde estava hasteada a bandeira portuguesa!

Haviam ficado feridos quatro timorenses e a esposa do chefe dos correios Fortunato Mourão, senhora D. Aida Cassagne Mourão, que ali estavam internados, tendo esta última cegado de um dos olhos atingido por um estilhaço de bala.

No dia 17 de fevereiro, com evidente prazer nosso embora não isento de natural desconfiança sobre as suas intenções, retiraram os japoneses as guardas ao hospital e ao palácio, cessando daí em diante qualquer fiscalização do trânsito dos portugueses entre esses dois edifícios. (...)

Em princípios de março, o engenheiro Canto trouxe de Liquiçá para Lahane, acompanhada de sua mãe, uma menina de 17 anos, filha do velho colono sr. Gregório José Morato. Apresentava uma volumosa tumefacção sobre a omoplata esquerda que diagnostiquei ser um lipoma que facilmente seria extirpado por uma operação de pequena cirurgia, se os dois médicos portugueses a praticassem, dispondo dos meios normais que antes tinham, sobretudo de material asséptico.

Verificada por mim a impossibilidade de tratarmos a menina pediu o engenheiro Canto a ajuda nipónica, no respectivo consulado, conseguindo que a operação se viesse efectuar no hospital japonês, no dia 15, sendo a menina, logo após a operação, transportada para a nossa ambulância onde terminou o tratamento.

Por este tempo, constou à população portuguesa que o engenheiro Canto havia pedido a exoneração do cargo de administrador do concelho de Díli. De facto, ele há tempos me confidenciara que a sua atuação em Liquiçá e Maubara se apresentava cada vez mais cheia de escolhos, sobretudo por nada de importante poder resolver, no momento preciso e no local, pois todas as medidas necessárias que poderia aplicar para a resolução de problemas prementes e urgentíssimos tinham, obviamente, de esperar por despacho favorável do Governador, necessariamente moroso pela dificuldade de comunicações entre a zona e o palácio.

Assim, ele estava na disposição inabalável de se demitir, no caso de o Governador não o nomear seu delegado na zona de concentração. Confirmada a apresentação do pedido de exoneração do administrador do concelho de Díli, foram presentes ao Governador duas exposições, uma de chefes de família e outra de «mulheres e mães portuguesas» pedindo a sua não concessão.

Redigidas e assinadas pela grande maioria da população da zona, foi, a primeira, trazida ao hospital de Lahane onde lhe foram apostas as seguintes assinaturas (1) : José dos Santos Carvalho, Roque da Piedade Pinto e Rodrigues, António de Oliveira Oscar Lemos, Manuel da Costa, Júlio Madeira, Adão Exposto, Joaquim Francisco da Silva.

O despacho do Governador a estas petições (1) não pôde ser favorável, o que nele era lamentado, pelo que foi nomeado administrador do concelho o capitão Manuel do Nascimento Vieira, por portaria de 9 de março de 1944. (...)


(ii) A visita, de uma semana, iniciada em 19 de março de 1944,  do cap art José Joaquim da Silva e Costa, ajudante do governador de Macau, fazendo-se transportar numa aeronave japonesa, não trouxe benefícios percetíveis à população do território.

Em 29 de abril, dia em que se comemorava o aniversário do imperador do Sol Nascente, Dília sofre forte bombardeamento por parte da aviação  dos Aliados.  O engº Canto e o tenente Liberato são presos. Sabe-se também da prisão do tenente Pires, antigo administrador de Baucau.


(...) Após estes acontecimentos foi a população informada de que estava para chegar a Timor um enviado do Governo de Portugal.

De facto, no dia 19 de março aterrou no campo de aviação de Díli um avião japonês que trazia o capitão de artilharia José Joaquim da Silva e Costa, ajudante do governador de Macau comandante Gabriel Teixeira, o qual vinha a Timor como delegado especial do Governo português.

Neste mesmo avião viajaram o novo cônsul japonês em Timor, senhor Sotaro Hossokawa e o vice-eônsul, senhor Suzuki.

O capitão Silva Costa demorou-se em Timor uma semana,  tendo-se deslocado a Liquiçá e Maubara, para entrevistar vários portugueses e assistido a um almoço no palácio e a um jantar no consulado, para os quais o engenheiro Canto e eu fomos convidados e em que estiveram presentes o general comandante dos japoneses e os seus oficiais ajudantes, os dois cônsules, o Governador e o seu ajudante, capitão Vieira.

Das entrevistas que o capitão Silva e Costa teve comigo e com outras pessoas, depreendeu-se que ele estava a fazer um inquérito sobre os acontecimentos passados e a situação atual na Colónia. Bem informado, regressou a Macau no dia 26, seguindo no mesmo avião o ex-cônsul, senhor Yodogawa e o chanceler senhor Irie.

O novo cônsul japonês falava espanhol e o vice-eônsul senhor Suzuki, falava fluentemente português, pois, segundo referiu era casado com uma senhora brasileira. O novo chanceler do consulado, senhor Yanaguiwara, não comprendia ou falava senão o inglês.

A vinda do capitão Silva e Costa não trouxe melhoria de situação, como se esperava. Logo a seguir a ela, no dia 9 de abril, o tenente Liberato foi preso, na sua residência em Liquiçá, por três agentes da Kêmpy, dois dos quais eram o sargento Nerita e o cabo Kato, acompanhando-os como intérprete o chinês Há-Hói, filho do comerciante Mie-Hap de Díli, e três soldados armados de espingardas (2).

Levado de automóvel para Díli, pelo sargento Nerita, foi metido na cadeia de Díli e aferrolhado numa cela. No dia seguinte começaram os seus interrogatórios, sempre acompanhados de pancada e violências físicas, feitos pelo comandante da Kêmpy, tenente Akusawa, e pelo sargento Nerita, com o Ha-Hói como intérprete (1).

No dia 29 de abril, manhã cedo, apareceram as barracas dos aquartelamentos nipónicos, à roda do hospital de Lahane, ornamentadas com bandeiras japonesas, nas portas e outros espaços, inclusivamente nos telhados, sentindo-se bem um ar de festa e alegria da tropa. Mais tarde soubemos pelos criados timorenses que era o aniversário do Imperador do Japão que estava a ser comemorado.

Porém, ainda não eram nove horas a sereia japonesa anunciou a aproximação de aviões inimigos que não se fizeram esperar. Seguiu-se um terrível bombardeamento por dezenas de aviões que, conforme era de prever pelo tremendo estrondo e depois soubemos, reduziu a escombros a cidade de Díli, não havendo qualquer espaço que não tivesse sofrido a acção aliada.

As bandeiras nipónicas, escusado seria dizê-lo, logo desapareceram como por encanto e nunca mais as vimos em qualquer lugar, até ao fim da guerra.

Também, este bombardeamento deu origem à destruição por cargas de dinamitei das altas e elegantes torres da catedral de Díli, o que constou ter sido motivado por constituírem um precioso ponto de referência para os aviões atacantes.

Aquando do bombardeamento, estava o tenente Liberato aferrolhado numa cela da cadeia de Díli pelo que pôde num dos seus livros (2) descrever o terrífico espectáculo com um realismo que ainda hoje nos esmaga.

Atingido o compartimento onde se encontrava, transferiram-no para outra dependência menos danificada e onde já tinham sido reunidos os restantes presos, entre os quais reconheceu, a custo por estar magríssimo, ferido na cabeça, e coberto de cabeça, o chefe de posto Matos e Silva (2) .

Recebeu deste, então, algumas informações. O tenente Pires havia voltado da Austrália, num submarino americano e ficara em Timor, em serviço de observação, com um pequeno grupo de portugueses, oferecendo informações aos aliados (3).

Obrigado o grupo a fraccionar-se, para escapar às "colunas negras", haviam sido, sucessivamente, presos o tenente Pires, os chefes de posto José Tinoco e Matos e Silva, o enfermeiro Serafim Pinto e os irmãos, cabos Cipriano Vieira e João Vieira (3).

Presos, durante meses, em Baucau, foram mais tarde transferidos para Díli (3) e aí havia já falecido o chefe de posto José Tinoco e os irmãos Cipriano e João Vieira (2) . Quanto ao enfermeiro Serafim Pinto nada sabia, pois vira-o entrar um dia na prisão, de olhos vendados, mas desconhecia o destino que lhe haviam dado. Provavelmente, já não pertencia, também, ao número dos vivos (2) .

O senhor Matos e Silva, ferido na cabeça por um estilhaço de bomba, foi transferido, tempos depois, para uma casa de China Rate, onde se presume que tenha morrido (3), a 8 ou 9 de maio (2) .

«Fora de dúvida é que todos eles sofreram horríveis maus tratos e as agruras da fome, que os japoneses impunham a todos os seus prisioneiros» (3).

No dia 4 de maio, o tenente Liberato foi algemado, vendaram-lhe os olhos, meteram-nos num automóvel e levaram-no para China Rate onde o meteram na casa que era das máquinas da T.S.F., num compartimento sem janela. Aí viveu ( !) sessenta e sete dias, completamente incomunicável, a juntar aos vinte e inco passados na cadeia de Díli (2) .

Por estes tempos e, infelizmente, nos que se lhe seguiram, o cabo Kato, chefe da polícia japonesa em Liquiçá, continuava  fazer tropelias, insultando e vexando com prepotência os não- timorenses da zona de concentração.

No dia 5 de julho registou-se um ataque aéreo aliado, com fogo de metralhadoras, a Liquiçá e Maubara. Em Liquiçá ninguém foi atingido, mas em Maubara sofreram ferimentos graves  (...).

Uma das mais infelizes e inexplicáveis prepotências da polícia japonesa surgiria, com uma bomba, a 10 de julho. Cerca do meio-dia, apareceu no hospital de Lahane o sargento Nerita acompanhado de alguns soldados armados, transortado num automóvel do exército.

Não procurando o engenheiro Canto, como costumava fazer, dirigiu-se à sala onde estava instalado o telefone que estabelecia comunicação com o palácio, arrancou-o e levou-o consigo.

Apareceu, então, o Engenheiro e logo compreendemos ser ele a vítima escolhida, pois o sargento não o cumprimentou, antes lhe disse qualquer coisa, com modos bruscos, que nós não ouvimos, por estarmos afastados.

O  Engenheiro dirigiu-se, então, ao seu quarto, já acompanhado por soldados, enquanto c sargento foi procurar o gerente do Banco Ultramarino, senhor João Jorge Duarte, para o intimar a acompanhá-lo, também. Tal com estavam, em mangas de camisa, tiveram de seguir com os esbirros, levando o Engenheiro uma malinha de mão e despedindo-se com um olhar que, para sempre, ficou no nosso
pensamento.

Logo que o automóvel se afastou, o chefe de posto Torresão correu para o palácio com o fim de avisar ao Governador, seu primo, o sucedido. Mas, em vão atuou. Chegado ao cruzamento com a estrada que liga ao palácio aí encontrou um soldado japonês que lhe impediu a passagem, forçando-o a regressar ao hospital.

No dia seguinte já não houve entraves e o Governador pôde ser inteirado do acontecimento, não tendo os protestos que, pronta, enérgica e repetidamente, pessoalmente apresentou no consulado nipónico, obtido resultado favorável nem qualquer explicação para tão arbitrário ato. (...)


(iii) Surpreendente, ou talvez ou não, é a situação do tesouro público: o gerente do BNU é preso, e o seu quarto fica trancado...É lá que ele guardava parte do pecúlio da colónia, ou seja, o "mealheiro" do Governador, o cofre forte do  banco... ~

Como pagar agora aos funcionários, civis e militares,  que restam na colónia, incluindo os deportados (que também comiam à "mesa do Estado" )?... Sem esse dinheiro, agravar-se-ia  a situação de miséria em que já todos viviam, apesar da solidariedade de muitos timorenses  que, apesar de tudo, tinham os seus meios de subsistência... 

Uma solução "ad hoc", expedidta, à portuguesa foi encontrada, o clássico "desenrascanço"... Um momento algo hilariante no meio de um drama coletivo...

 (...) Entretanto, verificáramos no hospital de Lahane que o Gerente havia fechado a porta do quarto onde estava instalado e não pudera entregar a chave aos seus dois funcionários ali presente ou a qualquer de nós, pois nem sequer lhe fora permitido calçar uns sapatos em substituição das chinelas que trazia quando foi preso.

Conforme, então, o Dr. Tarroso Gomes (4) me contou,  situação complicava-se porque o Gerente, visto lhe ser impossível ir ao edifício do Banco, situado em Díli, conservava guardados no seu quarto, uma parte dos fundos da Colónia. 

Aguardaram-se vários dias, na esperança de a detenção ser temporária, mas como não houvesse indícios duma libertação próxima, o Governador, obrigado pelas circunstâncias e porque não  era possível deixar a população sem dinheiro, porque isso representava a fome, determinou que se arrombasse a porta do quarto e se retirassem os fundos da Colónia que passariam à responsabilidade do Dr. Tarroso.

Coube esta tarefa a uma comissão, nomeada pelo mesmo espacho que determinou o arrombamento, constituída pelo capitão Vieira, o Dr. Tarroso, o secretário e o tesoureiro do Banco Nacional Ultramarino, senhores Anselmo Bartolomeu e Almeida e Fausto do Amaral e eu e o sargento Vicente, como testemunhas.

Encontrou-se bastante dinheiro em gavetas e malas, mas havia vários cofres que só mais tarde o deportado, senhor Serafim Martins, habilíssime serralheiro, vindo de Liquiçá para o efeito, conseguiu arrombar e depois tornar a reparar à força de muito trabalho e competência técnica.


 (iv) A "zona de concentração" fica agira reduzida a Liquição, com a transferência forçada dos portugueses "residentes" em Maubara, que perdem os seus parcos haveres e as suas pequenas hortas...

Os bombardeamentos continuam, mais intensos em outubro e novembro. Díli é agora um monte de ruinas. 

Timorenses e portugueses vão entrar no último ano da guerra, sem saber qual é o seu desfecho, completamente isolados do mundo...


(...) Em meados de setembro surgiu mais uma grande crise para a população não-timorense de Maubara que na sua totalidade, não poupando as mulheres e crianças, foi obrigada pelos japoneses e abandonar a vila, onde tinha todos os seus haveres e cultivava hortas pelos próprios meios, e seguir para a já superpovoada Liquiçá, fazendo o percurso a pé!

Chegaram esses desgraçados, mortes de fome e de cansaço,  Liquiçá, no dia 15, tendo pernoitado na noite da véspera em palhotas de timorenses caridosos que fraternalmente os acolheram (5).

Assim, na vila de Liquiçá mais se agravou o problema alimentar que só não se tornou completamente desesperado por os japoneses permitirem que alguns nossos serviçais timorenses se dedicassem a trabalhos agrícolas na Granja Eduardo Marques, fornecendo géneros alimentícios. 

Outra grande ajuda foi sempre a da plantação de Fátu-Béssi que nunca foi ocupada los japoneses, embora eles requisitassem daí o melhor para as suas tropas. Porém, a diplomacia do senhor Jaime de Carvalho conseguiu furtar-lhes quantidades preciosas para entregar aos seus famintos compatriotas.

No mês de outubro, violentos bombardeamentos aéreos incidiram sobre a área onde os japoneses se tinham instalado em Lahane, bem junto do nosso hospital, os quais só por milagre não nos atingiram. Ficaram memoráveis para nós os realizados nos dias 14, 29 e 30 (de setembro).

Continuaram os ataques aliados em novembro, ainda a Lahane, mas, agora, nas proximidades da residência do governador. Assim, no dia 8, caíram dezoito bombas a uma distância, entre 20 e 50 metros; no dia 10, sete bombas, à mesma distância; e no dia 15, mais nove, oito das quais muito próximas (entre 20 e 30 metros) e uma que providencialmente não rebentou, a dois metros de um dos torreões da frente da residência, onde cavou um buraco. (6) .

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, itálicos, negritos, comentários, reordenação das notas de rodapé: LG)

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Notas do autor (JSC):

(1) As exposições da população ao governador Ferreira de Carvalho, pedindo para não conceder a exoneração ao engenheiro Canto, podem ler-se no In Memoriam a Artur do Canto Resende, publicação do Sindicato Nacional dos Engenheiros Geógrafos, Lisboa, 1956, pp. 37 a 41.

(2) Vd. Capitão António de Oliveira Liberato, "Os japoneses Estiveram em Timor". Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

(3) Vd. Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor".  Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.

(4) O Dr. Tarroso Gomes, desde Dezembro de 1942 que vinha regularmente a Díli, uma vez por mês, a fim de levantar da caixa de tesouro os fundos necessários para as despesas oficiais do mês e despachar com o governador os assuntos da Repartição de Fazenda. Hospedou- se  sempre no hospital.

(5) A odisseia dos portugueses de Maubara foi-me relatada pelo Dr. Tarroso Gomes que assistiu à sua chegada a Liquiçá onde o seu mísero estado provocou, em todos a maior indignação e profundos desejos de vingança.

(6) Os efeitos dos bombardeamentos da zona vizinha do palácio do governador, foram por mim directamente observados. O número de bombas caídas foi-me referido pelo próprio governador.
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Nota do editor LG: 

(*) Vd. postes anteriores da série >





sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25896: Notas de leitura (1722): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1873) (18) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Um dos aspetos mais curiosos das informações que regularmente o governador do distrito manda para a Praia é a sua tónica de tranquilidade, o povo bem alimentado, o comércio animado, a vida nos presídios em sossego. Só que na prática as coisas não se passavam deste modo, é o caso de Geba, e por isso aqui se faz menção a três juramentos de vassalagem e obediência, no caso três régulos, isto enquanto se enviam contingentes militares à cautela, faz-se permanentemente referências a Churo, ali perto em Jufunco ocorrerá o chamado desastre de Bolor que alterará o quadro político vigente que era o Governo Geral de Cabo Verde e Costa da Guiné e que se irá transformar em Cabo Verde de uma lado e Guiné Portuguesa de outro. Um dos aspetos também bastante curiosos desta legislação passa pela adoção de um conjunto apreciável de regulamentos, eles aparecem no Boletim Oficial mas nem sempre se concretizarão, será o caso da administração judicial, sempre adiada, portanto a viver à moda antiga.

Um abraço do
Mário



Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1873) (18)


Mário Beja Santos

Este ano de 1873 revela-se bastante proveitoso para quem queira investigar este período que precede a passagem da Guiné a Província autónoma, depois do desastre de Bolor, em 1878. No Boletim Oficial n.º 6, de 8 de fevereiro, temos novamente um extrato das notícias recebidas do distrito da Guiné Portuguesa, vieram obviamente por barco, trazidas pela escuna Mindelo: “Segundo participou o respetivo Governador, era então regular o estado sanitário, e de abundância o alimentício. Tinha sido excelente a última colheita dos géneros que constituem a alimentação dos indígenas. O estado comercial conservava-se animado, sendo para notar-se a afluência de navios portugueses que começam a ir comerciar aos portos daquele distrito. Nas margens do Rio Grande anunciavam-se guerras entre as tribos gentílicas das proximidades, mas nada havia ainda, até então, ocorrido que perturbasse o sossego público.
Em Geba continuavam em hostilidades mútuas os Mandingas e os Futa-Fulas. Com receio de que fosse perturbada a segurança do presídio que ali possuímos, havia o respetivo chefe requisitado ao Governador um reforço, que lhe fora mandado, seguindo para ali 50 praças de pré com dois oficiais. Para se obviar a falta que esta força ficou fazendo em Bissau, bem como para ser rendida a parte da força que carece de regressar ao arquipélago, foram enviadas para aquele distrito 74 praças do Batalhão de Caçadores n.º 1 comandadas pelo capitão Saint Maurice, que levou sobre as suas ordens um subalterno. Largaram do porto desta cidade a bordo da canhoneira Tejo no dia 5 do corrente. Na escuna portuguesa Benjamim 2.º que nos mês findo fez o serviço do correio, haviam também seguido para Bissau 30 praças de pré e dois oficiais.”


No Boletim n.º 8, de 22 de fevereiro, temos novamente notícias sobre o estado sanitário da Guiné, desta vez referente ao mês de dezembro de 1872. O movimento do hospital foi de 16 doentes: nove compadecimentos endémicos e sete esporádicos: saíram curados seis, melhorado um e passaram ao mês seguinte nove. Na clínica civil foram tratados 24 doentes, entre eles 19 com febres intermitentes quotidianas e uma febre perniciosa comatosa, à qual sucumbiu: foi este o único caso fatal que se deu tanto na clínica particular como no nosocomial. Assina esta informação o Chefe dos Serviços de Saúde, José Fernandes da Silva Leão.

No Boletim n.º 9, de 1 de março, importa relevar o extrato de uma notícia do Governador do Distrito para o Governador Geral: estado alimentício bastante lisonjeiro; comércio animado; segurança e autoridade pública sem alteração, Geba em sossego, também o presídio de Farim e os gentios dos arredores no maior sossego e tranquilidade, Cacheu em boas relações com o Churo, o régulo do Xime prestável. Dá-se agora uma nota curiosa relacionada com a parte não oficial do mesmo Boletim:
“A saída da canhoneira Tejo para Bissau no dia 5 do corrente, conduzindo a bordo 74 praças, dois oficiais do Batalhão de Caçadores n.º 1, deixou inquietos alguns espíritos, receosos de que conflitos graves com os gentios das tribos limítrofes do nosso território houvessem exigido o aumento da força militar ali destacada. Era legítimo o cuidado que preocupava alguns ânimos porque são sempre para recear-se as guerras no sertão de África, e porque é só na paz que pode medrar o trabalho da colonização, e sem ela esmorecem os interesses do comércio honesto e legal e moraliza toda a iniciativa e toda a coragem para o emprego do capital. Felizmente não havia receios bem fundados de guerra, mas só motivo para prevenção. As escaramuças que se estavam dando entre os Mandingas e os Futa-Fulas no território de Geba podiam incomodar o presídio que hoje possuímos, e prudente foi reforçar-se a guarnição dele. Mas nenhum ato hostil se havia cometido contra o nosso estabelecimento que se achavam em regulares relações com os gentios.”

Certamente com grande significado temos no Boletim n.º 16, de 23 de abril, a publicação de três termos de juramento de vassalagem e de obediência, vamos deles extrair alguns tópicos. O primeiro tem a ver com o régulo Donhá, senhor das terras de Ganadu, vassalagem à Coroa de Portugal. Este régulo compareceu na residência do chefe do presídio de Geba, capitão Alfredo Carlos Barbosa e prestou juramento de fidelidade, a conservar-se em perfeita obediência para com os delegados do mesmo Governo e prestar-lhes todo o auxílio para que possa dispor quando assim lhe for exigido.

Do régulo de Gofia, também com o nome Donhá, na mesma residência do chefe do presídio de Geba, compareceu o régulo acompanhado dos seus súbitos e presta juramento de obediência e fidelidade a Sua Majestade Fidelíssima, obrigando-se a conservar-se em passiva e perfeita obediência aos delegados do Governo, bem como de reconhecer como seus inimigos os régulos que tentarem hostilizar o presídio de Geba.

O terceiro termo de juramento de vassalagem envolve o régulo Joró-Fim, senhor das terras de Mancrosse, novamente na residência de Geba, obrigou-se também a conservar-se em perfeita e passiva obediência aos delegados do Governo, a prestar o devido juramento sob a bandeira portuguesa. Os três termos de vassalagem realizaram-se em 29 de março de 1873.

No Boletim n.º 18, de 3 de maio, mais um pacote de notícias: não havia ocorrido alteração ordem pública nem em Bolama nem em Geba. Em Bissau, um grilheta (pessoa condenada) havia agredido um gentio Papel de Antim, que faleceu passados dias. A tribo de Antim, julgando-se agravada pelo atentado feito contra um dos seus membros, havia deixado de comunicar com a Praça e suspendera o mercado diário junto da tabanca; mas o régulo, sabendo que as autoridades portuguesas haviam prendido o agressor contra o qual corria o competente processo judicial, veio à Praça declarar que se não julgava ofendido e que reiterava os seus protestos de harmonia e amizade com os portugueses. Na Praça de Cacheu, um gentio de Churo emboscado na noite fez fogo sob um degredado com quem trazia rixa particular, e que o feriu em ambas as pernas. Em Farim, uma mulher do presídio, chamando um chefe dos Fulas a um colóquio particular, atraiçoou-o entregando-o aos Mandingas, que o surpreenderam e assassinaram. Havia, por tal motivo, negociações com os Fulas que pediam satisfação pelo facto.

Suplemento ao Boletim n.º 7, 15 de fevereiro de 1873, notícia do falecimento da Imperatriz do Brasil, avó do rei D. Luís
Planta da Praça de Bissau, por Bernardino António d’Andrade, 1796
(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 23 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25874: Notas de leitura (1720): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, de 1872 a 1873) (17) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 26 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25882: Notas de leitura (1721): Breve história da evangelização da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25895: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte VI: "Conhecido comerciante e grande proprietário", dono de um dos melhores "sobrados" de Bolama nos anos 30 (António Estácio, "Bolama, a saudosa...", 2016)





Fonte: Estácio (2012) (*)


1.  Se não fosse a Op Tridente, que celebrizou a "Casa Brandão" e o seu antigo dono (**), não estaríamos para aqui hoje, sessenta anos depois (!), às voltas com o fantasma do Manuel de Pinho Brandão (**), cuja fama tem um ângulo de 360º: tanto foi considerado como um grande colono (e, aos olhos do PAIGC, um famigerado "colonialista", terror dos balantas da ilha do Como) como um "turra", um colaboracionista, que as autoridades portuguesas, a seguir ao início da guerra, terão condenado à expulsão do território).

Camaradas nossos que participaram na operação de reocupação da ilha do Como, em jan-mar de 1964, já deram aqui o seu testemunho (**):

(i) Mário Dias:

(...) Na ilha não existia qualquer autoridade administrativa nem força militar pelo que o PAIGC a ocupou (não conquistou) sem qualquer dificuldade em 1963.

 (...) Não tinha estradas. Apenas existia uma picada que ligava as instalações do comerciante de arroz, Manuel de inho Brandão (na prática, o dono da ilha) a Cachil.

A partir desta localidade o acesso ao continente (Catió) era feito de canoa ou por outra qualquer embarcação. A casa deste comerciante era, se não estou em erro, a única construída de cimento e coberta a telha.

Portugal não exercia, de facto, qualquer espécie de soberania sobre a ilha. Tornava-se imperioso a recuperação do Como. 

(...) Meses antes, já a aviação havia attuado na ilha bombardeando e destruindo todas as instalações que pudessem ser proveitosas ao IN. Recordo-me ainda de assistir no QG em Santa Luzia, onde ocasionalmente me encontrava, aos protestos do referido Brandão por lhe terem escavacado tudo quanto possuía no Como. (...)

(...) Um dos pontos que pretendíamos dominar era a picada que, partindo das imediações da casa Brandão, seguia para Norte em direcção a Cassaca e Cachil.

arefa difícil pois o inimigo tinha instaladas à entrada da mata metralhadoras no enfiamento da picada. No dia 23 o grupo de comandos reforçado com uma secção da CCAV 488 e uma secção de fuzileiros dirigiu-se ao local para tentar alcançar e destruir as metralhadoras.

Escondidos na casa Brandão, fomos progredindo de um e outro lado do ourique. Porém, ao chegarmos junto ao rio que atravessa a bolanha tínhamos que subir para o ourique e passar por umas tábuas que faziam de ponte. Como era de esperar, as metralhadoras entraram em funcionamento. Zás. Tudo a saltar de novo para o desnível do ourique. (...)

(ii) Armor Pires Mota:

(...) Como, 16 de janeiro de 1964

(...) Ali, em Cauane, não havia um poço sequer. Só mais longe, a uns trezentos metros, junto à casa do tal Brandão, o único branco que ali vivera, há tempos, onde montara os seus negócios e fizera fortuna.

Ele casara com a filha da rainha dos Bijagós e vivia agora em Catió. O filho, que diziam ter morrido, andara com os terroristas, o Chiquinho. (...).



 2. Mas, nos anos 30, o nosso homem vivia em Bolama, a capital, como de resto lá vivia a elite colonial da época, os funcionários públicos, os missionários, a escassa tropa e os comerciantes (europeus, cabo-verdianos e libaneses).

Ninguém sabe quando aportou à Guiné. Talvez desterrado, no tempo da República. Sendo de Arouca, logo, um "serrano", do interior do Portugal profundo, era muito pouco provável que se tivesse metido em encrencas, de natureza política. 

A ter sido deportado, tê-lo-á sido por algum crime de delito comum, como por exemplo o Abel Gil de Matos, o fundador de Catió, (Natural de Aldeia Galega do Ribatej0, hoje Montijo, foi condenado em 1913 pelo tribunal da comarca a 6 anos de prisão maior celular ou, em alternativa, a 9 anos de degredo.)

Tant0 um como outro, o Brandão e o Matos, figuram, no anuário da Guiné de 1946, como  grandes concessionários de terras, no sul da colónia, mais exatamente na circunscrição de Catió, o grande celeiro do território...  Estamos a falar de centenas de hectares...


(Bissau, 1947-Algueirão, Sintra 20222)


Mas voltemos a Bolama... Talvez ninguém como o nosso amigo e camarada António Estácio (1947-2022) tenha amado tanto Bolama. A prova é o último livro que publicou, em vida, em edição de autor, "Bolama, a saudosa..." (2016, 496 pp.) (*)

Embora tenha nascido em Bissau, em 1947,  em "chão de papel",  e estudado no liceu Honório Barreto, fez a esc0la primária, nos anos cinquenta,  em Bolama, onde a mãe foi professora primária e o pai, transmontano, encarregado de obras municipais . 

Com base na Planta Topográfica da Cidade de Bolama ( à escala 1/2000, levantada nos anos de 1920/21 pelo cor eng José Guedes Quinhones) e outras fontes documentais (como o Anuário da Guiné Portuguesa de 1946), o engº técnico agrário António Júlio Emerenciano Estácio elaborou um precioso "croquis" da sua amada Bolama.

É a partir destes documento, que ficamos a saber que, na Rua João Marques de Barros, perpenmdicular à Rua Sá da Bandeira, se destacava o grande 'sobrado' (casa de 1º andar, de estilo colonial), mandado construir pelo conhecido comerciante e grande agricultor (sic), Manuel de Pinho Brandão, em cujo rés de chão se situava a loja  de Júlio Lopes Pereira, respeitável cidadão e  referência da cidade... (*).

Ali à volta da Praça Infante Dom Henrique e do Mercado, situavam-se as principais casas comerciais da colóniua: a Gouveia, Saad, Pinto, Carlos Gomes, Pintozinho, Duarte, Guedes, Almeida, Manuel Simóes Marcelino, Santos Marques, Nunes Correia, António dos Santos Teixeira, etc.

3. Acerca do Manuel de Pinho Brandão, sabemos adicionalmente que:

 (i) residia em Bolama em 1935,    e  era solteiro;

(ii) tinha diversas concessóes de terras na região de Tombali, circunscrição de Catió, a par de outros negociantes e produtores de arroz, como o Álvaro Boaventura Camacho, o Abel Gil de Matos, o Benjamim Correia, etc.;

(iii) O gerente do BNU, em Bolama, fez-lhe o retrato-robô, em relatório para Lisboa (onde falava dos "caloteiros" do banco): (...) "Manuel de Pinho Brandão – É, francamente, má a moralidade deste indivíduo e citaram-na, decerto por mero lapso, como 'boa'. Só por um muito infeliz acaso não se encontra a ferros para toda a vida.” (...); (*****)

(iv) diz-ser que era natural de Arouca, deportado, irmão do Afonso Pinho Brandão (este, dono da embarcação "Arouca", capturada pelo PAIGC em março de 1963, a par do navio "Mirandela", da Casa Gouveia);

(v) seria tio paterno da nossa amiga Gilda Pinho Brandão;

(vi) niinguém sabe quando nasceu nem onde nem quando morreu;

(vii) não há nenhum retrato dele...

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Notas do editor:


(*)  
Vd. poste de 14 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9745: Memória dos lugares (179): A saudosa Bolama (António Estácio / Patrício Ribeiro)


(****) Vd. postes de:

20 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16112: Agenda cultural (478): Sessão de lançamento do novo livro do lusoguineense António Júlio Estácio, "Bolama, a saudosa...", Lisboa, Palácio da Independência, dia 25, às 18h00 - Resumo da obra: parte I

21 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16115: Agenda cultural (479): Sessão de lançamento do novo livro do lusoguineense António Júlio Estácio, "Bolama, a saudosa...", Lisboa, Palácio da Independência, dia 25, às 18h00 - Resumo da obra: parte II

 (*****) Vd. poste de 28 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19052: Notas de leitura (1104): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (53) (Mário Beja Santos)