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domingo, 31 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27171: Felizmente ainda há verão em 2025 (28): A "política de terra queimada": a guerra peninsular (1807-1814) e a guerra colonial no CTIG (1963/74) - Parte I




Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca ) > Subsector de Xime >Madina Colhido > Fevereiro de 1970 > Sinais de queimadas (das NT ou do IN)... Proporcionavam a criação de clareiras onde era mais fácil os nossos helicópteros pousar...Como foi o caso do dia 9 de Fevereiro de 1970: 

(i) por volta das 5 e tal da manhã, o 1º cabo Galvão, da 3º Gr Comb / CCAÇ 12, ficou ferido  (torceu um pé) na cambança do Rio Buruntoni (havia uma tosca ponte feita pelo IN  de troncos de árvores);

 (ii) ás 13h00 as NT sofreram uma violenta emboscada em Gundagué Beafada, de que  resultariam uma série de baixas entre as NT (CART 2520, Pel CAç Nat 63 e CCAÇ 12), incluindo o 1º cabo Galvão que ia nesse momento em padiola improvisada e foi alvejado a tiro;

 (iii) a helievacuação dos feridos deu-se já em Madina Colhido  (um local de trágica memória e o fotógrafo estava lá...):

 (iv) em dezembro de 1975 seriam fuzilados, neste local,  pelo PAIGC ( no poder)  alguns antigos militares que haviam combatido  ao nosso lado, incluindo o nosso antigo soldado arvorado, futa-fula, o gigante Abibo Jau, do 1o. Gr Comb (que entretanto  ingressara em 1973/74 na CCAÇ 21);

Fotos: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.




Arlindo Teixeira Roda: ex-fur mil at inf, 3º Pelotão, CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71); o melhor fotógrafo da CCAÇ 12 e de Bambadinca, juntamente com o Humberto Reis;  no passado 25 de janeiro de 2025 em Coimbra, foi-lhe atribuída a designação de Presidente Emérito da Federação Portuguesa de Damas, tendo em conta a sua ação na criação da Federação e, também, a condução do organismo nos últimos 12 anos. 




1.  Felizmente que ainda há verão em 2025... 

Felizmente que  a Tabanca Grande também tem (e mantém) a sua "universidade sénior de verão"...

 Felizmente que a gente ainda vai tendo paciência, tempo e pachorra para ir blogando, escrevendo, lendo, comentando o nosso blogue (que fará 22 anos de existência em 23 de abril de 2026, se lá chegar, se lá chegarmos com vida e saúde)...

 Felizmente que o meu camarada da CCAÇ 2590 /  CCAÇ 12 (fomos juntos no T/T Niassa em 24/5/69 e regressamos juntos no T/T Uige em 17/3/71), o Arlindo Roda, natural de Pousos,Leiria, deu sinais de vida, ao fim de mais de 30 anos (!), telefonando-me na sexta feira passada... (Vive em Setúbal, reformado de professor do ensino técnico, desde os...57 anos!).

A propósito de "fogos florestais" (*)...

Na Guiné-Bissau, antes da guerra colonial, era tradicional fazerem-se grandes queimadas no tempo seco. Era uma prática generalizada para se obter novas terra e pastagens, se bem que à custa da destruição da floresta e da degração dos solos.

Durante a guerra colonial, até 1974, ambos os combatentes (PAIGC e Exército Português), recorreram a política de "terra queimada": 

  • os bombardeamentos e o fogo posto (no capim) causavam incêndios, de maior ou menor proporção, abrindo vastas clareiras na savana arbustiva;
  • uso de balas  incendiárias nos ataques às nossas tabancas (fulas);
  • por sua vez, o abate indiscriminado de gado e a destruição dos "stocks" de arroz e outros víveres foram uma forma de usar a "fome" contra o IN na guerra de contrassubversão;
  • um exemplo da política de terra queimada foi a Op Lança Afiada (Sector L1, Bambadinca, 8-18 de março de 1969), comandada pelo cor inf Hélio Felgas (mais tarde, maj - gen, ref., 1920-2008 
 Iremos, na segunda parte deste poste, falar da alegada  "política de terra queimada" na Guiné, exemplificada pela Op Lança Afiada... 

De qualquer modo, há outros exemplos históricos do recurso à "política da terra queimada", como estratégia militar para devastar territórios, privando o inimigo de recursos  (alimentos,  abrigo...).


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Batalha do Buçaço (1810). Gravura da época.
Fonte: Arquivo Histórico-
Milityar | Wikipedia

2. Para não irmos mais longe, cite-se o caso da guerra peninsular (1807-1814): durante as invasões napoleónicas, as tropas luso-britâncias aplicaram a política de terra queimada para atrasar o avanço das tropas francesas e privá-las de recursos alimentares.

A política de terra queimada envolveu a evacuação das populações, e a destruição de searas, pomares,  moinhos, pontões , casas e e demais bens que não podiam ser transportados. 

Essa tática foi utilizada especialmente durante a terceira invasão francesa (1810-1811), comandada por Massena, após a batalha do Buçaco (27 de setembro de 1810)  e durante o avanço e recuo para as Linhas de Torres Vedras. 

Tanto as  tropas luso-britânicas como a guerrilha portuguesa também recorriam à destruição de gado, alimentos e outros víveres para causar fome e dificultar a subsistência dos invasores.


(i) A dupla estratégia de Wellington: As Linhas de Torres e a política de "Terra Queimada" que puseram fim às invasões napoleónicas

Durante a terceira e última invasão francesa de Portugal, em 1810, o General Arthur Wellesley, futuro Duque de Wellington, engendrou uma brilhante e implacável estratégia defensiva que se revelaria decisiva para a derrota e  expulsão das tropas napoleónicas. 

Esta estratégia assentava em dois pilares fundamentais e interdependentes: 

  • a construção das monumentais e secretas Linhas de Torres Vedras;
  • a aplicação de uma rigorosa política de terra queimada.


As Linhas  deTores. Fonte: Wikipedia





Longe de serem uma mera barreira física, as Linhas de Torres Vedras eram um complexo e sofisticado sistema defensivo que se estendia por dezenas de quilómetros, desde o Tejo até ao Oceano Atlântico, protegendo a capital, Lisboa.

(ii) As Linhas de Torres Vedras: uma fortaleza impenetrável

A sua construção, iniciada em segredo em novembro de 1809, um ano antes da chegada do exército francês, foi uma obra de engenharia militar, genial,  sem precedentes.

O sistema era composto por três linhas defensivas principais, aproveitando as elevações naturais do terreno. Eram constituídas por uma rede de mais de 150 fortes, redutos, postos de artilharia (mais de 6 centenas de bocas de fogo), estradas militares e outros obstáculos, guarnecidos por dezenas de milhares de soldados portugueses e britânicos (cerca de 40 mil)  

A primeira linha, a mais exterior e fortemente fortificada, foi concebida para deter o avanço inicial do inimigo. 

A segunda linha oferecia uma posição de recuo, enquanto a terceira, mais próxima de Lisboa, visava proteger uma eventual evacuação das tropas britânicas por mar, um cenário que Wellington sempre considerou.

O grande trunfo das Linhas de Torres residia no facto de serem praticamente desconhecidas do exército invasor, comandado pelo Marechal André Massena. E mesmo dos seus construtores (cada um  só conhecia a sua seção, ou local; quem tinha a visão do conjunto era o próprio Wellington e o seu engenheiro militar, o coronel Richard Fletcher.

Ao chegar às suas imediações, em outubro de 1810, após a Batalha do Buçaco, Massena deparou-se com uma barreira formidável e inesperada, que se revelaria intransponível.

(Imagem à direita: Arthur Wellesley (1769-1852), 1º duque de Welington. Fonte: Wukipedia)


(iii) A política de Terra Queimada: a fome como arma...de dois gumes


Complementar à defesa estática proporcionada pelas Linhas de Torres, Wellington implementou uma brutal, mas eficaz, política de terra queimada. 

À medida que o exército anglo-luso se retirava estrategicamente para o refúgio das Linhas, foi dada ordem para que a população civil abandonasse as suas terras, levando consigo todos os bens e gado que conseguisse transportar.

Tudo o que não podia ser levado era sistematicamente destruído: colheitas foram queimadas, moinhos desmantelados, pontes derrubadas e celeiros esvaziados. 

O objetivo era criar um vasto deserto à frente das Linhas, privando o exército francês de qualquer meio de subsistência. A proclamação de Wellington foi clara: nada deveria ser deixado para trás que pudesse ser utilizado pelo inimigo.

Esta política teve consequências devastadoras para a população portuguesa, que sofreu enormes privações, fome e doenças. (No entanto, do ponto de vista militar, foi um golpe de mestre:  o exército de Massena, que dependia da requisição de mantimentos no terreno para se abastecer, viu-se rapidamente a braços com uma crise logística insustentável.)


(iv) O desfecho da invasão: a vitória da estratégia das Linhas de Torres e da  "política de terra queimada"

Enquanto o exército anglo-luso se encontrava seguro e bem abastecido dentro das Linhas, com o porto de Lisboa a garantir o fornecimento contínuo de homens e provisões, as forças francesas definhavam do lado de fora. 

Durante meses, Massena manteve as suas tropas (3 exércitos, 65 mil homens) em frente às Linhas, na esperança de que Wellington saísse para uma batalha em campo aberto, o que nunca aconteceu.

A fome, as doenças e o constante assédio por parte das milícias portuguesas foram dizimando o exército francês. Sem esperança de receber reforços ou mantimentos e confrontado com a aproximação do inverno, Massena foi forçado a ordenar a retirada em março de 1811.

 A perseguição movida pelas tropas de Wellington transformou a retirada francesa num pesadelo e num desastre, culminando na sua expulsão definitiva de Portugal.

A combinação genial das Linhas de Torres Vedras com a política de terra queimada demonstrou a visão estratégica de Wellington e a resiliência do povo português. 

Esta dupla abordagem não só salvou Portugal da ocupação napoleónica (e partilha do território, que seria dividido em três partes), como também marcou um ponto de viragem na Guerra Peninsular, contribuindo decisivamente para o eventual colapso do império de Napoleão Bonaparte.

Claro, há o reverso da medalha: resultou em enormes sofrimentos para a população portuguesa, incluindo assassinatos e maus-tratos, ruína agrícola, saques e incêndios em cidades, vilas e aldeias. 

Muitas aldeias foram evacuadas e transformadas em territórios desérticos, levando à fome,  a epidemias e à escalada dos preços dos géneros alimentícios. O sacrifício da terra queimada, embora essencial para travar os franceses, empobreceu grandemente o país, justificando-se pelo objetivo de proteger a independência nacional.

(v) Um rasto de morte e  desolação

As Invasões Napoleónicas, que assolaram Portugal entre 1807 e 1814, deixaram um profundo rasto de morte e destruição.

É  extremamente difícil apurar o número exato de vítimas, as estimativas apontam para uma perda demográfica significativa, que terá ultrapassado as 200 mil  pessoas, podendo mesmo aproximar-se das 300.000, entre civis e militares.

Este valor representa uma quebra demográfica considerável para um país que, no início do século XIX, contava com uma população total de aproximadamente 2,9 a 3 milhões de habitantes. (E que só duplicaria 100 anos depois, 6 milhões em 1910.)

A contagem precisa das vítimas é dificultada pela natureza do conflito, que não se limitou a batalhas campais. A fome, as epidemias e os massacres perpetrados sobre a população civil foram responsáveis pela grande maioria das mortes. 

A terceira invasão, liderada pelo marechal Massena em 1810-1811, é consensualmente considerada a mais brutal e devastadora para os portugueses.

No início do século XIX, a população portuguesa rondava os 3 milhões de pessoas;

  • dados mais específicos indicam que em 1801 a população era de 2.931.930 habitantes;
  • durante o período das invasões, nomeadamente em 1811, registou-se uma diminuição para 2.876.602 habitantes, um reflexo direto do impacto da guerra, da fome e das doenças na demografia do país.

As múltiplas ( e interligadas) causas da elevada morbimortalidade  

  • Ações militares: as batalhas, escaramuças e cercos ao longo dos sete anos de conflito resultaram num número significativo de baixas militares, tanto do exército regular como das milícias e ordenanças que se opunham aos invasores; as tropas regulares portuguesas (cerca de 20 a 30 mil homens mobilizados) sofreram baixas consideráveis: os números variam, mas as estimativas apontam para  em 10 a 15 mil mortos em combate ou por doença, sem contar desertores e incapacitados.

  • Massacres e violência sobre civis: as tropas francesas (Junot, Soult e Massena), e por vezes também as aliadas, cometeram diversas atrocidades contra a população civil; vilas e aldeias foram pilhadas e queimadas, e os seus habitantes massacrados; a violência fazia parte da tática de intimidação e retaliação contra a resistência popular; há relatos contemporâneos que falam em dezenas de milhares de civis mortos diretamente (talvez 40 a 60 mil ao longo das campanhas.

  • Fome generalizada: a política de "terra queimada", adotada tanto pelas tropas em retirada como pela resistência para dificultar o avanço inimigo, levou à destruição de colheitas e à requisição forçada de alimentos; o episódio mais devastador foi a política de terra queimada durante a 3.ª Invasão (1810-11): populações inteiras do norte e centro foram obrigadas a abandonar casas e colheitas para dificultar a progressão de Masséna.

  • Epidemias:  a subnutrição, as más condições de saúde e higiene, a deslocação de populações, a concentração de refugiados e tropas criaram o ambiente ideal para a propagação de doenças como o tifo, a disenteria e a varíola, que ceifaram milhares de vidas.
Vários historiadores (como Oliveira Martins) falam que Portugal terá perdido perto de 300 mil pessoas no total das invasões.

A combinação destes fatores resultou numa catástrofe demográfica que marcou profundamente a sociedade portuguesa. A perda de vidas, aliada à destruição de infraestruturas e à desorganização social e  económica, deixou o país exaurido e contribuiu para a instabilidade política e social que se seguiu ao fim do conflito.

A perda de quase um décimo da sua população  (cerca de 300 mil num total de 3 milhões em 1801), num período de sete anos (1807/14) representou uma catástrofe demográfica de enormes proporções para Portugal e marcou um dos períodos mais mortíferos da sua história.

Com a fuga da corte para o Brasil (donde só regressará em 1821), as invasões napoleónicas e a crescente influência inglesa na vida política nacional, assiste-se, por outro aldo, à destruição do incipiente desenvolvimento do capitalismo industrial em Portugal, iniciado em meados do séc XVIII, sobretudo com o pombalismo.

A política de terra queimada (sobretudo na 3ª invasão, 1810/11) ficou marcada na memória popular portuguesa, especialmente nas regiões centro e norte do país, como uma das mais severas provações já enfrentadas pela população civil. Foram relatados casos extremos de devastação onde até estradas e casas foram destruídas para impedir o acesso dos franceses a qualquer recurso útil.

A expressão "ir p'ró maneta" vem dessa época. O "maneta" era a alcunha do Louis Henri Loison (1771-1816): perdera um braço num episódio de caça, foi  talvez  o mais sanguinário e rapace dos generais franceses de Napoleão, participou nas três invasões franceses (facto a comprovar)... 

O seu nome inspirava terror e horror, pela sua crueldade e pela forma como torturava e executava os prisioneiros, e especialmente os guerrilheiros portugueses.

Em resumo, a política de terra queimada (a par das Linhas de Torres) foi um dos instrumentos mais importantes na resistência às invasões francesas em Portugal, com consequências profundas para o território e para o povo português. (**)

(Continua)

(Pesquisa: LG | Assistente de IA / Gemini, Perplexity, ChatGPT)

(Para saber mais: Centro de Interpretação das Linhas de Torres | CM Sobral de Monte Agraço)

(Revisão / Fixação de texto, negritos, itálicos, subtítulos: LG)

Quinta de Candoz, 31 de agosto de 2025, 18:00

____________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. comentários de António Rosinha e Fernando Ribeiro. Poste de 30 de agosto de 2025 Guiné 61/74 - P27166: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (9): Secas e fomes levaram ao longo do séc. XX à morte de mais de 100 mil pessoas

(...) António Rosinha:

(...) "Eram os tempos da sardinha para 3 (ou 4), e em que não havia incêndios, embora houvesse piromaníacos e incendiários como haverá sempre, mas os resíduos das florestas eram poucos para aquecer as lareiras e defumar os enchidos.

sábado, 30 de agosto de 2025 às 12:27:00 WEST

(...) Fernando Ribeiro:

(...)  Antº Rosinha, em Portugal sempre existiram incêndios e sempre existirão, porque são uma forma de a Natureza se renovar. Não há volta a dar-lhe. O que não existia, era tantos eucaliptos e tantos pinheiros bravos, que ardem como palha, nem tanto despovoamento do interior. Em 1966, concretamente, morreram 25 militares no combate a um incêndio ocorrido na serra de Sintra. (...)

Guiné 61/74 - P27170: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (9): O perfume da Enfermeira Paraquedista

1. Mensagem do nosso camarada do Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (Tite e Fulacunda, 1968/69), com data de 28 de Agosto de 2025:


O PERFUME DA ENFERMEIRA PARAQUEDISTA

Após uma longa e difícil caminhada chegámos perto de Nova Sintra ao local onde devíamos encontrar-nos com um pelotão de nativos, vindos não sei de onde para, em conjunto, fazermos um golpe de mão e destruir um acampamento IN.

 Como estávamos cansados e com fome, aproveitámos estar à beira de um rio para refrescar os pés e comer a ração de combate. Via rádio, fomos informados de que o pelotão de nativos estava perto e que o encontro estava iminente. O senhor coronel Hélio Felgas tinha ideias geniais. Assim chegou a brigadeiro. Por acaso, alguém olhou para oeste e deparou com um grupo de soldados pretos que caminhavam na nossa direção sem que, ao que parece, ainda não nos terem visto. Finalmente, pensámos. Alguém lhes chamou a atenção para a nossa localização que não distava mais de vinte metros. Recordo que estávamos escondidos nas margens do rio e em pose de descanso. Até as armas estavam a descansar.

E eu vi que um dos soldados nativos nos apontava uma arma. Um canhão sem recuo. E disparou na nossa direção, seguindo-se um tiroteio feio, feito com toda a espécie de armas. 

Quando me apercebi de que afinal eram "turras", corri para a bazuca do Melo, que nem teve tempo de a pegar, até porque estava descalço, e apontei aquela arma terrivelmente mortífera. Como já estava carregada, estava sempre, foi só apontar e disparar.

Quem conhece a bazuca sabe que o cano nunca aponta para onde deve ser dirigido o tiro. Por vezes a sua direção fica deslocada do local para onde se aponta pelo diópter. Disparei. E vi cair o meu guia, um soldado de segunda linha, por ser preto, seguido de mais quatro soldados. 

Só percebi que o meu tiro tinha rebentado à saída do cano quando vi que um ramo de mangueira estava cortado, caído no chão. Afinal a granada de bazuca rebentou à saída do cano. Quem te manda utilizar uma arma para a qual não tinhas prática suficiente? 

E, ingloriamente, matei o meu guia que ficou decepado, feri os restantes, sendo o mais grave o soldado Palricas. Lembro-me de ele me ter dito: "Ai, Caldeira, que me mataste". 

Mas não. Ficou gravemente ferido, mas recuperou no hospital e acabou a comissão. Faleceu há dias, devido a problemas cardíacos.

Após a confusão, chamados os helis para evacuações, havia que proceder à segurança para poiso das aeronaves e encaminhar aqueles feridos. Um deles, não me lembro de quem, ainda não estava devidamente tratado e pensado, o que levou a enfermeira perguntar-me qual o seu estado. O barulho das hélices era enorme, porque, por precaução, não pararam. Eu não entendia. Então ela rodeou o meu pescoço com o seu braço. Aproximou a cara da minha e perguntou de novo. O seu perfume era tão agradável que eu desejei que ela voltasse. Mas não voltou. E eu que trazia barba de vários dias, sarro que chegava em cima da pele e exalaria um odor pestilento!
Localização de Nova Sintra
Infogravura: © Luís Graça & Camaradas da Guiné - Carta da Província da Guiné: Escala 1/500.000


Afinal, o que era Nova Sintra? Vou tentar esclarecer: Era o cruzamento de três caminhos, no meio do nada, rodeado de mata e longe de tudo. Sem água potável e longe das fontes de reabastecimento. Feudo dos nacionalistas. Mas seria um lugar estratégico por dali irradiarem os caminhos para Tite, Fulacunda e São João-Bolama. 

sábado, 30 de agosto de 2025

Guiné 61/74 – P27169: (Ex)citações (437): Por aí, ouvindo, vendo, lendo, analisando e concluindo. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Por aí, ouvindo, vendo, lendo, analisando e concluindo

Camaradas,

Não fomos, com o devido respeito para com todos os camaradas, combatentes que desafiávamos a temperatura do ar condicionado, ou onde a “calma” das esferográficas e das velhas máquinas de escrever que ditavam narrativas para os superiores hierárquicos, lá longe, analisarem, concluírem e decidirem. Não fomos, por isso, semidivindades de uma guerra onde a luta pela sobrevivência se circunscrevia na velha expressão: “matar para não morrer”. Fomos, somente, rapazes, melhor, miúdos que desfiávamos o imprevisto do momento seguinte pelo interior de um denso mato. Cada um de nós tem as suas histórias, ou estórias para contar. Tudo ficou, como é evidente, registado em memórias que ainda hoje mexem connosco. Importa não menosprezar opiniões de camaradas que contam as suas realidades, mas nunca alicerçando em depoimentos de outros que, numa posição de autodefesa, “estraçalham mato” e partem para as mais vituperas e vácuas apreciações.

Neste contexto, revejo factualidades por nós conhecidas nos três palcos de guerra; vendo histórias de gentes africanas que ao longo das suas vidas se confrontaram com diversos problemas impostos por etnias que os olhavam de esgueira; lendo sobre modos de vida de sementes que por lá deixámos e como alguns eram, e são, vistos pelo meio comunitário onde convivem; analisando o sofrimento daqueles cujos espermatozoides que fecundaram um óvulo de uma jovem e geraram um ser humano; analisando a forma como, passados muitos anos, é possível constatar uma inequívoca veracidade que todos, ou quase todos, conhecemos, ou seja, o sexo em tempos de guerra; concluindo, afinal pelo mais invulgar e decrépito lugar por onde passámos lá ficaram as marcas que, entretanto, ousámos desvendar, tendo em conta a minha força moral que me incutiu trazer à estampa veracidades que tendiam ficar amorfas numa prateleira onde o bicho da madeira cria um casulo onde os segredos tombariam em saco roto.

Do efeito desta conversa espadaúda, ficam as avestruzes que enterram a cabeça na areia e quebro a veracidade de um silêncio que fora verdadeiramente real.

A propósito, retirei, com a devida vénia, do texto escrito pelo camarada Zé Teixeira, em humor da caserna, que a “Maria tira di brancu”, acrescentando o seguinte: “Houve cenas engraçadas com a Maria-tira-cabaço. Um camarada e amigo, encabaçado, tinha vontade e… inexperiência, vergonha, medo, falta de jeito, etc. Este foi, meteu a cunha e gozou… de borla. O outro pagou a dobrar, isso de tirar cabaço a branco tinha de ser bem pago”.

Obrigado, Zé, pois, com coragem e brio, tocas num tema tabu, mas literalmente verdadeiro. Acho que não deves levar a mal este meu atrevimento, mas achei o texto deveras interessante, daí que me deu vontade em ir buscar um outro por mim já levantado: Sexo na guerra. Tabu? Abraço, Zé Teixeira,

Camaradas, reconheço que o tema não é de nada generoso, mas é real. Deixo um dos muitos textos que fica narrado no meu livro – “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ-BISSAU 1973/1974”. Editado pela Colibri, Lisboa.


Sexo na guerra
Tabu?

Indolente, obesa e com um falar melodioso a mulher grande impunha respeito à plebe que por norma a rodeava. A sua tabanca, simples e despida de preconceitos, situava-se entre o quartel novo onde estava instalada a CCS do BART 6523 e Nova Lamego. Um passeio noturno da rapaziada levava o pessoal a uma visita espontânea a casa da mulher grande.

Noites que procediam ao recebimento do fresco pré eram, normalmente, sinais evidentes para uma emboscada dos soldados à porta da idosa senhora.

É do conhecimento geral, e não vamos escamotear a inequívoca verdade porque se sabe que o contraditório de opiniões existentes obedece a uma vénia e profunda reflexão, que o sexo foi sempre uma evidente prática comum entre os seres viventes.

Desde os primórdios da humanidade que o ato se pratica em toda a sua extensão. Refere a Bíblia, património universal da Religião Cristã, que já Adão e Eva assumiram o sexo, ainda que virtualmente escondido, mas que no momento de calor e compaixão uniram os seus órgãos genitais e consumaram uma relação sexual.

Neste contexto, importa assumir o ato com frontalidade e não optar pela surdez, procurando o eventual pecador espontâneo imitar a velha avestruz num austero deserto australiano, isto é, esconder a cabeça na areia para passar em seguida como um ser imaculado. Nos tempos de guerra, está provado cientificamente, que são propícios a encontros amorosos. A guerra do ex-Ultramar não passou incólume a desvarios praticados e não assumidos.

A Guiné não foi um caso à parte. Em Nova Lamego, independentemente de encontros amorosos sob um silêncio colossal, havia quem fizesse render as aventuras de jovens em plena ascensão sexual a troco de patacão. Os pesos (escudos) na Guiné eram bênçãos divinas. Na minha conceção, embora discutível, admito que o ato sexual praticado pela mulher não passava exclusivamente por uma mera venda do corpo, mas pela maneira mais prática, e simples, em realizar uns magros pesos para sustentar inadiáveis compromissos familiares.

Negócio? Isso eram ajustes de gentes feitas com o sistema. A mulher grande que eu conheci em Gabu tratava o assunto com uma ligeireza perversa. “Arranjava” bajudas e a malta despejava os seus espermatozóides em vaginas dilaceradas pelos muitos serviços prestados. Consequências? Tudo era tabu! Há quem se refugie numa mítica opção tentando a todo o custo tapar o sol com uma peneira.

Tímidos e envergonhados afirmavam que voltaram virgens. As mãos arrogaram-se às brincadeiras das crianças. Parafraseando um velho político, já falecido, num momento áureo da Revolução de Abril, dizia ele para o camarada ao lado: “Olhe que não!”

Não constringiremos cenas passadas. Verídicas! Assumo que não fui imaculado. Hoje, tal como sempre, dou a cara. Deixo em prosa uma etapa da vida que não me passou ao lado. Pratiquei atos sexuais, sim senhor, como tantos outros camaradas de armas.

Afirmo, com segurança, que numa noite quente eu e um outro camarada, furriel miliciano da minha Companhia, ousámos desafiar a escuridão da tabanca e fomos parar junto a um casal de idosos que gentilmente nos recebeu propondo-nos, de seguida, uma visita à casa do lado, onde uma bajuda, feita a favores sexuais, nos recebeu.

Discutimos o valor, acertámos o custo final e, isoladamente, lá fomos fazer o respetivo serviço. Depois de pagarmos, e no meio de uma franca cavaqueira, apareceu-nos a bajuda, aquela que tinha saciado os nossos eternos anseios carnais, com uma deficiência descomunal numa das pernas. Infelizmente era coxa.

Ressalve-se, porém, que a rapariga era de facto bonita, mas a contingência da vida carimbou-a com um enorme defeito físico. Olhámos um para o outro e em mansinho comentámos: “A nossa amante foi mesmo esta bajuda? Muito bem, o serviço está feito e nada a comentar”, ficou a experiência.

Chegados ao quartel, como era hábito, tomámos um aprazível banho com água barrenta e introduzimos na uretra do pénis uma milagrosa pomada que, ao que tudo indicava, queimava o mais atrevido intruso verme que procurava poiso numa outra superfície humana desconhecida.

Numa outra noite e com a luz ténue de uma candeia à meia haste, fui ter com a mulher grande e perguntei-lhe se por acaso havia bajuda nova, a mulher, experimentada nestas andanças e com um olhar vazio, olhou-me de alto a baixo e atitou-me com esta: “ei furrie você é comando… manga di mau”.

Sinceramente não me apercebi da sua ligeireza ao detetar no camuflado os dísticos que sempre transportava na farda. Acalmei-a e disse que era na verdade ranger, não comando, mas mau… nunca. Coloquei em solene a minha forma de ser e a cordialidade que sempre marcou a minha amizade para com o próximo. A conversa prolongou-se e num repente a mulher grande brindou-me com o meu desejo. Ficou a certeza de que outros se seguiram.

De outros encontros pseudo amorosos ressalta também uma visita ao bairro do Pilão, em Bissau. Vagueando entre a imprevisibilidade de estreitas ruelas de tabancas nada iluminadas, algumas completamente às escuras, acompanhado de um velho amigo, desafiámos o imprevisto e fomos ao encontro dos nossos desejos sexuais. Confesso que chegámos a temer a aventura. Passavam por nós homens negros, altos, de túnicas compridas, enfim, silhuetas que em determinada altura nos levou a duvidar da fartura. Cumprimentávamos e eles, simpaticamente, respondiam. Tudo ok, comentámos.

O Pilão era um bairro dos subúrbios de Bissau onde a malta da metrópole por norma não passeava. A noite tinha um cunho arrojado. A palavra passava de boca em boca e os tropas arrepiavam caminho.

Todavia, decidimos desafiar essa perigosidade e encontrei uma jovem mulher e de corpo descomunal, a quem me entreguei por alguns momentos de delírio. Paguei e aventura terminou aí. Nunca mais a vi!

Concluindo: porquê escamotear verdades de jovens entregues a elementares gostos sexuais procurando, nalguns casos, tentar passar isento a constrangimentos entretanto criados? Tabu? Ou consequências lógicas dos nossos verdes anos?

Resenha final: assumamos, porque Deus fez o homem e a mulher e projetou os dois seres com um fim comum, amar e procriar.

Abraços, camaradas
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 

13 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27014: (Ex)citações (436): "Filhos de Tuga"... e o caso do meu mano, meu amigo, meu herói, militar de carreira, falecido em 2021 (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69; Vila do Conde)

Guiné 61/74 - P27168: Os nossos seres, saberes e lazeres (698): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (219): Um novo e belo museu regional, de visita obrigatória, o do Bombarral - 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho 2025:

Queridos amigos,
Estamos de regresso ao Palácio Gorjão, já se falou da Pré-História, há aqui testemunhos de grande significado, seguiu-se a visita a peças de arte religiosa, onde se destacam artistas com relevância na arte portuguesa, como é o caso de Josefa de Óbidos, Baltazar Gomes Figueira, Leopoldo Almeida e António Lino. Não se quis perder uma exposição sobre a Cerâmica Bombarralense, exposição temporária, deu para disfrutar obras de Júlio Pomar, Maria Barreira e Vasco Pereira da Conceição. Não faltam pedras de armas numa região que desde a Idade Média gozou da presença de uma aristocracia rural influente, a par da presença das ordens religiosas, como a Ordem de Cister; dentro da concepção deste espaço museológico em quatro salas, impressiona até pela qualidade didática a homenagem a dois escritores ligados ao Bombarral, Anrique da Mota e Júlio César Machado. Não tenho dúvidas em que o leitor, podendo, aqui irá deliciar-se com este espaço patrimonial onde só sentia falta da expressão económica, o Bombarral situa-se numa área potencialmente frutícola e vitivinícola, pressinto que mais tarde ou mais cedo a história desse património também aqui terá assento.

Um abraço do
Mário



Um novo e belo museu regional, de visita obrigatória, o do Bombarral - 2

Mário Beja Santos

Continuamos a visita ao museu do Bombarral que reabriu no fim do mês de junho. Situa-se no Palácio Gorjão, deu-se uma súmula da sua história, vale agora a pena reproduzir uma chamada de atenção sobre o Bombarral, como aqui se pode ler. Área rural diretamente influenciada pela reorganização territorial inerente ao processo de Reconquista Cristã. Em terras próximas daqui houve a presença de ordens militares ou religiosas, como a Ordem de Cister. Região essencialmente agrícola há muitos séculos. É nesse contexto que devemos apreciar o Palácio Gorjão, um doa certificados da fidalguia rural. Não é por acaso que no museu se encontra um conjunto de pedras de armas destas nobres famílias, a dos Henriques, a dos Motas e a dos Gorjões. Durante a Idade Média, entre os séculos V e XV, o brasão de armas era colocado nos elmos e nos escudos como forma de reconhecimento em batalhas ou torneios. Primeiro como identificação pessoal, depois como distinção de família, era conquistado por dedicação à Coroa por feitos ilustres ou por tarefas administrativas. Os brasões eram usados nos pertences pessoais, em edifícios, gravados em pedra.
Início do Século XX, sendo visível a Sul uma habitação, o muro da propriedade e a mata ali existente. A Norte são visíveis o muro e um portão de entrada. Em frente do Palácio é visível a Ermida do Espírito Santo demolida em 1932 para alargamento da estrada.
Frente do Palácio Gorjão (década de 1960)
Pedra de armas dos Henriques e dos Motas. Andou pelo Palácio dos Henriques, esteve depois colocada na antiga Igreja Matriz do Bombarral e, mais tarde, no museu. É do século XVIII.
Exemplos da cerâmica bombarralense

Está patente uma exposição temporária no museu do Bombarral intitulada “Ecos da Cerâmica, produção artística no Bombarral”, poderá ser visitada até 26 de outubro. O móbil da exposição é recuperar e valorizar uma memória fundamental da vila: a sua história na produção cerâmica. Aqui se monstram peças reunidas por colecionadores, celebra-se a interligação entre arte, indústria e comunidade, revisitando um tempo em que o Bombarral se destacou como centro de criatividade, técnica e saber-fazer no panorama da cerâmica nacional. É no decurso da exposição que se dão informações importantes ao visitante:
“O nome Bombarral terá origem no termo medieval Mons Barralis, que significa monte de barro, o que reflete uma característica do território – os solos argilosos, que terão motivado outros topónimos, como Barrocalvo, Barro Lobo, Barreiras. Além do forno romano-lusitano e de olarias mais antigas, nomeadamente no Barrocalvo, existem fornos de tijolo e telha canuda ou mourisca no Salgueiro. Em 1920, o concelho do Bombarral noticiava a entrada em funcionamento de uma fábrica no Bombarral, destinada à produção de tijolo e telha Marselha. A Cerâmica Bombarralense (1944-1954) ganhou substancial relevo a nível local. Durante a segunda metade do século XX, laboraram as empresas Olaria dos Matinhos, Ceramarte, Bomcer.
A Cerâmica Bombarralense teve entre os seus acionistas dois artistas de renome, Júlio Pomar e Vasco Pereira da Conceição. A fábrica produzia louça doméstica, faiança artística, azulejos de vários estilos e louças comuns e sanitárias. Aqui se acolheram nomes importantes das artes e da cerâmica como Júlio Pomar, Luís Ferreira da Silva, Margarida Tengarrinha, Alice Jorge, Maria Barreira e Vasco Pereira da Conceição.”

Pratos fabricados por Júlio Pomar
Reprodução de painel cerâmico de Júlio Pomar, 1950. É um painel de uma das paredes do Botequim do Lago, no Campo Grande, em Lisboa. Foi aplicado em 1950, aquando da restruturação da zona segundo um projeto do arquiteto Keil do Amaral. O painel foi a primeira experiência de Júlio Pomar com azulejos, produzido na Cerâmica Bombarralense
Mulheres na lota, Júlio Pomar, 1952, linogravura, empréstimo de Alexandre Pomar
Nazarena por Maria Barreira, 1968

Maria Barreira foi bolseira da Fundação Gulbenkian em Paris, marcou presença nas várias Exposições Gerais de Artes Plásticas, como artista e organizadora. Realizou desenho, ilustração, cerâmica e medalhística, mas foi a escultura que lhe conferiu maior notoriedade.
Busto de Júlio César Machado, por Cesare Sighinolfi

Estamos agora na última das salas, a Sala Palavras, aqui se homenageiam dois escritores ligados ao Bombarral, Anrique da Mota (cerca de 1470 - cerca de 1545) e Júlio César Machado (1835-1890), notabilizado pela sua paixão pelo teatro. A organização museológica e museográfica da sala propõe um encontro com dois tempos e dois estilos, revelando como a escrita, nas suas várias formas, reflete, não só a individualidade dos autores, mas também o espírito do tempo e a identidade de um território.
No edifício requalificado temos aqui a entrada do belo museu do Bombarral, numa das pontas de uma praça desafogada onde se ergue a Câmara Municipal. Foi uma visita inesquecível, não hesito em recomendá-la a todas e todos.
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Nota do editor

Último post da série de 23 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27146: Os nossos seres, saberes e lazeres (697): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (218): Um novo e belo museu regional, de visita obrigatória, o do Bombarral - 1 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27167: Felizmente ainda há verão em 2025 (27): Meter o "chico" (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo CAR da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 28 de Agosto de 2025:


METER O CHICO

No tempo em que estive na tropa, havia dois termos depreciativos, se não ofensivos, Chico e Básico

Na recruta cedo travei conhecimento com os dois postos militares.

O Básico era um indivíduo sem qualquer especialidade, incapaz de marchar e manusear armas, enfim, servia para limpezas e recados dentro do quartel. Mandava em nós recrutas pois ainda éramos menos que básicos. Lidei mais de dois anos com um básico, que o era, vá se lá saber porquê.

O Santos de Grijó, esperto, desenfiado, bom de bola, indisciplinado, pronto para a malandragem, enfim figura incontornável. Estava ao serviço do Tenente Raposo que invariavelmente o mandava à procura de alguém. Esse alguém nunca aparecia, nem o Santos, e quando o tenente lhe perguntava por onde tinha andado, ele respondia que tinha andado à procura do fulano, mas que o não tinha encontrado.

Tantas vezes a bilha foi à fonte que um dia deixou lá a asa, e o Santos acabou preso na barbearia/prisão com uma porrada do Tenente-Coronel, que depois foi agravada pelo Comando-Chefe, e assim o também conhecido por Grijó, esteve praticamente um mês livre de fazer recados e de encostar a barriga ao balcão da cantina seu lugar preferido. Durante a noite fazia companhia aos camaradas na porta de armas, pois todos lhe abriam a porta e assim tirá-lo do calor horroroso que aquelas paredes do exíguo cubículo absorviam durante ar horas de sol escaldante. Um dia fez uma maldade, a jogar a bola, ao furriel Fernandes e levou logo uma chapada e, embora a contragosto, teve que ficar com ela.

Os chicos eram uma espécie imprescindível. Por cá eram eficazes em secretarias e tudo que dissesse respeito a orgânica militar. Os primeiros-sargentos eram na verdade os comandantes de companhia, os amanuenses, os que compravam e distribuíam. Era um posto invejável com benesses e lucros.

Também eram seres humanos, embora a malta desconfiasse da fartura. Na recruta, ia eu todo bem fardado a preparar-me para ir a casa pela primeira e vez faço continência a um sargento de cigarro na boca. O homem ainda me deixou passar, mas depois chamou-me e lá levei uma ensinadela.

Mas na CCS do 3872 todos os oficiais do quadro eram oriundos da GNR ou Guarda Fiscal. O tenente-coronel e o capitão já em fim de carreira, e dois sargentos promovidos a tenentes em duas passadas, acabando o tenente Raposo em comandante da companhia, nem seis meses após a nossa chegada a Galomaro.

Pródigo em ameaças, nunca castigou ninguém e maldisse a sua sorte de estar entregue a semelhante canalha. Era também conhecido por tentar aliciar para as meninas dos seus olhos, a GF e a GNR, todos os apanhava a jeito. A maior parte mantiveram as promessas em lume brando e outros aceitaram integrar essas forças onde fizeram carreira. Nunca me convidou a mim, vá-se lá saber porquê.

O outro chamava-se Moscoso, nunca o conheci bem embora fosse voz corrente que não era flor que se cheirasse.

Devem ter morrido pois já não eram jovens e já se passaram mais de cinquenta anos. O Caramba ainda se encontrou com o já Capitão Raposo ainda de serviço na sua amada Guarda Fiscal.

Que a terra lhes seja leve bem como ao Santos que morreu pouco tempo depois de cá chegar.

Juvenal Amado
28/08/2025


Na foto o nosso Tenente Raposo e do Caramba.
Na foto estão: de pé, o Caramba; o Aljustrel; o sargento Silva e outro que não me lembro o nome pois esteve quase sempre em Bissau; o Tenente Raposo e o Santos Grijó. À janela o Ermesinde, já falecido.
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Nota do editor

Último post da série de 28 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27163: Felizmente ainda há verão em 2025 (26): O Meu Poema Azul (Versão do fim da tarde) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P27166: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (9): Secas e fomes levaram ao longo do séc. XX à morte de mais de 100 mil pessoas


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1. "30 pessoas morriam por dia, no Mindelo", em São Vicente, no auge da fome que grassou em Cabo Verde... A cidade do Mindelo, cuja economia era muito dependente do tráfego marítimo, foi profundamente afectada pela guerra, e  não escapou aos horrores da seca e da fome. Aí estavam estacionados alguns milhares (c. de 3300)  expedicionários portugueses, como o 1º  cabo Luís Henriques, nº 188/41 (1º Pelotão, 3º Companhia, 1º Batalhão, RI 5).

Os mortos eram levados em esquife e enterrados em vala comum, no cemitério de Monte Sossego. Não se sabe qual foi a morbimortalidade entre os soldados, mas também deve ter sido elevada (por turbeculose, doenças diarreicas, e outras). (No total, em mais de 6 mil homens mobilizados para Cabo Verde, nesta época, terá  morrido  circa 1 %.)

Foi, só mais tarde,  ao ler o romance Hora di Bai (editado pela Vértice em 1962), do Manuel Ferreira (1917-1992), expedicionário como o meu pai (esteve no Mindelo entre 1941 e 1947), que eu me apercebi  dessa tragédia imensa, a seca e  a fome que assolou, em 1941/43,  o arquipélago de Cabo Verde (e depois de novo, no pós-guerra em 1947/48). 

E que matou meninos como o Joãozinho, que rondavam o quartel e que o meu pai protegia, dando-lhe os restos de comida. Era o seu 'impedido".

Recordo-me de o meu pai, à beira de completar 90 anos, em 2010,  já não ser capaz de dar, com precisão, as datas em que terá ocorrido o pico da epidemia de fome. Muitos de nós ainda não tiveram  a consciência dessa tragédia que, de resto, também não foi conhecida pela população portuguesa metropolitana da epoca. Cabo Verde ficava longe... Até por que em no Portugal metropolitano a morte, nomeadamente a mortalidade infantil (mais de 120 casos por 1000!) era banal, a par da mortalidade por tuberculose entre os jovens (10% de todas as mortes!). 
 

Luís Henriques
 (1920 - 2012).
Faria 105 anos
em 19 de agosto de 2025.
Os números que o meu pai cita (30 mortes por dia no Mindelo), devem referir-se ao 1º semestre de 1943. Ele diz que "não viu,  ouvia dizer",  
quando esteve internado ("quatro meses"), no hospital militar (ou anexo, um estabelecimento de repouso,  a nordeste da cidade do Mindelo), já na parte final da sua comissão. Ele esteve 26 meses na Ilha, como expedicionário entre julho de 1941 e setembro de 1943. 'Farto de engolir pó ". Teve alta da junta médica hospitalar em 17/8/1943. 

De qualquer modo, trinta mortos por dia era muita gente, numa ilha que não teria mais do que 15 mil habitantes (em 1940), e contou com a presença de mais de 3300 (!) expedicionários, entre meados de 1941 e finais de 1943 (o que dava um elevada densidade militar na ilha: 4,5 habitantes por cada expedicionário).

Os "expedicionários" fizeram o que puderam,  organizando esquemas de socorros à vítimas nas zonas onde estavam aquartelados (Lazareto, etc.).

Mais de 2/3  dos do total dos efetivos  (c. 6500 homens) estavam afetos à defesa do Mindelo (ou seja, do porto atlântico,  Porto Grande,  ligando a Europa com a América Latina, a par dos cabos submarinos).

Só havia “vapor” (barco), com mantimentos e correio, de três em três meses…  A seca e a fome que assolaram Cabo Verde nessa época, e que fizeram milhares e milhares de mortos (c.  20 mil em todo o arquipélago) tiveram impacto na consciência de bom português,  bom cristão e bom lourinhanense, que era o 1º cabo Luís Henriques, órfão de mãe aos dois anos (vítima de tuberculose, na sequência ainda da pneumónica ou "gripe espanhola" que matou 2% da população portuguesa, que era então de 6 milhões).

O seu "impedido", o Joãozinho, de 5/6 anos (se bem recordo), que ele alimentava com as suas próprias sobras do rancho, também ele morreu, de fome e de doença, em meados de 1943. Estava o meu pai  no hospital. Deu todo o dinheiro que ali tinha (c. 16 escudos) para o enterro do seu "Joãozinho". Ouvi muitas vezes esta história dolorosa na minha infância...


Secas e fomes em Cabo Verde no séc. XX: uma tragédia quase ignorada ainda hoje pelos portugueses


O século XX em Cabo Verde foi marcado por uma trágica sucessão de secas e fomes que dizimaram a população, forçaram a emigração em massa e deixaram cicatrizes profundas na memória coletiva do arquipélago.

Estes períodos de crise, longe de serem meros desastres naturais, foram exacerbados por 3 factores principais:

  • negligência da administração colonial portuguesa;
  • políticas agrárias inadequadas;
  • vulnerabilidade estrutural de um território semiárido.

(i) Causas (estruturais e conjunturais)

  • Clima saheliano, muito variável: precipitação baixa e irregular, concentrada em poucas semanas (sobretudo ago-set), com longos períodos secos; anos sucessivos sem “água grande” provocavam quebras de safra em cadeia; o regime de chuvas depende do posicionamento/força da Frente/Zona Intertropical e de variações atlânticas, o que amplifica a irregularidade anual;
  • Base alimentar frágil:  forte dependência do milho (e feijões) que, quando falhava(m) seguia-se fome, doença e mortalidade;
  • Degradação ambiental: solos insulares delgados , erosão, sobrepastoreio e arborização insuficiente, limitando retenção de água e resiliência agrícola;
  • Fatores político-económicos coloniais:  fraco  investimento público, prioridades orçamentais restritivas no Estado Novo, falhas de abastecimento/armazenamento de água, mercado (inclusive especulação), e uma resposta tardia à crise.

(ii) Principais crises de secas e fomes no séc. XX

As crises mais devastadoras ocorreram em três vagas principais: no início do século, nos anos 20 e, de forma particularmente brutal, na década de 1940.

(i) A Viragem do Século: 1901/04

O início do século XX já anunciava as dificuldades que estariam por vir. Um ciclo de seca severa entre 1901 e 1904 provocou uma fome generalizada, resultando em mais de 20 mil mortos.

As três razões que explicam a situação de total desproteção da população:

  • falta de investimento em infraestruturas de armazenamento de água,
  • dependência de uma agricultura de sequeiro;
  • ausência de um plano de contingência por parte do governo colonial.

A resposta tardia e insuficiente, focada em trabalhos públicos de pouco impacto, não foi capaz de mitigar a mortalidade e o sofrimento.


(ii) A Crise dos Anos 20: 1921/22

Duas décadas depois, a história repetiu-se com contornos ainda mais dramáticos. A fome de 1921/22, novamente desencadeada por uma seca prolongada, ceifou a vida a dezenas de milhares de cabo-verdianos.

A situação foi agravada pela crise económica que Portugal atravessava, durante a I República, e a seguir ao fim da I Grande Guerra, o que limitou ainda mais a capacidade e a vontade de prestar auxílio à colónia.

A emigração, principalmente para São Tomé e Príncipe em condições de trabalho análogas à escravatura, tornou-se a única via de escape para muitos, desestruturando famílias e comunidades inteiras.


(iii) A Grande Fome dos Anos 40: O Auge da Tragédia


A década de 1940 representa o período mais sombrio da história contemporânea de Cabo Verde, com duas vagas de fome de uma violência inaudita. Em 1943 estavam no Mindelo o meu pai, como expedicionário, e o Amílcar Cabral, como estudante do liceu.

1941/43: uma seca implacável mergulhou o arquipélago numa crise alimentar sem precedentes; a produção agrícola colapsou; as reservas de alimentos esgotaram-se rapidamente; a resposta do governo de Salazar foi notoriamente inadequada, com a ajuda a chegar a conta-gotas e a ser distribuída de forma ineficaz;  cerca de 20 mil pessoas morreram de inanição e de doenças associadas à subnutrição.

1947/49: mal refeito do choque anterior, o arquipélago foi atingido por um novo e ainda mais mortífero período de seca e fome; esta crise, que ficou gravada a fogo na memória popular, resultou numa catástrofe demográfica: Ilhas como Fogo e Santiago foram particularmente afetadas, com relatos de aldeias inteiras dizimadas.

Foi neste contexto de desespero que ocorreu o "Desastre da Assistência", a 20 de fevereiro de 1949, na cidade da Praia. Centenas de famintos que aguardavam a distribuição de comida junto a um centro de assistência, morreram quando um muro desabou sobre a multidão. Matou oficialmente 232 pessoas (há quem estime em 3 centenas ou mais)

Este evento trágico tornou-se um símbolo da inépcia e da desumanidade da resposta colonial à fome.


(iv) Mortalidade estimada

Estudos demográficos clássicos (António Carreira, compilados e discutidos por trabalhos recentes da Universidade Nova de Lisboa) estimam as seguintes perdas populacionais líquidas em termos de mortes (e alguma emigração de crise), superiores a 100 mil;
  • 1902–1903: –21 899 pessoas (≈ 12,5% da população)
  • 1920–1921: –22 886 (≈ 10,0%).
  • 1941–1943: –18 679 (≈ 6,2%).
  • 1947–1948 (“o Flagelo de 47”): –44 600 (≈ 16,3%).

Observação: estes números são estimativas robustas usadas na historiografia cabo-verdiana; variam ligeiramente por fonte, mas dão a ordem de grandeza das perdas humanas.


(v) Consequências e Legado

  • Elevada Morbimortalidade por inanição e epidemias associadas (disenterias, etc.):  estima-se que as fomes do século XX tenham causado a morte a uma parte significativa  da população cabo-verdiana (mais de 100 mil no séc. XX);
  • Emigração forçada/contratada como válvula de escape: dezenas de milhares de cabo-verdianos seguiram para as roças de cacau e café de São Tomé e Príncipe ao longo do século (primeiras vagas desde 1903; picos nas décadas de 1930–50); as condições foram duras e marcaram a memória coletiva: muitos cabo-verdianos foram enviados à força, em condições desumanas, para trabalhar nas plantações de cacau e café, numa forma de trabalho forçado que deixou um legado de trauma e exploração;
  • Desestruturação Social: a perda de vidas e a emigração massiva desestruturaram a sociedade cabo-verdiana, com um profundo impacto nas estruturas familiares e comunitáriasm
  • Reconfiguração social e cultural: reforço da diáspora e das remessas; trauma coletivo refletido em obras como Chiquinho (Baltasar Lopes) e em canções de resistência sobre “Fome 47” ou a "Hora di Bai", de Maniuel Ferreira;
  • Consciência Política / Mudança política a longo prazo: a gestão desastrosa das crises de seca e fome por parte do regime colonial português alimentou o contestação ao imobilismo do Estado colonial; refiorçou o sentimento nacionalista e foi um dos catalisadores para a luta pela independência, que seria alcançada em 1975; no pós-independência o país investiu em dessalinização, açudes/valas e redes de abastecimento para reduzir a vulnerabilidade (embora a variabilidade climática permaneça); te,-.se procuradeo também reflorestar as ilhas.

As memórias destas tragédias continuam vivas na cultura cabo-verdiana, presentes na música, na literatura e na tradição oral, servindo como um lembrete constante da resiliência de um povo que, apesar de abandonado à sua sorte, soube sobreviver e reconstruir o seu futuro.

Em resumo choques climáticos recorrentes atingiam uma agricultura de sequeiro muito dependente do milho, sobre solos frágeis e com infraestruturas e políticas coloniais inadequadas. Quando a chuva falhava um ou dois anos seguidos, a produção ruía e o arquipélago, com pouca capacidade de armazenar/redistribuir alimentos, entrava rapidamente em crise de subsistência com mortalidade e êxodos significativos.

Apresenta-ae a seguyir um ronologia das grandes secas e fomes em Cabo Verde no séc. XX, com referência às ilhas mais afetadas e alguns elementos de contexto (chuva, mortalidade, emigração).

Cronologia resumida – Secas e Fomes em Cabo Verde (séc. XX)

1902/03
  • Contexto: 2 anos seguidos de “fome de sequeiro” (chuvas quase nulas).
  • Ilhas mais afetadas: Santiago, São Nicolau, Santo Antão.
  • Consequências: ~22 mil mortos (12,5% da população).
  • Início de emigração em massa para roças de São Tomé (contratados).

1920/21
  • Contexto: nova falha de chuvas após ligeira recuperação.
  • Ilhas: Santiago e Fogo muito castigadas; escassez generalizada.
  • Consequências: ~23 mil mortos (10%).
  • Aumenta fluxo emigratório para São Tomé e EUA.
  • “Milho do Brasil” (importado) foi crucial, mas tardio.

1941/43
  • Contexto: falhas de safra coincidentes com restrições da Segunda Guerra Mundial (importações limitadasm dificuldades de transprote marítimo).
  • Ilhas: quase todo o arquipélago, mas Santo Antão e São Nicolau registam graves perdas.
  • Consequências: ~19 mil mortos (6%).
  • Epidemias de disenteria e malnutrição.

1947/48 – “O Flagelo de 47”
  • Contexto: seca prolongada, colheitas de milho quase nulas.
  • Ilhas: todas afetadas, com gravidade em Santiago, Fogo e São Nicolau.
  • Consequências: ~44,6 mil mortos (16%). Grande mortandade em povoados do interior.
  • 20/02/1949, Praia – “Desastre da Assistência”: colapso de muro numa distribuição de alimentos → 232 mortos oficiais. Aumento dramático da emigração contratada para São Tomé e clandestina para América. Trauma coletivo cristalizado em música, literatura (Chiquinho).
  • Distribuição geográfica dos impactos: Santiago: historicamente a mais vulnerável (densidade populacional alta, pouca resiliência) | Santo Antão e São Nicolau: também muito afetadas, devido ao peso da agricultura de sequeiro ! Fogo e Brava: alternância entre boas colheitas e fome, mas sempre fortemente dependentes do milho | al, Boavista e Maio: menos agrícolas, mais dependentes de importação → crises por falta de abastecimento, não tanto por seca direta.

Notas finais:
  • Perdas humanas totais (1900/50): ~100 mil mortos em crises de fome — cerca de 1/3 da população média do período.
  • Emigração de crise: estima-se que dezenas de milhares saíram como contratados para São Tomé (1903–1970), e muitos outros emigraram clandestinamente para EUA, Senegal, Guiné, Portugal.
  • Após 1950s: melhores redes de abastecimento, socorros externos (ajuda alimentar), dessalinização e obras hidráulicas reduziram a mortalidade em secas, mas não eliminaram a dependência externa.

Fionte: Pesquisa LG | Assistente de IA (Gemini, ChatGPT)
(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27165: Notas de leitura (1833): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 9 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2025:

Queridos amigos,
A despeito de confirmadas imprecisões e erros, as navegações de Cadamosto e Usodimare constituem um documento do mais alto significado: pelo quadro elogioso do Infante D. Henrique e por uma certa cronologia de acontecimentos que levam à exploração da costa ocidental africana; por revelarem designações em termos geográficos comuns na época, caso da baixa Etiópia e da Terra dos Negros; pela descrição do rio chamado Senegal, "antigamente Níger" e pela preciosa descrição que se faz do reino do Senegal, das crenças, trages e costumes, guerras e armamento destes povos. Veremos nos próximos textos o que nos dizem sobre a descoberta de três ilhas de Cabo Verde, assunto polémico, veremos em toda a extensão a navegação segunda e a exploração do litoral africano desde o rio Geba. Não hesito em dizer que se trata de documento fundamental para a história de três países: Portugal, Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 9

Mário Beja Santos

Este terceiro e último volume de Documentos Sobre a Expansão Portuguesa, por Vitorino Magalhães Godinho, dá um especial realce às navegações de Usodimare e de Cadamosto. Vimos no texto anterior como Cadamosto escreve o encontro com o Infante D. Henrique, segue-se a Navegação Primeira e como chega ao reino do Senegal, escrevendo o seguinte:
“O Primeiro Reino de Negros da baixa Etiópia é este que fica sobre o rio do Senegal; os povos que habitam as suas margens chamam-se Jalofos, e toda esta costa e países acima declarados, é terra baixa, até Cabo Verde, que é a terra mais alta de toda aquela costa. Segundo eu pude perceber, este reino do Senegal confina pela terra a parte de Levante com o país dito Tucurol, da parte do sul com o reino de Gâmbia, do poente com o mar oceano e do norte com o reino acima dito, que extrema os amulatados destes primeiros negros. Neste reino do Senegal não se sucede por herança; mas há diversos Senhores, os quais às vezes por ciúme que têm uns dos outros se ajuntam três ou quatro e elegem um rei a seu modo. Este rei dura o tempo que apraz aos ditos Senhores; e às vezes o depõem à força, e outras ele se torna tão poderoso que se defende deles; o seu Estado não é permanente e firme como é o do Sultão do Cairo; antes está sempre em suspeitas de ser morto, ou expulso. Este rei não é semelhante aos dos cristãos, porque o seu reino é de gente selvagem, e pobríssima, e não é nele cidade alguma murada, senão aldeias com casas de palha.

O rei não tem rendimento certo de tributos, mas os Senhores deste país em cada um ano para o terem amigo lhe fazem presente de alguns cavalos, que são muito estimados por haver falta deles; e não só tem este fornecimento, mas também outros de animais, como vacas e cabras. Mantém-se também este rei com roubos, que manda fazer de muitos escravos, tanto no seu país, como nos vizinhos, dos quais se serve por muitos modos; também vende escravos aos Azenegues e marcadores árabes, que os trocam por cavalos, e igualmente aos cristãos. É lícito a este rei ter quantas mulheres quer, e assim também a todos os Senhores, o rei tem sempre de trinta para cima
[descreve com detalhe a vida familiar e a alimentação daquele povo].

A religião destes primeiros Negros em Maometana; mas não estão bem firmes na sua crença, como os mouros brancos, e principalmente o povo miúdo. Os Magnates passam por Maometanos têm junto de si alguns dos ditos Azenegues, ou Árabes, que acaso aí chegam, e lhes dão alguma instrução, dizendo-lhes que seria grande vergonha serem eles Senhores e viverem sem nenhuma lei de Deus.

Quase toda esta gente anda continuamente nua, e todo o seu vestuário consiste em um couro de cabra posto em forma de bragas, com que se cobrem; porém os Magnates, e aqueles que podem, vestem camisas de pano de algodão, porque naqueles países nascem algodoeiros, e as suas mulheres vestiam algodão, e fazem panos da largura de um palmo, e não sabem fazê-los mais largos, por não terem pentes para tecê-los, e assim cosem quatro ou cinco daqueles panos juntos quando querem fazer algum trabalho largo.

Os homens destes países fazem muitos serviços femininos; como são fiar, lavar panos e outras coisas. Sente-se continuamente um grande calor e quanto mais se caminha para além, tanto maior é; e comparativamente em janeiro não faz tanto frio naquele reino que o não faça maior no mês de abril nestas nossas terras. Os homens, e mulheres deste país são limpos de si, porque lavam todo o corpo quatro ou cinco vezes cada dia; mas no comer são porcos, e sem nenhuma decência; nas coisas de que não têm prática são simples e pouco sagazes: mas nas coisas de que a têm são espertos como qualquer de nós. São de muitas palavras, e nunca acabam de falar, e comummente são mentirosos e enganadores em extremo; apesar disso são caritativos, porque dão de comer e beber a qualquer forasteiro que chegue a sua casa por um jantar, ou uma noite; e isto sem estipêndio algum.

Estes Senhores Negros guerreiam muitas vezes uns com os outros, e também algumas vezes com os seus vizinhos; as suas guerras são a pé, porque há pouquíssimos cavalos que lá não podem viver pelo grande calor; não trazem vestidura de armas pelas não terem, e mesmo pelo grande calor não poderiam suportá-las, somente têm escudos redondos e largos, os quais são feitos de couro de um animal chamado anta, que é duríssimo de penetrar; e para ofender têm quantidades das azagaias, que são uma espécie de dardos ligeiros, e atiram-nos com muita velocidade, porque são grandes mestres disso; têm estes dardos um palmo de ferro lavrado, com barbas miúdas, postas muito subtilmente por diversos modos; e onde entram, ao puxar para fora rasgam as carnes, com aquelas barbas, de maneira que são muito más para ofender; também trazem alguns alfanges mouriscos, à maneira de meia espada turca, isto é, voltadas como arco, e são feitas de ferro sem nenhum aço, porque no reino de Gâmbia de Negros, que jaz mais além, tiram o ferro, de que fabricam estas armas; mas não tem aço como já disse, ou verdadeiramente, se o há onde há ferro não o conhecem, ou não têm indústria para fazê-lo. Usam também de outra arma cravada em uma haste, à maneira de um espontão dos nossos, e não têm outras. As suas guerras são muito mortíferas, por estarem desarmados, e os seus golpes nunca são dados em falso, matando-se como se fossem feras; são muito atrevidos e bestiais, e em qualquer pequeno perigo deixar-se-ão antes matar que fugir, ainda podendo.

Não têm navios, nem nunca os viram, salvo depois que tiveram conhecimento dos portugueses. É verdade que aqueles que habitam sobre este rio, e alguns dos que estão junto ao mar têm umas canoas, isto é, almadias de um pau só, as maiores das quais levam três ou quatro homens quando muito; e com estas vão às vezes a pescar, e atravessam o rio, indo de um a outro lugar; e estes tais Negros são os melhores nadadores do mundo pela experiência do que vi fazer.”


A seguir, Cadamosto vai descrever ao pormenor o país de Budomel.

Passando para outra matéria, iremos nos próximos textos fazer referência às ilhas descobertas de Cabo Verde, à Navegação Segunda de Cadamosto e Usodimare, terminando com a exploração do litoral africano desde o rio Geba até à Mata de Santa Maria.


Vitorino Magalhães Godinho
Alvise Cadamosto apresentado ao Infante D. Henrique
Mapa das Ilhas de Cabo Verde e da Costa da Guiné, 1771
Mapa do Rio Gâmbia e arredores, cerca de 1732

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 22 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27142: Notas de leitura (1831): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 8 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 25 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27151: Notas de leitura (1832): "A Corja de Batoteiros", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2019 (1) (Mário Beja Santos)