quarta-feira, 11 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20724: (De)Caras (149): Carta pungente do Umaru Baldé (c. 1953-2004), um dos meninos-soldados que passaram pelo CIM de Contuboel, entre março e julho de 1969... Era dirigida ao seu antigo instrutor militar, Valdemar Queiroz.



Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > CIM - Centro de Instrução Militar > Narço de 1969 > Silhueta do recruta Umaru Baldé, natural de Dembataco, regulado de Badora, setor L1 (Bambadinca), nº mec 82115869.



O AMOR NUNCA ACABA

O Amor nunca acaba,
ninguém se esquece do passado, do melhor  e do pior.
Eu lembro-me desse dia 12 de março de 1969,
quando fui chamado para a tropa, pelos Portugueses.

Na verdade eu tinha poucos anos de idade
e era o único filho do meu pai.
A minha Mamã revoltou-se,
disse que eu não tinha idade para ir para a guerra,
mas infelizmente o alferes que tinha vindo para nos levar,
não podia entender esta revolta.

O Alferes disse-nos:
"Todos somos Portugueses,
saímos de muito longe
para defender a Pátria Portuguesa.
Então, para povo de Dembataco saber
que em Portugal não há diferanças de raças nem de credos,
todo o cidadão tem que ir cumprir
o serviço militar português".
A minha mamã chorou, disse:
"Ai, meu Deus, o meu filho único vai me deixar
para ir morrer na guerra."

Esta data foi um dia de tristeza e de lágrimas
para o povo de Dembataco e de Taibatá.
Na verdade ficámos ali até às 4 horas da tarde
até entramos para as viaturas militares 

que nos levaram para Bambadinca.

Eu, com a pouca idade que eu tinha,
o que é que podia fazer ?
Fiz-me homem,
tirei a recruta em Contuboel,
fui o melhor apontador de morteiro 60.

Depois, na especialidade,
fiquei no mesmo sítio,
sendo a minha primeira companhia a CCAÇ 2590 / CCAÇ 12
onde nunca esquecerei o sofrimento
que sofri pela minha Pátria Portuguesa,
na Guiné Portuguesa.

Na verdade, em dois anos e alguns meses
em que estive como operacional,
fiz 78 operações no mato do Xime,
na zona do Xitole 
e até no Boé,
lá para os lados Canjadude.

Na minha companhia, durante dois anos
só tivemos 5 soldados mortos, quatro pretos e um branco.(*)
Depois fui transferido para Bissau como primeiro cabo,
onde fui colocado no comando das transmissões,
no quartel de Santa Luzia,

até ao fim da guerra em 1974.

Umaru Baldé

[Revisão e fixação do texto: LG]




Envelope da carta enviada pelo Umaru Baldé ao José Valdemar Queiroz Silva, seu antigo instrutor militar, residente no Cacém (foi deliberadamente rasurado o nome da rua do destinário, por razões de privacidade). É pena o carimbo do correio estar ilegível. A carta deve ser de finais de 1999, princípios de 2000, segundo a explicação do Valdemar Queiroz :  

Contuboel, c. março / abril de 1969 > 
O instrutor e o recruita
Foto: Valdemar Queiroz 

"Anexo umas cartas (*) que me foram enviadas, nos finais dos anos 90 e princípio dos anos 2000, pelo Umaru Baldé que estava a residir na Amadora.[São quatro cartas, só duas das quais datadas, uma de 2000 e outra de 2003]. 

"O Umaru Baldé foi aquele menino soldado da CArt 11 e da CCaç 12 que já foi por nós muito falado. (...) Estas cartas que julgava desaparecidas, foram por ele ditadas a alguém com máquina de escrever ou computador e até por ele escritas [, numa delas há uma parte manuscrita.]

Por cá também não teve grande sorte, quer por não arranjar trabalho [estável], quer por já estar muito doente [, em 2000 esteve internado no Hospital Curry Cabral, em Lisboa]. Por cá andou uns anos, voltou a ver camaradas do tempo da guerra [João Ramos, António Fernando Marques,  Fernando Sousa, da CCAÇ 12; Mário Pina Cabral, Abílio Duarte, Aurélio Duarte, Valdemar Queiroz, da CART 11...] e sempre a tentar arranjar forma de ser reconhecido como militar do Exército Português.

Por fim e, depois, de passar por várias internamentos hospitalares tentou arranjar dinheiro para regressar à Guiné e à sua Demba Taco,  em Bambadinca.

Sempre concretizou o seu desejo, mas pouco tempo depois veio a morrer da grave doença que o apoquentava,  viria a morrer em Portugal [não sabemos, ao certo, se no antigo Hospital do Barro, em Torres Vedras, por volta de 2004, ou no Hiospital Curry Cabral; esteve internado, em diferentes períodos, num e noutro] (...)"







Cópia da prineira parte da carta, datilografada, sem data nem local, tem a foto do remetente, o Umaru Baldé, ao canto superior esquerdo. Excerto.

Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






Guiné > Região de Bafatá > Bambadinca > CCAÇ 12 > c. 1970 > Umaru Baldé (c. 1953-2004), soldado do recrutamento local, nº 82115869, tirou a recruta e a especialidade no CIM de Contuboel. Foi apontador de morteiro 60, soldado arvorado e depois 1º cabo infantaria da CCAÇ 12 (1969-1972). Foi depois colocado, em Santa Luzia, Bissau, no quartel do Serviço de Transmissões, até ao fim da guerra. Conheceu, em mais de metade da vida, a amargura e a solidão do exílio. Veio morrer a Portugal onde teve grandes camaradas e amigos, solidários, que o ajudaram: cit
e-se, entre outros, o João Ramos, o António Fernando Marques,  o Fernando Sousa, da CCAÇ 12; o Mário Pina Cabral, o Abílio Duarte, Aurélio Duarte, Valdemar Queiroz, da CART 11.


Foto (e legenda): © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados . [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Comentário de LG:


Nunca é de mais ler e reler esta carta do Umaru Baldé, de excecional valor documental, datilografada, sem data, expedida da Amadora (onde vivia depois de chegar a Portugal, em meados de 1999). A primeira folha tem a foto do remetente, canto superior esquerdo. A carta era dirigida ao José Valdemar Queiroz, a viver na altura no Cacém,e seu antigo instrutor no CIM de Contuboel (, em março/maio de 1969). É possível que outras cartas de igual teor tenham sido remetidos outros camaradas da CCAÇ 12 e da CART 11, que ele conhecia de Contuboel e de Bambadinca. A carta deve ser interpretada como um SOS, um pedido de ajuda. 

Como já comentei, é um relato pungente da sua  experiência de recrutamento por parte do exército português e da despedida da sua mãe e da sua tabanca, Demba Taco, 
regulado de Badora,  setor L1 ( (Bambadinca), em 12 de março de 1969.  Na altura ele era um miúdo, de etnia fula, que deveria ter 15/16 anos, "filho único de sua mãe". 

No Centro de Instrução Militar de Contuboel, o Umaru Baldé (c. 1953-2004) fez a recruta e a especialidade, sendo integrado na CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, como soldado arvorado.

Era um exímio apontador de morteiro 60, como o demonstrou em exercícios de fogo real, no CIM de Contuboel, na presença do gen Spínola e seus acompanhantes, e em inúmeras situações em que esteve debaixo de fogo, durante cerca de dois anos e meio. 


Na CCAÇ 12 ele era o nosso "djubi", o nosso menino, às vezes mimado demais... Por sorte já não estava no Xime, em agosto de 1974, aquando da retração do nosso dispositivo militar, da entrega do aquartelamento do Xime ao PAIGC e da extinção da CCAÇ 12 e da CCAÇ 21... Por sortem estava em Bissau, em Luzia. Consta que em Madina Colhido foram fuzilados alguns quadros da CCAÇ 12 (Abibo Jau, por exemplo) e da CCAÇ 21 (Jamanca), ainda antes da saída definitiva das tropas portuguesas do território da Guiné-Bissau. O PAIGC estava impaciente para ajustar contas com os "cães dos colonialistas", e em especial com os fulas de Bambadinca...

Depois da independência da Guiné-Bissau, e com justificado receio de represálias por ter servido no exército português, atravessou quase meia África para chegar a Portugal, em 15 de abril de 1999, tendo entretanto vivido ou sobrevivido (, não sabemos como...) no Senegal (11 anos), Mali (1 ano), Costa do Marfim (2 anos), Gana (2 meses), Burkina Faso (7 meses). etc, e passando  ainda pelo Benin, Guiné-Conacri, de novo Guiné-Bissau, e por fim, Portugal, Guiné-Bissau e de novo Portugal (onde veio, finalmente, para morrer).

É membro, a título póstumo, da nossa Tabanca Grande (**)

Esta carta terá sido escrita em meados ou finais de 1999 / princípios de 2000. Morreu de tuberculose e HIV/SIDA em 2004. Nunca escondeu o seu grande amor à Pátria Portuguesa que lhe foi madrasta. Não sabemos se, no regresso do seu longo "exílio", chegou a reencontrar a sua "mamã".

Este documento humano, lancinante, precisa de ser melhor conhecido, analisado, divulgado e comentado. Na altura da publicação das cartas, escrevi entre outros o seguinte comentário:


O Umaru Baldé é outro exemplo paradigmático da desgraça que aconteceu a todos aqueles guineenses, fulas e não só, que acreditaram no sonho de uma Pátria Portuguesa onde todos podiam caber, e que combateram nas nossas fileiras... Spínola foi o arauto desse sonho mas também o seu coveiro... A História nos julgará a todos!

Spínola já não está cá para se defender... E os spinolistas, se é que existem, não vão ter a maçada de nos ler e muito menos responder... Mas eu acrescentaria que, além de Spínola, todos nós, e fomos muitos, deixámos correr o marfim: 
"militarizámos" o chão fula, defendemos o chão fula, morremos na defesa do chão fula, os fulas combateram e morreram na defesa do projeto spinolista, recrutámos jovens fulas (alguns eram crianças, "filhos de sua mãe" como o Umaré Baldé e outros putos com quem fizemos a guerra), formámos unidades de elite com jovens guineenses, formámos companhias de milícias, formámos companhias africanas, algumas totalmente africanas (como as CCAÇ 21 e 22), obrigámo-los a "invadir" um país vizinho, como a Guiné-Conacri, onde fica o Futa Djalon... e nunca sequer pusemos a hipótese de as coisas correrem mal para o nosso lado...

Qual era a alternativa ? Embarcar todos os "putos" Umaru Baldé e suas famílias, tão portugueses como eu, e instalá-los em Portugal, no Algarve ou no Alentejo ?

A maior deceção que teve o Umaru Baldé, quando chegou a Portugal, ao fim de um longo exílio de 24 anos, foi contatar que afinal Portugal e as autoridades portuguesas o consideravam um "estrangeiro"... Julgo que esse choque apressou a sua decisão (temerária) de voltar à terra natal... E apressou a sua morte... Portugal era a sua "terra prometida"!... Sofrendo de uma grave doença crónica (julgo que a tuverculose, associada ao  HIV/SIDA) e esgotado "stock" de medicação que levou consigo, só lhe restou voltar a Portugal, para aqui morrer...

É uma história cruel, mas é também a história de vida (trágica) de muitos guineenses que escolheram ficar do lado dos "tugas"... É uma história amarga para alguns camaradas como eu que também enquadrei e comandei homens como o Umaru Baldé, o Abibo Jau, o Zé Carlos Suleimane Baldé, o Sori ...

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Notas do editor:

Vd. postes de;



28 de setembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16532: (In)citações (102a): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte IV): "Viva Médicas e Médicos Portugueses. Viva Portugal com os Negros Unidos" (sic) (carta de 15 de novembro de 2000)


29 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16537: (In)citações (102b): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte V): O Umaru Baldé que eu conheci... O "show" de morteiro 60 que o "puto" deu, no CIM de Contuboel, em exercício de fogo real, na presença do próprio gen Spínola em maio de 1969... (Valdemar Queiroz, fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70) 29 de setembro de  2016 



Guiné 61/74 - P20723: Antropologia (37): Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes…, pelo Cónego Marcelino Marques de Barros (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Março de 2019:

Queridos amigos,
A referência a este primoroso trabalho do cónego Marcelino Marques de Barros não é o de uma mera referência cultural. Em termos científicos, ao nível das ciências sociais e humanas, é um trabalho pioneiro, talvez mesmo o primeiro de todos que saiu das mãos de um guineense. O antigo Vigário-Geral da Guiné era correspondente da Sociedade de Geografia, sentiu-se instado a alinhavar um punhado de notas, tudo apareceu rigoroso, conforme se sabe, fala no modo de saudar, nos pactos e juramentos, na hospitalidade, vai à família, aos costumes que podem ser agrícolas ou guerreiros, fala na morte e na sepultura, no modo de habitar, na vida doméstica, no vestuário, é o primeiríssimo etnolinguístico e poucas dúvidas tenho de que terá sido o pai da sociologia na Guiné, o percursor dos estudos linguísticos.
Este venerando investigador que se preparou em Cernache do Bonjardim veio a falecer em Portugal, ainda na I República.

Um abraço do
Mário


Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes… (1)

Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 3.ª Série – N.º 12, 1882, publicou um artigo do Vigário-Geral da Guiné, Marcelino Marques de Barros, porventura o primeiro grande intelectual guineense, com o título “Guiné Portuguesa ou breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes, línguas e origens dos seus povos”. Marcelino Marques de Barros tem sido alvo de alguns ensaios, deplora-se que o conjunto da sua obra não tenha tido a republicação que se justifica, ele foi etnolinguístico e explorou, com os seus conhecimentos, a dimensão antropológica, como um verdadeiro pioneiro. Dirige-se em primeiro lugar ao Governador da Guiné, Pedro Inácio de Gouveia, nos seguintes termos:  
“Ponderosos motivos de sincera admiração e reconhecimento com o ilustre governador me levaram gostosamente a escrever esta breve notícia sobre os usos e costumes do meu país. E apesar da diligência que nisso empreguei, vejo bem que me devem ter escapado muitos desalinhos e incorrecções de frase e mesmo erros na exposição dos factos, como é de esperar que aconteça sempre a todas as obras desta natureza feitas à pressa, na Guiné, sem livros, sem bibliotecas públicas em quem se vê forçado a recorrer quase exclusivamente à memória dos seus esclarecidos amigos, à sua e aos seus apontamentos”.

Lança-se num esboço sobre o mundo étnico, ele que se diz desconhecedor das inextrincáveis raças que povoam a Senegâmbia: fala dos Beafadas habitando as margens do Geba e Rio Grande, dos Mandingas, dos Fulas, dos Bijagós, Nalus, Brames, Papéis, Balantas, Felupes e mestiços. Reconheça-se que esta divisão tem imperfeições, o curioso é que o investigador tenta esmiuçar as diferentes subdivisões étnicas, caso dos Fulas onde coloca os Turoncas, Futa-Fulas, Fulas livres e Fulas Pretos ou escravos. Passando para a etnografia, observa o modo como os povos se saúdam. Diz que “quase todos os habitantes desta costa saúdam como nós e com apertos de mão. Os Felupes cumprimentam as pessoas de elevada hierarquia abanando as mãos juntas. Os Papéis de Cacheu levam bruscamente o indicador aos olhos da gente. Os mouros, deixando as suas sandálias à porta de quem muito respeitam, entram dizendo salamaleques. O Fula leva um século a fazer os seus cumprimentos: pergunta pela saúde do seu interlocutor, de toda a sua família, individualizando; pelo estado de todas as suas coisas, especificando; de todos os seus negócios feitos e por fazer".

Passando para os pactos e juramentos, refere que estes se fazem sempre perante duas os mais testemunhas e diz o seguinte: “Os parentes, embora ausentes, são sempre fiadores natos de qualquer pacto havido entre duas ou mais pessoas; no caso de rescisão, os parentes do culpado são reduzidos ao cativeiro e vendidos. O gentio não tem ideia do que seja palavra de honra e não se julga obrigado a dar cumprimento aos seus compromissos sem que os ligue a um juramento. O juramento individual é o que fazem aos seus manes ou aos grandes feitiços da sua nação. O juramento mais solene de paz e amizade entre duas nações ou tribos contendoras consiste no enterramento de pólvora e bala, acompanhado de outras cerimónias de rito sobre as asas de um ídolo ou feitiço”.

E passa para novo tema, a hospitalidade, praticada pela maior parte dos povos de um modo irrepreensível: “Até se julgam na obrigação de defender o seu hóspede dos danos ou ultrajes que possa sofrer dentro da sua casa ou fora dela, e, sendo preciso, cumprem este dever à mão-armada. Por excepção, entre os Balantas, ladrões famosos, não raras vezes o hospedado goza dos benefícios da hospitalidade enquanto não dá um passo fora da cabana ou enquanto não faz as suas despedidas”.

O tema agora é o tabu, e bem curioso é o seu punhado de observações: “Assim como os insulanos da Polinésia, os nossos gentios envolvem qualquer coisa ou pessoa num manto de prestígio sagrado; e os símbolos que representam este acto supersticioso são principalmente as manilhas de ferro, búzios ou ramos de palmeira. Na pessoa ou coisa sagrada não se pode tocar, sob pena de morte, que tarde ou cedo sobrevém de uma maneira misteriosa, isto é, por meio de um veneno mais ou menos lento”.

Passamos agora para a vindicta, dizendo o aprendiz de antropólogo que há para ali selvagens que são vingativos: “Qualquer membro de uma tribo é assassinado, justa ou injustamente, não se recorre ao tribunal dos reis ou dos grandes; qualquer dos filhos, e na falta destes seus próximos parentes, ficam na imprescritível obrigação de espingardear o assassino, e, na sua ausência, qualquer membro da sua tribo”.

Tema recorrente em todas as investigações antropológicas é o roubo. Eis o que nos diz Marcelino Marques de Barros: “Os Balantas roubam sempre, dia e noite, e em toda a parte; e muito se honram com isso, não como acto em si digno e meritório, mas como uma arte por onde se avalia a destreza, a astúcia e a audácia de um homem. O filho família de um Balanta que não mostra desde cedo suficiente habilidade na arte de furtar é desprezado pelos seus pais como ente inútil e efeminado. Estão convencidos que todo o homem tem direito de matar um ladrão apanhado em flagrante”.

Recordemos que estamos no século XIX e que a presença portuguesa é ténue, faz todo o sentido o que ele escreve sobre as correrias:
“As nações guerreiras armam-se muitas vezes, e vão, junto aos caminhos, atacar as caravanas para as despojar das suas mercadorias, ou então, envolvidos nas sombras de uma noite escura, assaltam de improviso uma aldeia inteira, metendo tudo a ferro e fogo, e arrastam as donzelas e as crianças para terras longínquas, onde as vendem ou as matam, quando não encontram quem as inverte por compra ou resgate”. E deixa uma palavra sobre a pirataria, as pirogas de guerra que atacam embarcações entre Bissau, Bolama, Pecixe e Cacheu.

Aborda igualmente a epigamia, a poligamia e a poliandria. Escreve o seguinte:
“Em toda a parte nesta costa o pai respeita a filha, o filho, a mãe e o irmão a irmã. O direito de contratar uma união conjugal é sempre restrito a certas condições. A idade entre os 14 a 20 anos é o limite médio em que geralmente têm lugar os casamentos. Exceptuando os Bijagós, entre os quais nenhumas condições existem para toda a espécie de união conjugal, gentios há que não cedem as suas filhas em casamento sem que seja de antemão comprada a seus pais por 60 a 200 mil réis, que se dão e se recebem a troco de presentes, isto especialmente entre Papéis e Mandingas. Por causa dos maus tratos, a mulher volta a casa dos seus pais, que ficam na obrigação de restituir os presentes que receberam ou o seu valor”.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20584: Antropologia (36): As insígnias de autoridade dos Felupe e Marcos no Chão Felupe, por Lúcia Bayan (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20722: (De)Caras (148): O Amílcar Cabral, desde o início e até ao fim, fez tudo para mobilizar os dignitários fulas para a causa da luta, sem qualquer sucesso. E isto não era uma mera coincidência. Os mesmos dignitários, imbuídos de realismo e pragmatismo, diziam-lhe: "Deixem os brancos porque eles são o garante da paz na província e, no dia em que se forem embora, nós vamos recomeçar as nossas guerras do passado recente"... Premonitório: 46 anos depois da independência, continuamos estagnados entre guerras e paz podre... (Cherno Baldé)

1. Comentário do Cherno Baldé, nosso colaborador permanente, ao poste P20720 (*) [, tem mais de duzentas referências no nosso blogue; nasceu em Fajonquito há 60 anos; é um 'homem grande', sábio, a viver em Bissau]:

Caro Valdemar,

Escreves um texto cheio de sentimentos de saudade e também de compaixão para com os vossos recrutas tão jovens, quase crianças. Todavia, olhando bem para vossa foto conjunta, tu apareces com uma maior quantidade de pêlos no corpo, mas também eras quase tão puto quanto eles.

Não deverão ter morrido de velhice, porque eram todos um pouco mais velhos que eu que neste momento estou na casa dos sessenta e não me sinto um velho, provavelmente o stress traumático, durante e depois da guerra, terá contribuído para o desaparecimento precoce desses jovens soldados.

Como é que se fazia o recrutamento nas aldeias e regulados fulas???...

Era simples e ninguém podia recusar. O régulo ou seu representante convocava os chefes das diferentes localidades sob a sua jurisdição e dizia que precisavam de um número X,  a pedido do Governo e o resto ficava a cargo dos chefes das aldeias e um agente da administração onde cada morança listava uma ou duas pessoas da família para o efeito. 

Todavia, os critérios das escolhas nunca eram claros de um lado e do outro. Se os chefes e o agente podiam ser tentados a fazer negociatas, os pais e chefes das moranças, pensando na utilidade no seio do núcleo familiar, procuravam listar os menos úteis nos trabalhos do sustento e reprodução familiar.

Luis, não concordo quando dizes que os fulas "estavam condenados a fazer a guerra....". 

Na minha opinião, longe de ser uma "condenação", era uma opção clara e sem equívocos por diferentes razões de caracter politico-ideológico, de natureza religiosa, do fundamento, motivações e da necessidade da própria luta. 

Não se fala muito disso, mas na verdade o Cabral desde o início e até ao fim, fez tudo para mobilizar os dignitários fulas para a causa da luta, sem qualquer sucesso. E isto não era uma mera coincidência. Os mesmos dignitários, imbuídos de realismo e pragmatismo, diziam ao A. Cabral: "Deixem os brancos porque eles são o garante da paz na província e, no dia em que forem embora nós vamos recomeçar as nossas guerras do passado recente". 

...E 46 anos depois da independência ainda continuamos entre as guerras e uma paz podre que impede o país de avançar para frente.

Valdemar, gostaria de poder ajudar, mas preciso de referências certas sobre as tabancas e regiões de origem. No entanto, receio que seja tempo perdido, pois já se passou muito tempo e nem todos ficaram com boas recordações do seu passado militar, um pouco como acontecia entre vós, até há poucos anos. (**)

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé
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Nota do editor:

(*)  Último poste da série >  10 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20720: (De)Caras (120): O que é feito destes 'putos-soldados' da CART 11 e da CCAÇ 12 ? (Valdemar Queiroz)

Guiné 61/74 - P20721: Parabéns a você (1768): Artur Soares, ex-Fur Mil Mec Auto da CART 3492 (Guiné, 1972/74) e Joaquim Sequeira, ex-1.º Cabo Canalizador do BENG 447 (Guiné, 1965/67)


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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Março de 2019 > Guiné 61/74 - P20718: Parabéns a você (1767): Joaquim Cruz, ex-Soldado Condutro Auto Rodas do BCAÇ 4512 (Guiné, 1972/74)

terça-feira, 10 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20720: (De)Caras (147): O que é feito destes 'putos-soldados' da CART 11 e da CCAÇ 12 ? (Valdemar Queiroz)


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > CIM - Centro de Instrução Militar > Março de 1969 > Recruta dos futuros soldados das futuras CART 11 e da CCAÇ 12 > Samba Baldé (Cimba), nº mec 82110969... Futuro Ap Metr Lig HK 21, 3º Gr Com 3º Gr Comb [Comandante: alf mil inf 01006868 Abel Maria Rodrigues [, bancário reformado, Miranda do Douro], 1ª secção [fur mil at inf Luciano Severo de Almeida, já falecido]...  De origem fula.


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > CIM - Centro de Instrução Militar > Março de 1969 > Recruta dos futuros soldados das futuras  CART 11 e da CCAÇ 12 > Salu Camara, nº mec 82103469. Provavelmente de origem futa.fula. Integrou a CART 11.


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > CIM - Centro de Instrução Militar > Narço de 1969 > Recruta dos futuros soldados das futuras  CART 11 e da CCAÇ 12 >  Sori Baldé, nº mec 82111069,  De origem futa. Integrou a CCAÇ 12, como sold at inf. Pertenceu O 4 º Gr Comb [, comandante: alf mil  at cav  10548668 José António G. Rodrigues, já falecido, vivia em Lisboa], 3º secção [1º Cabo 00520869 Virgilio S. A. Encarnação, vive em Barcarena]... [O Valdemar Queiroz identifica-o, erradamente, como sendo o Tijana Jaló, esse sim, devia pertencer à CART 11, mas com outro nº mecanográfico... Estou bem recordado do Sori Baldé, um dos meus soldados, quando estive no 4º Gr Comb.]


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > CIM - Centro de Instrução Militar > Março de 1969 > Recruta dos futuros soldados das futuras CART 11 e da CCAÇ 12 > Mamadu Jaló, nº mec 821179669, De origem futa. Integrou a CCAÇ 12, como sold arvorado. . Pertenceu ao 1 º Gr Comb 3ª secção [, fur mil at inf 19904168 António Manuel Martins Branquinho, reformado da Segurança Social, Évora, já falecido]


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > CIM - Centro de Instrução Militar > 1º trimestre de 1969 > Recruta dos futuros soldados das futuras CART 11 e da CCAÇ 12 > Alceine Jaló, nº mec 82114669, De origem futa ou futa-fula. Pertenceu à CART 11.

Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel > CIM - Centro de Instrução Militar  > c. março / abril de 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > > O Valdemar Queiroz, com os recrutas Cherno Baldé, Sori Baldé e Umarau Baldé (que irão depois para a CCAÇ 2590 / CCAÇ 12).

Estes mancebos aparentavam ter 16 ou menos anos de idade. Eram do recrutamento local. Os da CCAÇ 12 eram fulas, oriundos do chão fula e em especial dos regulados do Xime, Corubal, Badora e Cossé.

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70]


Data: terça, 5/11/2019, 23:22

Assunto: O que será feito dos 'Putos-Soldados' do CIM de Contuboel

O que será feito dos 'Putos-Soldados'?

Passaram 50 anos que muitos 'putos' foram chamados prá tropa e receberam instrução militar em Contuboel-

Alguns apresentaram-se descalços, com as suas roupas usadas habituais e notava-se que eram muito jovens, mas diziam que tinham 18 anos.

Soube-se mais tarde que houve situações de recrutamento forçado, mas na maioria apareceram com vontade ser soldados. 'Manga de ronco' e 'manga de patacão' que lhes iria acontecer.

Não sabemos, eu não sei nem me lembro de contarem, como foram contactados e por quem (régulo/chefe de tabanca), e se lhes foi dito que iriam ser soldados para entrarem directamente na guerra, que eles já tão bem conheciam.

Não sei se vieram assentar praça, como um serviço militar obrigatório se tratasse, com a diferença de serem ainda menores, ou como uma espécie de voluntariado forçado (ideias de Spínola a fazer lembrar o recrutamento de crianças pelos nazis no final da guerra?).

E assim se formaram a CART.11 e a CCAÇ.12.

Também não soubemos se queriam ser soldados para fazerem guerra contra os 'bandidos' ou para ajudar (como já acontecera em séculos anteriores) os portugueses na guerra contra, neste caso, o PAIGC que queria a independência da Guiné.

Mas, a guerra acabou. Felizmente a guerra acabou.

Os 'putos-soldados' deixaram de ser soldados do Exército Português e passaram, automaticamente, à peluda da sua desgraça. Muitos houve que fugiram para não serem sumariamente executados, muitos outros não tiveram essa sorte e foram assassinados, os restantes resignaram-se voltando, já homens, às suas tabancas para serem o que já tinham sido. Foi sempre assim quando acabam as guerras.

E passados 50 anos o que será feito daqueles que conseguiram sobreviver?

Os que eram mais jovens devem ter, agora, 66/67 anos de idade. O que será feito deles?

Julgo que eram todos Fulas e maioritariamente eram das regiões de Gabu/Piche, os da CART.11, ou de Bambadinca/Xime, os da CCAÇ.12.

O Alceine Jaló era do meu Pelotão, casou-se muito novo com uma bajuda (Saco ou Taco?) e levou-a com ele para Guiro Iero Bocari. As mulheres e os filhos dos nossos soldados também dormiam connosco nas valas e aí aguentavam quando havia ataques à tabanca.

O que será feito deles?

Gostava muito de saber deles e peço um favor muito especial ao nosso grande amigo Cherno Baldé de tentar saber se eles ainda são vivos.

Como curiosidade com os 'putos', havia quatro soldados arvorados, e frequentavam a escola de cabos, em cada Pelotão sendo a escolha feita entre eles e um da nossa escolha. Dos quatro do meu Pelotão o da nossa escolha recaiu no Saliu Jau por ser impecável, mas deu algum recusa por parte dos restantes por o considerarem 'ser djubi mesmo pra cabo'.

Valdemar Queiroz

PS - Anexo fotos de alguns 'putos-soldados' , falta a do Umaru Baldé, talvez o 'puto mais puto', e que me foi oferecida quando estive com ele na Amadora.


2. Resposta do editor Luís Graça:

Valdemar, folgo em saber de ti... E obrigado pela tua "lembrança"... Reconheço estes putos ou pelo menos três, os que pertenceram à CCAÇ 12, e que fizeram a guerra comigo (*)...

Quanto ao Umaru Baldé [c. 1953-2004), o "menino de sua mãe", tens aqui uma foto dele, à direita... Ele tem mais de vinte referências no nosso blogue. 

Soldado do recrutamento local, nº 82115869, tirou a recruta e a especialidade no CIM de Contuboel. Foi exímio apontador de morteiro 60, soldado arvorado e depois 1º cabo at inf  da CCAÇ 12 (1969-1972), no 4º Gr Comb,  3ª secção [, comandada pelo fur mil 11941567 António Fernando R. Marques: DFA, vive em Cascais, empresário reformado, membro da nossa Tabanca Grande].

O Umaru Baldé [, que era de Dembatacpo ou Taibatá, tendo sido  recrutado em 12/3/1969], foi depois colocado,em 1972,  em Santa Luzia, Bissau, no quartel do Serviço de Transmissões, onde ficou até ao fim da guerra. Conheceu, em mais de metade da vida, a amargura e a solidão do exílio. Veio morrer a Portugal, no Hospital do Barro, Torres Vedras. Contou apenas com o apoio e a ajuda de alguns dos seus antigos camaradas de armas.

Valdemar: se me mandaste,  em tempos, este material que agora se publica , ficou para aí na "picada"... Vá temos falado sobre este tema, que nos é caro, a nós os dois (**).

Afinal, fomos instrutores destes putos, no CIM de Contuboel e eles estiveram sob as nossas ordens na guerra, tu na região de Gabu, setor de Nova Lamego, eu na  região de Bafatá, setor L1 (Bambadicna) Foram extraordinários soldados e grandes camaradas, estes "meninos-soldados" (***).

Vamos ver se alguém mais se recorda destes nossos putos, "meninos de sua mãe", parafraseando o título de um extraordinário, pungente, poema de Fernando Pessoa.

3. Aproveito para reproduzir aqui um comentário meu que já tem 14 anos, sobre  "a lista dos Baldés" da CCAÇ 12, e que volto a subscrever: eram 100 os "baldés", que foram integrados na CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, muitíssimos poucos estarão vivos hoje, talvez menos de 5%  (****):

(...) É também um pequeno, modestíssimo, gesto de elementar justiça para com aqueles guineenses que lutaram ao nosso lado, que fizeram parte da CCAÇ 12 e, portanto, da nova força africana com que sonhou Spínola e que tanto atemorizou o PAIGC. Infelizmente, uma parte deles (quantos, exactamente?) já não hoje estarão vivos. Uns foram fuzilados, como o Abibo Jau (...), outros terão morrido de morte natural, que a sua esperança de vida era muito menor que a nossa, em 1969...

Eu estou à vontade para publicar esta lista: sempre critiquei a africanização da guerra da Guiné, embora longe de imaginar que, no dia seguinte à nossa retirada, começasse a caça aos traidores, aos contra-revolucionários, aos mercenários, aos colaboracionistas... 


Em 1969, ainda estava vivo o Amílcar Cabral e eu admirava-o, intelectualmente... Achava que na Guiné, depois da independência, tudo seria diferente, e não aconteceriam os ajustes de contas que se verificaram noutras revoluções ou guerras civis, na Rússia, na China, na Espanha franquista, na França depois da libertação, etc. Pobre de mim, ingénuo...

Mas, por outro lado, também fui cúmplice da sua integração no nosso exército: mesmo sendo de da especialidade de armas pesadas, e não fazer parte formalmente de nenhum dos quatro grupos de combate da CCAÇ 12, participei em muitas das operações em que estes participaram, fui testemunha da sua coragem e do seu medo, dormi com eles nas mais diversas situações, incluindo nas suas tabancas... Foram meus camaradas, em suma.

Soldados ex-milícias, a maior parte com experiência de combate, os nossos camaradas guineenses da CCAÇ 12 (originalmente, CCAÇ 2590), eram oriundos do chão fula e em especial dos regulados do Xime, Corubal, Basora e Cossé, com excepção de um mancanhe, oriundo de Bissau.

“Todos falam português mas poucos sabem ler e escrever", lê-se na história da CCAÇ 12 (O que só verdade, 21 meses depois de os termos conhecido e instruído em Contuboel, em junho e julho de 1969). Foram incorporados no Exército como voluntários, acrescentou o escriba, para branquear a insustentável situação dos fulas, condenados a aliarem-se aos tugas. (...)

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(***) Último poste da série > 12 de fevereiro de  2020 > Guiné 63/74 – P20644: (De) Caras (119): Um pequeno texto, cuja essência teve o BLOGUE na sua concepção (António Matos)

Guiné 61/74 - P20719: Ser solidário (228): Consignação de 0,5% do IRS à Associação "Afectos com Letras"...levando mais esperança e educação às meninas guineenses





Guiné-Bissau > Bissau > s/d> c. 2020 > Biblioteca do Lar de Betel


Guiné-Bissau >  Bissau > s/d > c. 2020 >  Escola de Djoló, cofinanciada e patrocinada pela ONGD Afectos com Letras através do Projetco Baoba - apadrinhamento de turmas à distância - desde 2010.


Fotos (e legendas): Afectos com Letras (2020). [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] (c om a devida vénia...]


1. Mensagem da ONGD Afectos com Letras, que tem sede em Pombal, com o NIF 509301878, e página no Facebook:


De: Afectos com Letras <afectoscomletras@gmail.com>

Data: quinta, 5/03/2020 à(s) 15:46

Assunto: Consignação de IRS à Afectos com Letras - Querem fazer parte desta mudança? Contamos convosco!


Querid@s amig@s,

Está a chegar aquela altura do ano em que temos que pensar no IRS e na possível Consignação a uma entidade sem fins lucrativos. A Consignação do IRS permite-vos doar 0,5% do imposto a favor do Estado à Associação Afectos com Letras.

E por isso gostávamos de apelar à vossa solidariedade e espírito de entreajuda, dando-nos a possibilidade de levar até à Guiné-Bissau mais esperança e educação às meninas, mais dignidade às mulheres e mais qualidade de vida às famílias.

Em 2019, a vossa ajuda traduziu-se numa máquina descascadora de arroz. Outras podem chegar às aldeias guineenses e mudar vidas com uma pequena cruz na vossa folha de IRS.

Querem fazer parte desta mudança? Contamos convosco!

Associação Afectos com Letras, ONGD

Rua Engº Guilherme Santos, 2

Escoural, 3100-336 Pombal

NIF 509301878

tel: (+351) 918 7 86 792

email: afectoscomletras@gmail.com

venha estar connosco no www.facebook.com/afectoscomletras

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Guiné 61/74 - P20718: Parabéns a você (1767): Joaquim Cruz, ex-Soldado Condutro Auto Rodas do BCAÇ 4512 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de Março de 2019 > Guiné 61/74 - P20710: Parabéns a você (1766): Cor Art Ref (DFA) António Marques Lopes, ex-Alf Mil Art da CART 1690 (Guiné, 1967/69)

segunda-feira, 9 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20717: (D)o outro lado do combate (58A): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - VI ( e última) Parte (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)





Fotogramas do filme "Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta",  produzido e realizado por Diana Andringa (Portugal, 2009, 90' ).

1. Quinta e última parte dos excertos, que temos vindo a publicar no blogue,  do manuscrito "Memórias da Luta Clandestina" (entretanto publicado, na Praia, capital de Cabo Verde,e lançado, no passado dia 30 de janeiro) (*) 

A reprodução desses excertos, no nosso blogue, foi-nos devidamente autorizada por Carlos de Carvalho, filho de Inácio Soares de Carvalho, e que aceitou o nosso convite para integrar a Tabanca Grande. Nascido na Guiné, Carlos de Carvalho é arqueólogo e historiador de profissão, vivendo na Praia, capital de Cabo Verde.

 Inácio Soares de Carvalho (1916-1994)


Nasceu na Praia em 29 de Abril de 1916. Foi em criança para a Guiné com os pais. No seu tempo haveria 1700 cabo-verdianos no território, muitos deles tendo posições de destaque na vida económica, social, cultural e político-administrativa da colónia portuguesa. Trabalhou no BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, desde 1939, até ser detido pela PIDE em 15/3/1962.

Envolveu-se na luta política, filiando-se em 1956 no MLG – Movimento para Libertação da Guiné, por influência do seu compadre e colega de Abílio Duarte.

Inácio Soares de Carvalho, que nunca viveu na clandestinidade, contrariamente ao Rafael Barbosa, será preso pela primeira vez pela PIDE, na filial do BNU em Bissau, onde trabahava há mais de duas dezenas de anos. É então deportado, para o Tarrafal (, a partir da Ilha das Galinhas), aonde chega no início de setembro de 1962, numa leva de 100 presos, guineenses. Três anos depois, em 16/10/1965 e transferido para colónia penal da ilha das Galinhas, no arquipélago dos Bijagós.

Em 7/2/1967, é solto, pela primeira vez. Em 1972 e 1973, volta a passar pela experiência da prisão, em Bissau, até conhecer a liberdade definitiva com o 25 de Abril de 1974. Há uma escassa meia dúzia de documentos no Arquivo Amílcar Cabral com o seu "nome de guerra", Nassi ou Naci ou Nacy Camará.


Pertencia à "secção de informação e controle" do PAI (sigla original do PAIGC) em Bissau, ele e o Rafael Barbosa (c. 1926-2007), reportanto diretamente a Amílcar Cabral, que vivia em Conacri. Em outubro de 1961, Rafael Barbosa, de etnia papel (, Zain Lopes, na clandestinidade), é nomeado Presidente do Comité Central do PAIGC.

Nos final dos anos setenta, Inácio Soares de Caravalho regressa à sua terra natal, Praia, Cabo Verde, e afasta-se praticamente da vida política activa. Vem a falecer em dezembro de 1994, sem ter visto publicadas as suas memórias políticas que comecçou a escrever, "após incessantes insistências dos filhos", e que deu por concluídas em 1992. "Nelas o autor narra factos novos, desconhecidos da maioria dos militantes, pois, infelizmente, poucos foram os combatentes da clandestinidade, sobretudo na Guiné, que deixaram escritos sobre essa vertente da luta protagonizada pelo PAIGC." (Informações biográficas fornecidas pelo filho, Carlos de Carvalho, nascido na Guiné, complementadas por LG.)

É possível haver um lançamento do livro em Lisboa. Em Cabo Verde, a edição é de autor e teve vários patrocínios.

2. Excertos do livro "Memórias da Luta Clandestina" - V ( e última) Parte (*)


Campo de Concentração de Tarrafal de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde 


Na noite de nossa chegada [, aoTarrafal], distribuíram a cada um de nós uma esteira que serviu de cama.

No dia seguinte, de manhã cedo, mostraram-nos um sítio um pouco afastado da caserna que era destinado para casa de banho, melhor dizendo, sanita. Quando acabamos de utilizar a sanita mandaram-nos para a bicha a fim de tomarmos o pequeno-almoço que era uma caneca de café e um pão sem nada para cada um de nós.

Depois do pequeno-almoço, fizeram a distribuição de nossas “pertences” para a nossa vida diária no Campo: uma cama de ferro galvanizado e duas esteiras, que nos serviu de colchão; uma manta, como cobertor; uma caneca e uma colher de alumínio para as refeições e para beber; calções feitos pelos alfaiates do Campo; alguns eram largos demais e outros apertados.

[...] Já no Campo, permanecemos 45 dias sem tomar banho. Muitos começaram a ter doenças na pele, as sarnas.

[...] Quando chegamos, já lá estavam os nossos irmãos angolanos que foram levados para lá em Fevereiro do mesmo ano [, 1962].

O Director da Colónia Penal nessa altura era um tal [José Pedro]Queimado Pinto e os polícias eram maioritariamente europeus vindos de Angola.


[...] O “regresso” dos prisioneiros à Guiné 

2° grupo de prisioneiros libertos 

Um grupo de mulheres havia solicitado a libertação de seus maridos presos no Tarrafal. Reagindo a esse pedido, foi autorizada a libertação de mais 5 prisioneiros.

Assim, no dia 16 de outubro de 65, o segundo grupo de prisioneiros guineenses foi posto em liberdade. Desse grupo faziam parte os prisioneiros: Inácio Soares de Carvalho, Bruno Dantas Pereira, Manuel Mamadú Korca Djaló, João Lobo de Pina e Manuel Vaz Horta Santi.

Fomos conduzidos à cidade da Praia onde passamos a noite.

[...] No dia seguinte, 17, fomos embarcados no Porto da Praia, às 16 Horas da tarde, num barco grande de que já não me lembro o nome.


A primeira libertação de ISC 


No dia 7 de fevereiro de 1967, foram 3 agentes da PIDE à Ilha das Galinhas buscar nós os 4, os “regressados” da Colónia Penal do Tarrafal, a fim de nos porem em liberdade [1]. Viemos, de novo, via Bolama e só chegamos a Bissau no dia 8.

Naquele dia mesmo, no período da manhã, o inspector Miguel Cardoso chamou-nos de novo ao seu gabinete e falou outra vez muito connosco a respeito da política que era só prejuízo para nós e que ia nos pôr em liberdade e que contava com a nossa colaboração [2]. Disse-nos ainda que o mal feito já passou e para não pensarmos mais no passado. Falou muito de mim sobre a minha declaração que prestei quando fui preso em 62, e que não neguei nada do que fiz e eu era responsável por aquilo que fiz. E que assim mesmo é que um homem deve ser.

Depois de toda a conversa mandou para nos passarem uma Declaração para levarmos à Administração na qual constava que não devíamos pagar o imposto.

Como podem constatar, nós, os 4 libertos, havíamos passado quase 5 anos presos, repartidos entre as prisões de Bissau, Mansoa, Ilha das Galinhas, Colónia Penal de Tarrafal - Cabo Verde, Bissau, de novo Ilha das Galinhas, para finalmente ganharmos a liberdade, a 8 de fevereiro de 1967.


[...] ISC e Guerra Ribeiro, “Chefe” da Guiné, - o “confronto” 


Após a nossa libertação, dirigimo-nos à Administração para apresentar a Declaração passada pela PIDE e na qual constava que estávamos isentos do pagamento de imposto. Mas, naquela altura, o Administrador era o famoso Guerra Ribeiro [3].

Este, quando chegou à Guiné, começou por trabalhar numa Casa Comercial. Pouco tempo depois foi para Câmara Municipal. Esteve lá poucos anos, e então passou para o Quadro Administrativo como funcionário, ou seja, Aspirante. Depois foi nomeado como Chefe Administrativo. Passado pouco tempo, foi nomeado Secretário Administrativo. Dali teve grande sorte passou para Administrador de Concelho. Teve grande sorte no princípio de sua vida, pois, no tempo do Salazarismo o mais criminoso é que tinha acesso e foi por esta via que Guerra Ribeiro se tornou num grande criminoso na Guiné-Portuguesa.

Na época, já se dizia que quem mandava em Bissau, podia-se dizer que mandava em quase metade da Guiné, era ele, Guerra Ribeiro.

 [...] Assim, ele, ignorando a Declaração, entendeu que devemos pagar imposto daquele ano. Quando nos disse isso, eu então quis lhe mostrar que já estivemos muito tempo presos e não tínhamos condições para pagar o imposto. Ele exaltou-se contra mim proferindo palavras odiosas e incriminatórias, dizendo-me no meio de toda aquela gente que eu tinha muita sorte e estava ainda a falar. Disse que se fosse ele que me tivesse prendido, naquela altura, eu já não estava a ver sol.

A uma dada altura da conversa, ele foi chamado para ir tratar de um assunto no seu Gabinete; Adolfo Ramos, que era um funcionário da Administração, aproveitou a oportunidade para me dizer para conservar muito calado porque Guerra Ribeiro é que está a mandar em quase toda a Guiné e que Deus há-de nos ajudar a arranjar maneira de encontrar dinheiro para pagarmos o imposto.

Como resultado da conversa com Guerra Ribeiro, ele deu-nos o prazo de um mês para pagarmos imposto. Isto confirma de facto o poder que ele tinha na Guiné, pois já nem seguia ou obedecia ordens do Inspector da PIDE.

[...] O regresso à casa 


Quando chegamos às nossas casas, no dia 8 de Fevereiro de 67, as nossas famílias, homens e mulheres, claro, ficaram todas satisfeitas.

Depois de contar à minha mulher a estória com Guerra Ribeiro, ela ficou num estado que não posso explicar mesmo. Só me perguntou se não sabia quem era Guerra Ribeiro, na Guiné. E voltou para mim, e disse-me: “tu nasceste de novo felizmente...e custe o que custar, temos que pagar o imposto”.


[...] Notícia de fim da luta de libertação 


No dia 29 de abril de 1974, terminou para sempre o nosso martírio e sofrimento na Ilha das Galinhas. Efectivamente, quando era mais ou menos 1 hora, da tarde, do dia em que completei 58 anos de idade, o António Namorado estava a cortar-me cabelo e alguns companheiros vinham e gozavam comigo, a dizer-me que eu tinha que pagar qualquer coisa no «Cadjique», porque estava a tornar um rapaz novo. 

E naquela brincadeira, de repente ouvimos algumas vozes a gritarem bem alto na rua. Festa na Bissau. «Djintidi PIDE é prindidu tudu». Com aquela gritaria de contentamento, os rapazes queriam fazer manifestação logo naquele momento. Mas eu, de imediato, chamei-lhes à atenção para que esperassem ainda a confirmação do sucedido, isto porque lembrei-me logo da tentativa de golpe de Estado levado a cabo em dezembro de 61, a partir do Quartel de Beja.

[...] Mas, poucos momentos depois, apareceu um Segurança a gritar-me todo entusiasmado:

- Homi Garandi, nó ganha djá guerra, bim, bim, obi rádio de Bissau, i na fala ná bós, presos di PIDE. Nó toma dja nó tchon...Viva Amílcar Cabral, Viva PAIGC».

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Notas do Carlos de Carvalho:

[1] Inácio Soares de Carvalho, Bruno Dantas Pereira, Korca Djaló e João Lobo de Pina. De lembrar que o 5° elemento dos libertos na 2ª leva do Tarrafal, Horta Santy, fora definitivamente liberto logo depois de chegados a Bissau.

Segundo ISC (documentos avulsos), Korca Djaló era 2° Chefe de Esquadra e Lobo de Pina era Funcionário da Administração.

[2] De recordar que o inspector Miguel Cardoso é o mesmo que havia falado com os « libertos do Tarrafal » aquando do regresso à Guiné.

[3] Guerra Ribeiro e sua fama ficaram imortalizados na história da Guiné pelo já citado José Carlos Schwarz e sua Banda « Cobiana Jazz »,  num dos LP gravados nos anos 70 do séc. XX.

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 7 de março de 2020 Guiné 61/74 - P20708: (D)o outro lado do combate (58): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte V (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

Postes anteriores:


5 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20705: (D)o outro lado do combate (57): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte IV (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

3 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20701: (D)o outro lado do combate (56): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte III (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

2 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20698: (D)o outro lado do combate (55): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte II (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

Guiné 61/74 - P20716: Notas de leitura (1271): “Bacomé Sambu”, por Afonso Correia; edição de autor, Lisboa, 1931 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
Dentro do inventário que Leopoldo Amado fez ao período ascensional da literatura colonial guineense, ele faz uma chamada de atenção a este livro apodando-o de paternalista e moralizador, já que a personagem Bacomé Sambu aparece como um produto acabado das regas da civilização dos brancos. Não contestando a base paternalista, acho que Afonso Correia nos legou uma obra com variados méritos: é a primeira vez, no século XX, que se dá a conhecer Cacine, o povo Nalu, os seus usos e tradições, as contendas religiosas advindas do islamismo; Afonso Correia é manifestamente crítico dos "branquinhos", os diretos exploradores dos indígenas.
Estamos em 1931, dera-se a pacificação, Cacine era uma parcela recentíssima da Guiné Portuguesa e Afonso Correia desvela vícios e impreparação da nossa administração colonial. Nada mau para conhecer com um certo grau de isenção essa nova porção do Império.
E goste-se ou não Bacomé Sambu é o primeiro romance escrito por um branco sobre a Guiné.

Um abraço do
Mário


Bacomé Sambu, o primeiro romance sobre a Guiné

Beja Santos

Chama-se “Bacomé Sambu”, o seu autor é Afonso Correia, é apresentado como romance negro, trata-se de uma edição de autor, Lisboa, 1931, capa de Alfredo Cândido. Em Guineidade e Africanidade, Leopoldo Amado estuda este fenómeno da aurora da literatura colonial guineense em torno de Bolama e o aparecimento de periódicos como O Comércio da Guiné. Amado refere o paternalismo dessa literatura, a sua inserção num período de pacificação e de instalação da administração colonial, são narrativas literárias limpadas de exotismo, fascínio da selva, uma literatura pontuada por situações de primitivismo, feitiçaria, embates religiosos. Não se consegue apurar quem foi Afonso Correia, porém, um dos exemplares que se pode comprar online tem a sua dedicatória para Armando Cortesão, muito provavelmente Correia foi funcionário colonial, percebe-se facilmente que não fala de ânimo leve do palco em que se desenrola o seu romance, a região de Cacine, terá mesmo conhecido a outra margem do rio, na Guiné Francesa.

Atribuo uma certa importância a esta obra. Logo quando nos diz (o que era inteiramente verdade naquela época) que “A Guiné Portuguesa, preciosidade africana que o mar beija com tanta sofreguidão, não possui uma história esclarecida da sua colonização, nem abundam elementos escritos que habilitem o observador imparcial a fazer a resenha da sua existência de quase cinco séculos”. E adianta outros pormenores sobre a vida colonial e os seus preconceitos: “O povo selvagem encastelava-se no isolamento das tabancas, entregue aos seus destinos bárbaros por muito tempo, mas onde havia uma civilização a seu modo, uma civilização cujos ensinamentos bons ainda hoje podem servir de lição a muitos homens arquicivilizados”.

O que quer que Afonso Correia tenha feito na Guiné, é manifestamente crítico da composição da administração e explica porquê: “Quando os militares graduados deixaram os postos de comando e regressaram à metrópole, os serviços administrativos ficaram entregues a elementos civis. Quem eram esses elementos? Soldados rasos de ontem, passados à reserva, com umas calças de cotim branco e um chapéu de palha. Nada mais, além de uma compleição psicológica afeita a todas as possíveis brutalidades”. Mas ajuíza que nem todos os civis foram maus nem todos o são felizmente. Aliás foi um desses bons administradores que originou a fatura deste romance, pelo seu acrisolado patriotismo.

O romance Bacomé Sambu desenrola-se em Cacine, terra de Nalus. Chegaram uma nova autoridade, ele pôs ao seu serviço particular “um pretito dócil”. Deram-lhe um nome diferente, Bacomé, enquanto ele estudava e aprendia as regras dos brancos, à sua volta dardejavam-lhe os comentários mais ácidos: “Não vês que um preto nunca pode chegar a branco? Este livro não te muda a cor e o teu pior destino, a tua mais horrível condição, como a nossa, é essa cor negra, eternamente negra”. Mais tarde, o administrador teve de sair de Cacine, “por motivos a que não era alheia a trica indígena do fabrico dos brancos, a trinca dos aventureiros”.

Bacomé já está em litígio com os usos e costumes da sua tabanca de Nalus, irá refugiar-se na selva, esta é o melhor aconchego dos mártires. Maravilham-no as belezas que dali se avistam até ao Tombali, o fritambá, a onça, a selva é espaço de formação: “É o cadinho onde se depuram sentimentos agrestes e onde se forma o carácter, no contexto exclusivo da Natureza. Viveu na selva, mesmo por momentos, é tatear o mistério, desvendar as incógnitas do Além, chegar ao paraíso”. A tabanca de Bacomé, o seu berço natal é Cametobã, ele foge para a selva porque não se quer sujeitar às regras do fanado e por lhe ter sido negada a rapariga mais formosa da tabanca. O régulo Queta manda-o procurar no mato, em vão, Bacomé atravessa o rio Cacine e chega ao contacto com uma família francesa cujo chefe se chama Antoine Dumont, “tem as faces inchadas, cor de rabanete e ostenta uns louros e fartos bigodes farfalhudos”. Tinha dois filhos, um corajoso caçador profissional e uma linda estampa da selva. O francês fala-lhe no macholi, o poderoso irã dos Nalus. Desperto pela curiosidade, Bacomé vai até à tabanca de Cabudu onde o respetivo régulo lhe propõe uma prova de resistência, irá procurar defuntos. Regressa triunfante e recebe como prémio uma bela mulher. Toma a decisão de voltar à sua terra natal.

Neste ponto da obra Afonso Correia introduz novos elementos que nos ajudam a interpretar o que seriam as grandes questões que se punham à administração naquele período da pacificação, ainda na década de 1920. Há uma crítica explícita aos mouros, que riscam da vida indígena todos os naturais extintos do trabalho, é impensável que alguém possa trabalhar nos campos com aquelas indumentárias próprias para dias de festa. E escreve-se claramente que “o fanado, o macholi e o mauritanismo são os três maiores tornados que devassam a loira seara da vida forte”. O romancista aproveita para criticar a duplicidade religiosa do régulo Queta, um alarve que namoriscava as fórmulas de Maomé sem esquecer as práticas do feiticismo primitivo. Bacomé, pelo seu grau de civilização, torna-se um educador muito apreciado pelas crianças, diz-lhe abertamente: “O rei Queta que vos ensina a derrota que sofreu quando, há anos, abandonou o seu chão para ir provocar os fulas. Estes, segurando as armas fornecidas pelos brancos, aplicaram-lhes um grande castigo”.

Faz-se uma exposição sobre o fanado e o batuque, assiste-se a uma cerimónia fúnebre do rei Camará, régulo vizinho. Bacomé diz às crianças que “os homens são todos iguais ao nascer, seja qual for o colorido da pele que o irã lhes dá. Há brancos e branquinhos, estes são os que vivem à custa dos brancos, andam no mato a farejar os negócios, comem-nos tudo”.

Afonso Correia conhecia seguramente ao milímetro este território, diz-nos que os Nalus de Cacine procuravam o território francês para as suas relações comerciais, económicas e cíveis, mas também esclarece que não procurava a autoridade francesa procurava sim os Nalus, seus irmãos, os sossos, seus aliados e aparentados. Afonso Correia discreteia entusiasticamente sobre os encantos da parte mais setentrional da Guiné, exalta a produtividade agrícola, aquelas terras davam milho, feijão, amendoim, coconote, borracha, arroz, todas as culturas hortícolas dos países brancos. E não ilude os gravíssimos erros da administração que fustigava os indígenas em vez de os acarinhar.

E ficamos-lhe a dever uma impressiva discrição de Cacine:
“Cacine, ao tempo, era um pequenino burgo indígena, sem ruelas, sem becos, um largo terreiro a embranquecer-lhe a face, algumas colheiras, uns débeis pezitos de coqueiros, dois barracões velhos, esburacados, cobertos de zinco que semelhava largos crivos de regadores, quando a chuva tamborilava sobre ele; a branca e pequena casa do secretário e o casarão abarracado, de madeira velha, com resguardos exteriores de zinco pintado a negro, onde se instalava, opípara e majestosamente, o “comandante Espinha”. Uma varanda erguida a toda a roda do casarão, com pavimentos de cimento armado, desenhos e cores de asfalto, duas bonitas laranjeiras a esconderem as arestas angulares da frontaria, uma cozinha estreita, mas severa de cortes, uma casa de banho, improvisada, um jardinzito amigo e terno, rosas a abrirem-se, brisas do rio a mordê-las, pássaros a debicarem nas pétalas, o rio largo, a ponte estreita e curta, barriga de pedregulho e cimento, quebrada com o longo e insistente martelar das águas salgadas”.

Admito que Bacomé Sambu não tem a qualidade literária que vai surgir, em 1934, com Auá, o romance premiado de Fausto Duarte e incensado por Aquilino Ribeiro. Mas não deixa de ser um retrato impressivo desse Sul da Guiné que até há dezenas de anos era território francês cedido como contrapeso à perda do Casamansa. Mais uma razão para se ler os comentários críticos, a denúncia da exploração e até da religiosidade trazida pelos mauritanos, ao arrepio dos usos e costumes dos Nalus.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20707: Notas de leitura (1270): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (48) (Mário Beja Santos)