Pequena coleção de artefactos culturais da Guiné, recolhidos por Valdemar Queiroz, no chão fula, na região de Gabu, c. 1969/70 > Nhanhero (ao centro): instrumento musical tradicional da Guiné-Bissau, cordofone, dispõe de uma única corda feita de couro de cauda de cavalo; a cabaça é pequena e coberta com couro de crocodilo; o tocador pode tocar e cantar ao mesmo tempo (*). O termo ainda já vem grafado nos dicionários de língua portuguesa, nomeadamente no Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (edição do Círculo de Leitores, Lisboa, 2002).
1. Texto enviado pelo Valdemar Queiroz
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Valdemar Queiroz, em Bissau, na Solmar, c. 1970 |
[ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70]
Data: 26 de janeiro de 2016 às 01:05
Assunto: A história de um nanheiro
Em Paunca havia, dentro da aérea do Quartel, uma grande casa, antigo depósito de mancarra, que servia de caserna das praças. Os furriéis e os oficiais viviam fora do Quartel, em casas na tabanca, requisitadas pelo exército.
Eu e mais dois furriéis, já não me recordo quem eram, julgo que seriam o Abílio Pinto e o Manuel Macias do meu Pelotão, vivíamos numa casa, edificada "à moderna", com quatro divisões, nada de palhota, telhado de zinco, e já habitada por uma família fula da região.
Não tivemos problemas com os donos da casa. Os homens e rapazes para um lado e nós também. As mulheres e raparigas não se "misturavam".
Num fim de tarde chegou uma mulher, jovem, com um grave problema de saúde, para ser levada para Nova Lamego e, depois, para o Hospital de Bissau [, HM 241].
Era duma tabanca próxima, agora já não me lembro, julgo que seria Sinchã Samba. Disto me lembro. Como era familiar das pessoas da nossa casa, ficou lá em casa, a aguardar, muito debilitada, pelo transporte para Nova Lamego.
Morreu durante a noite, numa das divisões ao nosso lado. As mulheres com os seus choros acordaram-nos.
Eu, que horas antes, tinha deixado junto da paciente um "santinho" com a imagem do Santo António, que a minha mãe meteu na minha carteira, fui o primeiro a chegar. Fui o único homem junto daquela morte, afinal era reservada a mulheres, peguei no "santinho" e quase que também chorei como toda a gente.
Quanto o dia chegou foi o meu Pelotão (3.º da CArt 11) que levou o corpo da rapariga para sua tabanca. Não me lembro o nome da tabanca, sei que era perto de Puanca, fula, sem tropa.
Quando lá chegamos, já toda a gente estava à nossa espera com o homem-grande à frente para nos cumprimentar. Eu, na falta do alf mil Pina Cabral que tinha ido para Bissau, doente, era o Comandante do Pelotão. Pedi ao nosso cabo Boi Colubali que traduzisse os nossos sentimentos e que aquela hora e no estado em que a rapariga chegou não pudemos fazer nada.
O homem-grande compreendeu, agradeceu e por certo lhe contaram do meu empenho ao ponto de querer me dar um pequeno cabrito. Não aceitei, mas repararei num velho nhanhero que estava no chão e pedi-lhe que me o oferecesse. "Tem que pedir ao dono", disse ele. O dono era um rapaz pequeno e dei-lhe dois pesos e meio pelo nhanhero.
O Pelotão regressou a Paunca e pelo caminho perguntei aos soldados o que é eles tinham a dizer sobre o que se passou. O homem-grande e a população ficaram muito contentes, disseram-me eles, mas só foi pena o rapaz tivesse ficado a chorar por ter ficado sem o dinheiro e sem o nhanhero.
Anos mais tarde o meu filho, em pequeno, improvisava umas músicas no nhanhero, ao ponto de estragar as cordas de crina ou rabo de cavalo e o couro do arco. Ainda resta o esqueleto do nhanhero, com a caixa de ressonância feita de meia cabaça tapada com pele de cobra, agora acompanhado com facas e catana na parede das recordações. (**)
Valdemar Queiroz
___________Data: 26 de janeiro de 2016 às 01:05
Assunto: A história de um nanheiro
Em Paunca havia, dentro da aérea do Quartel, uma grande casa, antigo depósito de mancarra, que servia de caserna das praças. Os furriéis e os oficiais viviam fora do Quartel, em casas na tabanca, requisitadas pelo exército.
Eu e mais dois furriéis, já não me recordo quem eram, julgo que seriam o Abílio Pinto e o Manuel Macias do meu Pelotão, vivíamos numa casa, edificada "à moderna", com quatro divisões, nada de palhota, telhado de zinco, e já habitada por uma família fula da região.
Não tivemos problemas com os donos da casa. Os homens e rapazes para um lado e nós também. As mulheres e raparigas não se "misturavam".
Num fim de tarde chegou uma mulher, jovem, com um grave problema de saúde, para ser levada para Nova Lamego e, depois, para o Hospital de Bissau [, HM 241].
Era duma tabanca próxima, agora já não me lembro, julgo que seria Sinchã Samba. Disto me lembro. Como era familiar das pessoas da nossa casa, ficou lá em casa, a aguardar, muito debilitada, pelo transporte para Nova Lamego.
Morreu durante a noite, numa das divisões ao nosso lado. As mulheres com os seus choros acordaram-nos.
Eu, que horas antes, tinha deixado junto da paciente um "santinho" com a imagem do Santo António, que a minha mãe meteu na minha carteira, fui o primeiro a chegar. Fui o único homem junto daquela morte, afinal era reservada a mulheres, peguei no "santinho" e quase que também chorei como toda a gente.
Quanto o dia chegou foi o meu Pelotão (3.º da CArt 11) que levou o corpo da rapariga para sua tabanca. Não me lembro o nome da tabanca, sei que era perto de Puanca, fula, sem tropa.
Quando lá chegamos, já toda a gente estava à nossa espera com o homem-grande à frente para nos cumprimentar. Eu, na falta do alf mil Pina Cabral que tinha ido para Bissau, doente, era o Comandante do Pelotão. Pedi ao nosso cabo Boi Colubali que traduzisse os nossos sentimentos e que aquela hora e no estado em que a rapariga chegou não pudemos fazer nada.
O homem-grande compreendeu, agradeceu e por certo lhe contaram do meu empenho ao ponto de querer me dar um pequeno cabrito. Não aceitei, mas repararei num velho nhanhero que estava no chão e pedi-lhe que me o oferecesse. "Tem que pedir ao dono", disse ele. O dono era um rapaz pequeno e dei-lhe dois pesos e meio pelo nhanhero.
O Pelotão regressou a Paunca e pelo caminho perguntei aos soldados o que é eles tinham a dizer sobre o que se passou. O homem-grande e a população ficaram muito contentes, disseram-me eles, mas só foi pena o rapaz tivesse ficado a chorar por ter ficado sem o dinheiro e sem o nhanhero.
Anos mais tarde o meu filho, em pequeno, improvisava umas músicas no nhanhero, ao ponto de estragar as cordas de crina ou rabo de cavalo e o couro do arco. Ainda resta o esqueleto do nhanhero, com a caixa de ressonância feita de meia cabaça tapada com pele de cobra, agora acompanhado com facas e catana na parede das recordações. (**)
Valdemar Queiroz
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 14 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11705: Notas de leitura (491): Atlas dos Instrumentos Tradicionais da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)
4 comentários:
Amigo Valdemar, obrigado por divulgares usos, costumes, e tradições do povo Guineense, em especial do Chão Fula, gostei de ver e ler, continua a fazê-lo.
Um abraço.
Que "maldade", Valdemar, que "maldade"!... Provavelmente aquele "nanheiro" era o brinquedo mais precioso que aquele "djubi" alguma vez teve na vida!...Claro que a "insensibilidade" começou por ser a do homem grande, ao sugerir que negociasses com o puto... Mas não há dinheiro no mundo que compre os sonhos de uma criança... A não ser hoje, nas nossas sociedades ferozmente materialistas e mercantilistas... Tudo tem uma equivalência em valores de mercado... Não percebemos o papel do simbólico e da cultura - as crenças, os mitos, os ritos, os valores, os símbolos - na vida dos seres humanos... Só sabemos perguntar: quanto custa ? How much ?
Por certo que compraste o nanheiro por que te atraiu aquele objeto... É uma história que me sensibilizou... E depois o vocábulo "nanheiro" ainda não está grafado nos nossos dicionários... O nosso blogue anda à frente dos lexicógrafos... Um abração. Luis
Caro amigo Valdemar,
O tempo e a intensidade da tua vivencia no chao fula autoriza que tomes o apelido Embalo.
O instrumento em questao chama/se nhanhero e normalmente faz/se acompanhar do dondon ou tama.
Deve ser o instrumento musical mais simples e mais antigo de todos os que conheco na regiao oeste africana e os fulas, provavelmente, ja o utilizavam antes da sua longa digressao pra oeste. Infelizmente os efeitos da colonizacao cultural e a globalizacao fazem com que a juventude nao valorize a cultura ancestral.
O nhanhero nao eh propriamente um brinquedo qualquer e, caso fosse seria o brinquedo dos herdeiros da tradicao, isto eh, os filhos do artista, tocador de nhanero. No ocidente o equivalente do nhanero eh o violino.
Pois eh, na sociedade tradicional fula a crianca pode ser detentora provisoria de um nhanero se o pai eh, digamos assim, nhanherista, mas nao pode ser detentora do dinheiro que contem em si os germes do bem e do mal em duas faces unidas na mesma moeda, pois segundo o a tradicao antiga faz falta a crianca o sentido completo do discernimento que habilita a escolha certa entre o bem e o mal. E quando eh assim os espiritos do mal tendem a prevalecer. Eh o que temos actualmente nas nossas sociedades ditas modernas.
Com um abraco amigo,
Cherno Balde
Cherno Baldé
9 fev 2016 09:10
Bom dia Luís,
No mesmo poste inseri um comentário a tentar corrigir a grafia do instrumento, pronuncia-se "Nhanheiro", nome derivado do som que ele produz "nha..nhe...nhi". E uma versão Africana (fula) do violino europeu.
Em Fajonquito nos anos 60/70 tinhamos um grande Nhanherista, infelizmente n~zo tenho imagens do tempo.
Um grande abraço,
Cherno A. Baldé
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