quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15701: Os nossos seres, saberes e lazeres (139): O ventre de Tomar (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos,
Não se trata de uma viagem nostálgica ao comércio tradicional, no mesmo casco histórico onde pululam vestígios medievais, renascentistas, oito e novecentistas, é possível encontrar na porta ao lado de estabelecimentos que invocam a pujante modernidade outros que nos falam do artesanato, da quinquilharia, dos tecidos populares, de toda a espécie de reparações.
A tradição templária reflete-se em certas formas de arte, há as indumentárias, a latoaria, os enfeites. É um mundo de graciosidade e das cores do arco-íris.
Tenho para mim que não se pode entender a amenidade tomarense sem medir o pulso a estas atividades que nem chegam a conflituar com a vida digital do nosso tempo, são hábitos enraizados de uma cidade onde pesa a mística e a ruralidade é circundante.

Um abraço do
Mário


O ventre de Tomar (3)

Beja Santos




Quando comecei a fazer programas televisivos, um operador de câmara fez-me a seguinte observação: “Nada de sofisticações, tenho estado a observá-lo, fica mais persuasivo quando fala com completa naturalidade, parece que entrou em casa dos telespectadores, a voz é firme, apresente-se como é”. Não esqueci o recado e, para vos falar com franqueza, fujo a sete pés das conversas artificiosas e dos discursos elaborados. Quando entro nos estabelecimentos, saúdo os proprietários e peço-lhes licença para tirar umas imagens, por vezes há rostos intrigados, há também quem me peça para vir mais tarde, o patrão está mesmo a chegar, bem vê, meu caro senhor, não quero complicações… E por aqui ando, dentro de uma loja que vende produtos tradicionais, é um espaço de outrora, muito bem cuidado; gosto muito das lojas de tecidos, das cores fluorescentes, dos tons cíclame, da profusão do arco-íris, aqui a proprietária só me pedia para ajeitar o que lhe parecia ter confusão, pois era da confusão que eu gostava; e depois uma loja de calçado, julguei que estava a fixar uma imagem surrealista, botas, botins e sapatos a dançar no éter, era como não houvesse escaparates, era uma dança de sapatinhos, como aquela que Charlie Chaplin imortalizou. Chega de devaneios, vamos continuar.



Se me tivessem dito antes que ia encontrar chitas de Alcobaça em Tomar, não teria levado a sério. Qual foi o meu espanto quando, após ter sido apresentado a um senhor nonagenário que me disseram ser o comerciante mais antigo da cidade, mais a mais com o nome em diminutivo, muito terno, que me acenou respeitosamente, um outro senhor, com um olhar azul líquido, e orgulhoso do que me apresentava, mostrou-me chitas bem apetitosas, uma delas tenho-a numa sanefa de escritório, até sonhei comprar um baú ou uma daquelas caixas de lata com que a pudesse forrar com tanta cor vistosa e genuína. Saí dali muito bem-disposto, e pronto a voltar.


Voltei ao local do crime, gosto muito desta marcenaria, não me importava nada de ter esta cadeira restaurada, respeito muito estas mãos prodigiosas que fazem a cirurgia na madeira, do escavacado e carunchoso sai obra de arte, o conforto das salas e até dos espaços mais íntimos. Quem vê confusões como estas está longe de imaginar o produto final. É por isso que eu regresso, embeiço-me com estes trastes que ganham vida, a imaginação não está só nos livros nem na escrita, estes artífices são capazes de chegar ao céu.


Tudo começou quando aqui entrei para namorar umas cerâmicas, sempre que entro nesta rua, e mesmo sem instintos de fotógrafo amador, paro diante da montra ou entro para trocar dois dedos de conversa, palavra puxa palavra, e qual fado a contrariar a vontade, deu-me para me sentar, era um espaço bem habitado, tive que retirar alguns objetos para me equilibrar e muito contente fiquei com este ângulo onde num vidro se vê a porta. Saí dali feliz com o tributo do acaso que me deixa o coração cheio.


Aqui se vendem produtos que conheço desde a infância, artigos de higiene, brinquedos, guloseimas e tudo o mais. A proprietária estava feliz por me mostrar o interior do estabelecimento que no passado tivera um outro uso, imagine-se, uma serralharia ou coisa parecida. E aqui estava um cofre de parede inesperado, junto a vários escaparates de cosméticos. E digam-me lá se este passado não bate certo com artigos tradicionais que teimam a impor-se no presente…

(Continua)
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Notas do editor

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