terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15699: (In)citações (82): Depoimento de um antigo combatente na diáspora (José Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56) (1): As experiências humanas que a guerra me proporcionou

1. Em mensagem do dia 14 de Janeiro de 2016, o nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), enviou-nos um texto, e algumas fotos, com aquilo a que chama Depoimento de um antigo combatente na diáspora. 
Aqui fica a primeira de duas partes.


Depoimento de um antigo combatente na diáspora  

1 - As experiências humanas que a guerra me proporcionou

José da Câmara*

Muito mais que a experiência militar, o que me marcou para a vida foram as experiências humanas que a guerra do Ultramar me proporcionou viver e a influência que tiveram na condução da minha vida desde então.

A guerra também é uma lição de vida que se aprende nas páginas de um livro sem linhas, sem palavras. Um livro em que as páginas mais importantes são escritas com a tinta dos sentimentos.

No mundo das lutas humanas que eu vivi não há palavras que consigam transmitir a capacidade de sacrifício, abnegação, camaradagem, religiosidade, dor e alegria do soldado português e, em particular, do soldado açoriano. A ânsia da incerteza do dia-a-dia, o receio, a miséria e a dor de ver perder um camarada vive-se, mas não se consegue descrever.

Porque também passei pela particular experiência de comandar tropas nativas, tive a possibilidade de aprender que o amor a Portugal, o meu querido País, era tão igual nas suas diferentes culturas, religiões, dialetos e fisionomia do todo humano que o compunha.

Quando cheguei à Província da Guiné, encontrei uma capital, Bissau, em franco e harmonioso desenvolvimento. Avenidas largas, limpas, iluminadas, comércio e restauração florescentes, assistência na saúde, escolaridade primária obrigatória, Liceu e muito mais. Ali, na cidade, respirava-se paz, harmonia social, desafogo económico e cultural. Era evidente que aquele bem-estar provinha do grande afluxo de tropas, muitas destas acompanhadas pelos seus familiares, excelentemente aproveitado pelas autoridades civis e militares no desenvolvimento da cidade.

Mas havia uma outra Guiné, aquela que estava para além de Bissau, a do mato, como se dizia na gíria militar. Aquele era aqui e ali entrecortado por alguns aglomerados populacionais de maior ou menor importância e desenvolvimento, sendo que as chamadas tabancas estavam mesmo a séculos de distância dos padrões de desenvolvimento da capital. A guerra, um autêntico flagelo humano, não explicava tudo. Era evidente que esta outra Guiné tinha sido negligenciada pelos poderes instituídos ao longo de centenas de anos. Talvez por isso mesmo, alguns autóctones ainda enraizados em costumes e tradições seculares se mostravam renitentes em aceitar mudanças que pusessem em causa a ordem social vigente a que estavam acostumados.

Naquele mato, a pobreza das gentes era chocante, mesmo para os corações mais duros. A subsistência familiar baseada numa agricultura insípida e antiquada era insuficiente e, em alguns casos, a religião e as tradições de algumas etnias não permitiam tirar o devido partido do pouco que havia. Águas inquinadas, mosquitos e malnutrição protagonizavam constantes problemas de saúde. Como se isso não bastasse, a rede de transportes, a assistência médica e o ensino obrigatório civis eram quase inexistentes. Muitas unidades militares faziam o que podiam para colmatar algumas daquelas falhas, mas em muitos casos podiam pouco. Aquele também era o mato das minas, das emboscadas, das flagelações, dos horrores da guerra.

A pobreza

Foi na Mata dos Madeiros, uma faixa de floresta densa entre a Mata do Balengerez e da Caboiana, a seguir ao Bachile, que por imperativos de defesa era agora completamente despovoada, que a CCaç 3327 montou o seu primeiro acampamento. Como companhia de intervenção às ordens do CAOP1, com sede na Vila de Teixeira Pinto, tinha como principal missão a proteção dos trabalhadores e das máquinas que prestavam serviço na construção da nova estrada que iria ligar aquela Vila ao Cacheu.
Naquela mata, recheada de fauna e flora maravilhosas, tive a oportunidade de viver o pulsar diário dos mais nobres sentimentos humanos de mãos dadas com os tremendos esforços físico e psicológico só ali possíveis e protagonizados por uma juventude maravilhosa.

O sacrifício da Mata dos Madeiros

O nosso dia de Páscoa (1971) naquele local foi marcado por um folar diferente, o casamento por procuração do Fur. Mil. Fernando Silva. Saiu de manhã com o seu grupo em patrulhamento. A meia tarde regressou ao acampamento para uma pequena cerimónia com os seus camaradas, para de novo voltar ao patrulhamento e respetiva emboscada noturna. Os segredos da noite perfumariam o barro vermelho da mata que lhe serviria de leito nupcial. Sem um queixume, sem um gesto de revolta apenas cumpria o seu dever.

Para no dia seguinte, segunda-feira, sermos todos atingidos com o trágico acidente sofrido pelo Manuel Veríssimo Oliveira, natural da Lomba de São Pedro, Ilha de São Miguel, o qual lhe custaria a vida dias mais tarde. No cumprimento de ordem militar, prestei a assistência necessária à família do Manuel. Na correspondência que mantive com a família, vivi por dentro o sofrimento de uma mãe que perdera o filho, sem o direito de o beijar uma última vez. O tempo se encarregou de suavizar a dor daquela experiência, mas ainda não me deu a oportunidade de esquecer.

De forma marcante e inesquecível, tive a oportunidade de participar diretamente na grandeza sublime do sentimento religioso dos nossos militares. Porque, na prática, a assistência religiosa era quase nula, um pouco por toda a companhia colmatava-se aquela falta com algumas manifestações de fé cristã. Entre elas, no tríduo preparatório em honra de Nossa Senhora de Fátima, o terço era rezado diariamente por muitos. Nas emboscadas noturnas, a minha secção rezava-o em conjunto através de sinais. Ali não havia medo, mas sim um sentimento de libertação do que nos rodeava, de conforto interior.

Na noite do dia 12 de Maio de 1971, os dois grupos de combate que estavam na proteção afastada ao acampamento regressaram a este para se juntarem aos outros dois. Com a sua chegada deu-se o andamento da Procissão pelo perímetro interior do acampamento. Com a arma numa mão e a vela acesa na outra, aqueles valentes militares deram largas à sua fé entoando o Hino a Nossa Senhora de Fátima que perfumava com a sua bênção as matas da Guiné. Durante aquela manifestação de fé a defesa do acampamento esteve entregue aos Anjos do Céu.

A religiosidade

Como poderei transmitir (ou esquecer) os sentimentos que me assolaram quando, numa noite diluviana, em corrida contra ao tempo, o meu grupo de combate, a que se juntaram algumas dezenas de voluntários, teve que evacuar de Teixeira Pinto para Bissau o soldado Miranda, da CCaç 2637, natural de São Miguel, em fim de comissão, também ele vítima de um acidente? No regresso a Teixeira Pinto sabíamos que ele jazia cadáver no Hospital Militar 241. Ou ainda a visão de um furriel a chorar, na chegada de uma operação de alto risco à Mata do Balenguerez, ao encontrar morto o seu amigo de estimação, um tecelão, uma avezinha domesticada por ele?

Na guerra mata-se, morre-se. Mas também há aquela situação em que se morre ficando vivo. Foi o que senti no Destacamento de Bassarel quando recebi a notícia de que iria ser transferido para uma unidade de recrutamento guineense. Sabia e compreendia que situações dessas aconteciam, mas logo eu, o único graduado açoriano numa companhia açoriana, não fazia sentido algum. Ou fazia? Com o coração despedaçado tive que me despedir daqueles fantásticos rapazes que compunham a minha secção, irmãos nas boas e nas más horas, para mim uma família muito especial.


A saudade na partida para as tropas africanas

Como transmitir em palavras os sentimentos que me assolaram quando no Destacamento de São João fui apresentado ao meu novo Pelotão de [Caçadores] Nativos 56 e me apercebi que aquele era constituído por manjacos, felupes, balantas, mandingas, fulas, beafadas, papéis, muitos deles inimigos tribais, que pouco comunicavam entre si, alfabetizados alguns e outros que não falavam português? Ou como foi a minha integração naquele pelotão no qual o soldado mais velho tinha 52 anos de idade que, como alguns outros, andava na guerra desde o seu início? Entre católicos, muçulmanos e animistas como conciliar os seus costumes, tradições e práticas religiosas com a disciplina e os afazeres militares? Como comunicar ordens em situações de risco, ou a simples afirmação de que ali eu era apenas mais um, com responsabilidades acrescidas sim, mas que eram eles os verdadeiros protagonistas protetores dos seus familiares, das gentes e do chão da Guiné?

No fim, quando treze meses depois regressei à minha companhia e aos Açores, deixei um amigo em cada um daqueles militares guineenses, uma amizade bem traduzida em alguns aerogramas que fui recebendo ao longo dos meses, prática que naturalmente desapareceu quando emigrei. Em São João ficara um pelotão de gente boa e dócil, agora com uma mentalidade diferente, mais receptiva, mais igual, mais amiga.

O Pel Caç Nat 56

Em fim de comissão, no dia da despedida em Brá, marchei na frente da companhia. Por ordem do comandante da companhia nas minhas mãos carregava com muito orgulho o Guião da CCaç 3327. Um gesto simples fora suficiente para esquecer a amargura do dia em que deixara a companhia. Lá mais atrás marchava a minha secção. Vinham todos, minha única honra e glória. Na companhia, infelizmente, faltava o Manuel.

A despedida da Guiné. Extracto do Jornal Voz da Guiné, 30 Dezembro de 1972, Página 13.

Um pouco mais de três anos após ter cruzado as portas do CISMI, em Tavira, tinha chegado a hora de dependurar o uniforme do exército de Portugal. Vestira-o com orgulho e dignidade. Pelo meio ficaram ainda a minha passagem pelo BII19, BII17, Santa Margarida e vários aquartelamentos na Província da Guiné. Cumprira com o meu dever de mancebo na defesa da Pátria, numa guerra justa ou injusta mas para a qual não fora chamado a decidir. O jovem que partira era agora um homem. Na bagagem, bem escondidas, trazia algumas cicatrizes internas, que o tempo se encarregaria de diluir, e muitas ilusões.

(Continua)
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Nota do autor:

(*) José Alexandre da Silveira Câmara.
Natural da Fazenda, Concelho das Lajes das Flores.
Prestou serviço militar no Ultramar como Furriel Miliciano na Companhia de Caçadores 3327, mobilizada pelo BII17 para a Guiné: partida a 21 de Janeiro de 1971 regresso a 7 de Janeiro de 1973.
Emigrou para os Estados Unidos da América no ano de 1973, tendo-se fixado em Stoughton, Massachusetts onde reside.
Encontra-se presentemente reformado.

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15552: (In)citações (81): Amigo/a, camarada, faz a tua prova de vida: Manda-nos um simples "OK! Tudo bom! Vou indo" ! ... E os editores aproveitam para te desejar o melhor ano possível em 2016, apesar das dificuldades, enfermidades, mazelas, contrariedades, problemas, sacanices, minas e armadilhas que enfrentamos, cada vez mais, à medida que o tempo... pula e avança

6 comentários:

Luís Graça disse...

Camara(da):

Grande homem, grande açoriano, grande português, grande americano, grande cidadão do mundo... e grã-tabanqueiro:

Gostei de ler o teu depoimento, singelo, autêntico, franco!... E mais ainda da tua pergunta de 1 milhão de dólares:


(...) "Como transmitir em palavras os sentimentos que me assolaram quando no Destacamento de São João fui apresentado ao meu novo Pelotão de Nativos 56 e me apercebi que aquele era constituído por manjacos, felupes, balantas, mandingas, fulas, beafadas, papéis, muitos deles inimigos tribais, que pouco comunicavam entre si, alfabetizados alguns e outros que não falavam português? Ou como foi a minha integração naquele pelotão no qual o soldado mais velho tinha 52 anos de idade que, como alguns outros, andava na guerra desde o seu início? Entre católicos, muçulmanos e animistas como conciliar os seus costumes, tradições e práticas religiosas com a disciplina e os afazeres militares? Como comunicar ordens em situações de risco, ou a simples afirmação de que ali eu era apenas mais um, com responsabilidades acrescidas sim, mas que eram eles os verdadeiros protagonistas protetores dos seus familiares, das gentes e do chão da Guiné? (...)


Também estive numa subunidade, composta por homens do recrutamento local, que ajudei a formar: a CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71)... Também passei pela mesma confusão de sentimentos... E se queres que te diga é difícil resumir, em palavras, a nossa "fórmula de sucesso"... Mas espero que tu nos fales mais das tuas vivências com o Pel Caç Nat 56 que tinha tudo para ser uma verdadeira "caixinha de Pandora"...

Um abraço grande e boa continuação da reforma!... Luis

Luís Graça disse...

Há dias, muma troca de emails, "troquei" a naturalidade do Zé Câmara, chamei-lhe "madeirense"... Na resposta, o Zé fez questão de reafirmar a sua açoranidade:

"Já agora. eu sou açoriano, natural da ilha das Flores, com alguns anos de vivência na ilha do Faial. Emigrei para os EUA em Julho de 1973."

Aqui fica o meu pedido de desculpas pelo lapso (involuntário, se não seria lapso)... LG

Antº Rosinha disse...

"Ou como foi a minha integração naquele pelotão no qual o soldado mais velho tinha 52 anos de idade que, como alguns outros, andava na guerra desde o seu início? Entre católicos, muçulmanos e animistas como conciliar os seus costumes, tradições e práticas religiosas com a disciplina e os afazeres militares? "

José Câmara, o português e no teu caso também açoreano, é natural e fácil a nossa integração, em Roma somos romanos no Polo Norte somos esquimós.

Mas no caso da Guerra do Ultramar, uma guerra muito africanizada, que ia do Minho a Timor, nós (tugas da Guiné no teu caso)é que fomos integrados por milhões de africanos que não aceitavam, nem acreditavam, nem compreendiam aqueles vários movimentos que falavam numa bandeira que não lhes dizia nada.

José Câmara, nós representávamos uma TÁBUA de SALVAÇÃO para aquela gente, porque não parecia mas essas tribos sabiam muito bem que era muito mau o que aí vinha.

Só quem não esteve lá, é que dificilmente poderá entender o que aqui escreves, por isso mesmo não devemos calar o que se viveu, para que o cinismo e a demagogia dos "vencedores"e dos "desertores", não sejam eles a contar a NOSSA HISTÓRIA.

Em memória dos brancos que morreram, mas principalmente daqueles milhões de negros que tivemos ao nosso lado, e em muitos casos nos protegeram e nos incentivavam a não desistir, historiemos sempre.

Vai ficar na história que fomos os únicos Europeus coloniais que lutámos contra as independências extemporâneas e forçadas violentamente em toda a África.

E a Europa vai também pagar essa irresponsabilidade.

Cumprimntos

J. Gabriel Sacôto M. Fernandes (Ex ALF. MIL. Guiné 64/66) disse...

Amigo e camarada José Camara, como o Luis Graça e o Ant.º. Rosinha, também gostei de ler "As experiências que a guerra me proporcionou". Revejo-me na Portugalidade que o texto revela. Tal como o Luis Graça, também, recordando as minhas vivências em terras da Guiné, me detive na pergunta que vale um milhão de dólares.
Um abraço, camaradas,
JS

Anónimo disse...




Amigo José Câmara:

Por vezes há coincidências difíceis de explicar,isto porque na passada sexta-feira, tendo ido almoçar em Mogadouro, com o Francisco Magalhães, meu primo e alferes do teu pelotão na C.Caç. 3327 , falando de ti, referíamos a excelência do teu carácter, eu com as impressões que vou colhendo na leitura destas páginas e ele com o conhecimento mais aprofundado pela vossa convivência quotidiana de muitos dias e meses. No decorrer da conversa o meu primo, com pesar, falou-me da sacanice que te fez o alferes mais antigo da companhia, quando a comandava, na ausência do capitão. A sacanice é essa de que tu falas, sem te insurgires contra a besta que a praticou, pois tu além de seres muito humano, és um bom cristão que gosta de perdoar a quem te faz mal. Tu, meu amigo, que sendo açoreano eras o único graduado numa companhia de açoreanos, tu camarada, que eras o homem em que todos os bravos soldados açoreanos se reviam pelas tuas qualidades e pela amizade que vos unia. Quando o meu primo me contou este triste epísódio da tua passagem pela Guiné senti a revolta que tu terás sentido.
O sentido de humanidade que tem orientado os passos da tua vida ajudou-te a sublimar essa revolta ao dedicares-te de alma e coração aos nossos irmão africanos que foste comandar.
Mas chego a comover-me, ao ver-te ainda com a alma dorida, na vossa despedida da Guiné, a marchar com garbo e com orgulho, ao transportar o Guião à frente da tua C.Caç. 3327 de açoreanos e tens que acreditar que nesse dia os açoreanos de todas as ilhas marcharam contigo com a mesma cadência, o mesmo orgulho e o mesmo vigor. Tu pelo teu amor a essas ilhas da bruma, pela tua bonomia e pela tua personalidade, foste o comandante espiritual de todos eles e isso não te podia ser retirado por qualquer ordem de serviço.
Um grande abraço. Francisco Magalhães Baptista

Anónimo disse...

Meu caro Francisco Baptista,
Obrigado pelas tuas simpáticas palavras. Elas só podem ser dirigidas a todos aqueles que fizeram e fazem parte de mim, incluindo o teu primo Francisco Magalhães, o meu Comandante de Pelotão.
Em Regengos do Fetal, num dos convívios da CCaç 3327, tive a oportunidade de abraçar o Sr. Alferes que referes. Na altura do acontecimento que referes, ele comandava a CCaç 3327, na ausência do Cap. Rogério Alves.
Naquele abraço deixei rolar uma lágrima pela face e com ela todo e qualquer vestígio de ressentimento que ainda pudesse subsistir no meu coração. Ao cabo e ao fim éramos todos jovens naqueles tempos. A vida é bela e vale a pena ser vivida se a não complicarmos…
Abraço,
José Câmara