domingo, 31 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15688: Memória dos lugares (333): Paunca e a história de um nhanhero (Valdemar Queiroz, fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)



Pequena coleção de artefactos culturais da Guiné, recolhidos por Valdemar Queiroz, no chão fula, na região de Gabu, c. 1969/70 > Nhanhero (ao centro): instrumento musical tradicional da Guiné-Bissau, cordofone, dispõe de uma única corda feita de couro de cauda de cavalo;  a cabaça é pequena e coberta com couro de crocodilo; o tocador pode tocar e cantar ao mesmo tempo (*).  O termo ainda já vem  grafado nos dicionários de língua portuguesa, nomeadamente no Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (edição do Círculo de Leitores, Lisboa, 2002).


1. Texto enviado pelo Valdemar Queiroz
Valdemar Queiroz, em Bissau,
na Solmar, c. 1970

[ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70] 

Data: 26 de janeiro de 2016 às 01:05
Assunto: A história de um nanheiro

Em Paunca havia, dentro da aérea do Quartel, uma grande casa, antigo depósito de mancarra, que servia de caserna das praças. Os furriéis e os oficiais viviam fora do Quartel,  em casas na tabanca, requisitadas pelo exército.

Eu e mais dois furriéis, já não me recordo quem eram, julgo que seriam o Abílio Pinto e o Manuel Macias do meu Pelotão, vivíamos numa casa, edificada "à moderna", com quatro divisões, nada de palhota, telhado de zinco,  e já habitada por uma família fula da região.

Não tivemos problemas com os donos da casa. Os homens e rapazes para um lado e nós também. As mulheres e raparigas não se "misturavam".

Num fim de tarde chegou uma mulher, jovem, com um grave problema de saúde, para ser levada para Nova Lamego e, depois, para o Hospital de Bissau [, HM 241].

Era duma tabanca próxima,  agora já não me lembro, julgo que seria Sinchã Samba. Disto me lembro. Como era familiar das pessoas da nossa casa,  ficou lá em casa,  a aguardar, muito debilitada, pelo transporte para Nova Lamego.

Morreu durante a noite, numa das divisões ao nosso lado.  As mulheres com os seus choros acordaram-nos.

Eu, que horas antes, tinha deixado junto da paciente um "santinho" com a imagem do Santo António, que a minha mãe meteu na minha carteira, fui o primeiro a chegar. Fui o único homem junto daquela morte, afinal era reservada a mulheres,  peguei no "santinho" e quase que também chorei como toda a gente.

Quanto  o dia chegou foi o meu Pelotão (3.º da CArt 11) que levou o corpo da rapariga para sua tabanca. Não me lembro o nome da tabanca,  sei que era perto de Puanca, fula, sem tropa.

Quando lá chegamos, já toda a gente estava à nossa espera com o homem-grande à frente para nos cumprimentar. Eu, na falta do alf mil Pina Cabral que tinha ido para Bissau, doente, era o Comandante do Pelotão. Pedi ao nosso cabo Boi Colubali que traduzisse os nossos sentimentos e que aquela hora e no estado em que a rapariga chegou não pudemos fazer nada.

O homem-grande compreendeu, agradeceu e por certo lhe contaram do meu empenho ao ponto de querer me dar um pequeno cabrito. Não aceitei, mas repararei num velho nhanhero que estava no chão e pedi-lhe que me o oferecesse. "Tem que pedir ao dono", disse ele. O dono era um rapaz pequeno e dei-lhe dois pesos e meio pelo nhanhero.

O Pelotão regressou a Paunca e pelo caminho perguntei aos soldados o que é eles tinham a dizer sobre o que se passou. O homem-grande e a população ficaram muito contentes, disseram-me eles, mas só foi pena o rapaz tivesse ficado a chorar por ter ficado sem o dinheiro e sem o nhanhero.

Anos mais tarde o meu filho, em pequeno, improvisava umas músicas no nhanhero, ao ponto de estragar as cordas de crina ou rabo de cavalo e o couro do arco. Ainda resta o esqueleto do nhanhero, com a caixa de ressonância feita de meia cabaça tapada com pele de cobra,  agora acompanhado com facas e catana na parede das recordações. (**)

Valdemar Queiroz
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 14 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11705: Notas de leitura (491): Atlas dos Instrumentos Tradicionais da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

(...) Passando para a família dos instrumentos cordofones, o realce é dado ao korá, simultaneamente uma harpa e um alaúde, toca-se nos eventos mais importantes e os mandingas consideram-no um instrumento sagrado;quissinta, a cabaça é pequena com a parte de cima forrada de pele de cabra ou vaca, é aparentado com o korá; Tonkoron, dispõe de 4 a 12 cordas, é um instrumento musical que pode aparecer em todas as manifestações culturais, acompanha o canto e a dança; bolombato, a cabaça é inteira, com forma de circunferência ou globo, toca-se em cerimónias do régulo e na luta tradicional, aparece associado ao korá, ao balafon, nhanheiros e outros; nanheiro, dispõe de uma única corda feita de couro de cauda de cavalo, a cabaça é pequena e coberta com couro de crocodilo, o tocador pode tocar e cantar ao mesmo tempo. (...) 

(**) Último poste da série > 26 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15672: Memória dos lugares (332): Camajabá do tempo da CART 1742 (Abel Santos, ex-Soldado Atirador)

4 comentários:

Abel Santos disse...

Amigo Valdemar, obrigado por divulgares usos, costumes, e tradições do povo Guineense, em especial do Chão Fula, gostei de ver e ler, continua a fazê-lo.
Um abraço.

Luís Graça disse...

Que "maldade", Valdemar, que "maldade"!... Provavelmente aquele "nanheiro" era o brinquedo mais precioso que aquele "djubi" alguma vez teve na vida!...Claro que a "insensibilidade" começou por ser a do homem grande, ao sugerir que negociasses com o puto... Mas não há dinheiro no mundo que compre os sonhos de uma criança... A não ser hoje, nas nossas sociedades ferozmente materialistas e mercantilistas... Tudo tem uma equivalência em valores de mercado... Não percebemos o papel do simbólico e da cultura - as crenças, os mitos, os ritos, os valores, os símbolos - na vida dos seres humanos... Só sabemos perguntar: quanto custa ? How much ?

Por certo que compraste o nanheiro por que te atraiu aquele objeto... É uma história que me sensibilizou... E depois o vocábulo "nanheiro" ainda não está grafado nos nossos dicionários... O nosso blogue anda à frente dos lexicógrafos... Um abração. Luis

Cherno AB disse...

Caro amigo Valdemar,
O tempo e a intensidade da tua vivencia no chao fula autoriza que tomes o apelido Embalo.
O instrumento em questao chama/se nhanhero e normalmente faz/se acompanhar do dondon ou tama.
Deve ser o instrumento musical mais simples e mais antigo de todos os que conheco na regiao oeste africana e os fulas, provavelmente, ja o utilizavam antes da sua longa digressao pra oeste. Infelizmente os efeitos da colonizacao cultural e a globalizacao fazem com que a juventude nao valorize a cultura ancestral.
O nhanhero nao eh propriamente um brinquedo qualquer e, caso fosse seria o brinquedo dos herdeiros da tradicao, isto eh, os filhos do artista, tocador de nhanero. No ocidente o equivalente do nhanero eh o violino.
Pois eh, na sociedade tradicional fula a crianca pode ser detentora provisoria de um nhanero se o pai eh, digamos assim, nhanherista, mas nao pode ser detentora do dinheiro que contem em si os germes do bem e do mal em duas faces unidas na mesma moeda, pois segundo o a tradicao antiga faz falta a crianca o sentido completo do discernimento que habilita a escolha certa entre o bem e o mal. E quando eh assim os espiritos do mal tendem a prevalecer. Eh o que temos actualmente nas nossas sociedades ditas modernas.

Com um abraco amigo,

Cherno Balde

Anónimo disse...

Cherno Baldé
9 fev 2016 09:10

Bom dia Luís,

No mesmo poste inseri um comentário a tentar corrigir a grafia do instrumento, pronuncia-se "Nhanheiro", nome derivado do som que ele produz "nha..nhe...nhi". E uma versão Africana (fula) do violino europeu.

Em Fajonquito nos anos 60/70 tinhamos um grande Nhanherista, infelizmente n~zo tenho imagens do tempo.

Um grande abraço,

Cherno A. Baldé