Gostei de todas elas porque nenhuma tinha culpa da minha situação, temporária, de militar em trânsito. De todas me ficaram boas e más memórias.


Acho não ficar mal confessar que antes de ir para a tropa, o mais a sul que tinha ido, tendo como referência a minha residência no concelho de Matosinhos, fora Fátima com os meus pais, aos 10 anos de idade, no ido ano de 1958.
Ir para as Caldas, no dia 21 de Abril de 1969, tornou-se portanto uma aventura, minimizada pelo facto de a viagem ser partilhada por largas dezenas, ou centenas, de mancebos que de todo o norte do país convergiram para a Estação de S. Bento a fim de apanharem o comboio-correio da meia-noite. Um grupo bem numeroso, onde eu me incluía, saiu de Leça da Palmeira no autocarro das 22 horas a caminho da cidade Invicta. Assim se iniciou uma longa viagem de quase 12 horas.
Não me perguntem como, mas sabíamos de antemão que tínhamos de fazer dois transbordos, um em Alfarelos para apanhar outra composição de um ramal que nos levaria até à estação de Lares, na Linha do Oeste, onde aguardaríamos por outro comboio que nos levaria finalmente às Caldas.
Tenho em memória que chegámos aos portões do RI5 por volta das 9h30 da manhã de 22, dia que me estava destinado para comparecer no quartel, tendo grande parte do grupo entrado de pronto porque nos disseram que se esperássemos pela tarde, a confusão seria mais que muita.
Vamos saltar as peripécias militares, para aqui não chamadas, e vamos falar da terra propriamente dita.
Ao tempo a cidade era relativamente pacata, destacando-se o velho Hospital Rainha D. Leonor, localizado no frondoso Parque D. Carlos I, o Parque propriamente dito e as várias lojas de artesanato, mais ou menos atrevido, que explorámos nos tempos livres.
Hospital - Foto: http://images.fineartamerica.com/, com a devida vénia
Famoso era também o Café Zaira(*), situado na Praça da República, onde não passávamos muito de perto já que junto ao vidro, do lado de dentro, costumavam sentar-se os oficiais, o que nos obrigava a constantes e arreliadoras paladas.
Diga-se em abono da verdade que no belíssimo Parque acontecia o mesmo, já que era vulgar encontrar muitos oficiais a passear, acompanhados de suas famílias. Como bons recrutas que éramos, o melhor era bater continência a tudo o que tivesse divisas, fosse bombeiro ou porteiro de hotel.
Nesta mesma Praça realizava-se, e julgo que ainda se realiza, o afamado mercado da fruta das Caldas da Rainha, mais um ex-libris desta cidade.
Mercado da Fruta - Praça da República - Foto: EU GOZEI A MINHA ADOLESCÊNCIA NAS CALDAS DA RAINHA NOS ANOS 70 E 80, com a devida vénia
Como bom militar tem de ser bom garfo, lembro o restaurante que frequentávamos quando o rancho não era a contento. Não me lembro do seu nome, também já não existirá, mas da empregada, a Tininha(?), uma jovem que nos atendia com especial carinho, talvez por saber que no quartel se comia muito mal. Que belos bifes com ovo a cavalo, guarnecidos generosamente com batatinhas fritas, arroz e salada. Era o nosso prato favorito. Ainda lhe sinto o cheirinho.
A cidade das Caldas da Rainha tinha já, então, uma actividade cultural e desportiva interessante. Nunca mais esqueci o Museu José Malhoa que revisitei mais recentemente, assim como os torneios de ténis de mesa, uma modalidade ali muito acarinhada, praticada num pavilhão existente dentro do Parque.
Museu de José Malhoa - Foto Wikipédia, com a devida vénia
Já aflorei o artesanato local, que não se limitava só às malandrices que mais aguçava a nossa curiosidade. Eram muitos os estabelecimentos de venda de olaria, verdadeiras montras de obras de arte confeccionadas por gente anónima nas inúmeras fábricas e ateliês que transformavam o barro em peças únicas.
Uma das mais belas recordações que guardo desta magnífica cidade foi o desfile que fizemos no Dia de Juramento de Bandeira(?), ao longo das suas ruas, com as varandas das casas engalanadas com colchas multicolores e as pessoas acenando à nossa passagem. Foi um adeus sentido de parte a parte.
Na tarde do dia 5 de Julho, em que apanhámos o comboio com destino a Lisboa, a caminho de Vendas Novas, já sentia saudades daquela terra e daquela gente.
Do RI5 não guardo boas recordações, pela má comida e porque alguns oficiais e sargentos não distinguiam a disciplina militar da prepotência e do abuso da autoridade que, julgavam, os galões e as divisas lhes conferiam.
Eram um verdadeiro vexame aquelas formaturas de revista, de hora a hora, após o toque de ordem, para podermos sair e ir dar uma volta pela cidade e comer alguma coisa de jeito. Por tudo e por nada nos mandavam para trás, o que acarretava nova tentativa uma hora depois. Estávamos assim à mercê do bom ou mau humor do Oficial de Dia.
Fica desde já aqui registado que em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, a disciplina era mais severa e a instrução militar, de longe, muito mais dura, mas éramos tratados com respeito.
Carlos Vinhal
Ex-Fur Mil
CART 2732
Mansabá
1970/72
OBS: - As interrogações são fruto de alguma incerteza, volvidos que são quase 45 anos. Aceitam-se as devidas correcções.
(*) - Nome do café rectificado por indicação do camarada António Ribeiro
____________
Nota do editor
Último poste da série de 17 de Janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12594: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (1): Espinho, Porto, Tavira e Torres Novas (José Martins)