1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:
MEMÓRIAS DA GUINÉ
Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap Mil de Artilharia
14 - A MINHA CASA EM BISSAU
Em 24 de Junho de 1970 a Lena e o meu filho Fernando Manuel chegaram a Bissau, depois de cumprido o ano escolar de 1969-1970.
Foram viver para uma pequena moradia situada na Avenida Arnaldo Schulz, que eu tinha conseguido alugar.
A nossa casa localizava-se muito próximo do Quartel da Polícia. Era uma pequena vivenda, com uma sala de estar, outra de jantar, dois quartos, cozinha e casa de banho. Mas tinha à sua volta um pequeno jardim no qual havia duas bananeiras e uma linda acácia rubra.
Dada a minha posição na hierarquia militar tive direito a um impedido. Foi-me atribuído para exercer essas funções um soldado negro, que anteriormente havia sido "terrorista", de nome Moba, de religião muçulmana.
Tinha já três mulheres quando entrou ao meu serviço e vários filhos.
Andava sempre com dificuldades financeiras. Muitos dias antes do pagamento do pré1 pedia-me adiantamentos e isto quase todos os meses.
Dizia-me que não tinha dinheiro para comprar a "vianda" para os meninos. E eu adiantava-lhe o pré.
A sua religião proibia-o de beber vinho. Mas para ele vinho somente era o tinto. Desta forma iludia as suas próprias convicções religiosas, pois dizia-me que o vinho branco era água de Lisboa e como tal não lhe estava proibido bebê-lo.
Quando a sede lhe apertava pedia-me:
- Capitão, dá-me um copo de água de Lisboa.
E eu, em regra, satisfazia-lhe o pedido.
Um dia pediu-me férias.
- Férias nesta altura, Moba?
- Sim, Capitão. Preciso de alguns dias de férias para casar.
- Outra vez?! - admirei-me eu. Já tens três mulheres e não sei quantos filhos e queres casar outra vez? O dinheiro não te chega a nada, estás sempre a pedir-me adiantamentos e ainda queres outra mulher?
- Preciso, Capitão. Vou casar com uma "bajuda". Quando eu e as minhas outras mulheres envelhecermos ela tratará de nós.
Perante esta explicação não pude deixar de dar férias ao meu impedido Moba.
E a explicação que me deu levou-me a considerar que a organização social dos muçulmanos protege a velhice dos seguidores dessa religião.
Também entre as várias mulheres de um só homem não se verifica a existência do ciúme. Era usual pentearem-se umas às outras em frente das palhotas, convivendo amigavelmente.
Tivemos também uma lavadeira negra de nome Inácia. Durante o tempo que esteve ao nosso serviço o marido adoeceu gravemente e acabou por morrer.
Ficamos muito tristes com o infausto acontecimento uma vez que tínhamos muita estima pela Inácia, que era muito boa mulher.
Sempre que me irritava com alguma traquinice do meu filho e lhe ralhava ela punha-se imediatamente à frente e rogava-me:
- Capitão, não batas ao menino. Capitão, por favor.
Por isso quisemos saber da futura situação da Inácia e do seu pequeno filho.
Ela informou-nos que tudo estava assegurado. Passaria a pertencer a um cunhado e o "tiozinho" passaria a ter a responsabilidade de tratar e criar o miúdo.
Era uma criatura paciente, humilde e meiga. Gostava muito do meu filho. Dizia a respeito dele, muitas vezes:
- Menino, tem esperto na cabeça.
Tivemos também uma "bajuda" para a limpeza. Era uma rapariga muito nova que, findo o trabalho, se despia completamente nas traseiras da nossa casa e se lavava com a mangueira do jardim.
Encontrei o meu filho, algumas vezes, por detrás da persiana, gozando o espectáculo que a "bajuda" oferecia sem o mínimo pudor.
A nossa alimentação vinha da Messe de Oficiais do Batalhão de Engenharia pelo que não cozinhávamos.
Também tivemos um pequeno cão, o Perna Longa, e um periquito.
Uns tempos antes de regressarmos a Portugal demos o cão. O Moba tratou de o levar para o novo dono que habitava longe de nós.
O animal procurou e conseguiu voltar a nossa casa, orientando-se não sei como por entre aquele emaranhado de bairros de palhotas que circundavam a cidade. Só depois de ser preso pelo novo dono é que deixou de nos aparecer.
Quanto ao periquito ofereci-o ao Major (é hoje General) Carlos Azeredo. Ele tinha um periquito que morreu. O major falara-me do seu passamento com alguma tristeza.
Perto de regressarmos, para aliviar a tristeza do major, ofereci-lhe o periquito.
Nutria por este major uma certa simpatia, enquanto permaneci na Guiné.
Mais tarde vim a saber que entre a minha família e a dele havia fortes relações, dada a proximidade das "casas" a que ambos pertencemos.
Ele é oriundo da Casa do Cabo de Marco de Canavezes e eu da Casa da Seara de Magrelos.
Enquanto durou a minha comissão na Guiné a Lena trabalhou como professora na Escola Preparatória de Bissau e o nosso filho Fernando Manuel fez lá a 4.ª classe, a admissão ao Liceu e o 1.º ano do Ciclo Preparatório.
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Nota do editor
Último poste da série de 25 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12503: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (13): A Economia da Guiné - A Feira de Amostras de 1971
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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9 comentários:
Tenho o prazer de conhecer pessoalmente o senhor General Carlos Azeredo, um dos militares mais conceituados do nosso Exército.
Uma vez que almoçou connosco em Matosinhos, num dos nossos convívios, o seu carro tinha ficado longe do restaurante. Prontifiquei-me a levá-lo no meu carro até ao dele, o que recusou. Insisti que ao menos me permitisse fazer-lhe companhia a pé, o que ele também recusou. Vim com ele até ao exterior do restaurante e como quem não quer a coisa, ia acompanhando-o. De repente vira-se para mim e diz: Volte para junto dos seus camaradas, é uma ordem. Só não me pus em sentido, mas acatei e despedi-me dele.
Há pouco mais de um ano, estive com ele e com a esposa. No nosso último convívio não nos deu o prazer da sua presença por motivos de saúde.
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira
Boa vida por Bissau!
Existiam na realidade duas Guinés, a do mato, que nos calhou a quase todos,
e a dos sortudos que conseguiram fazer a guerra da retaguarda, com mordomias e alguns privilégios.
Não critico nada, a vida é mesmo assim, duas faces da mesma moeda, mas não temos tido no blogue muitas descrições tão sinceras e reais como esta de como era o dia a dia em Bissau quando algum de nós, às vezes por tão sinuosas vias, conseguia escapar ao mato.
Abraço,
António Graça de Abreu
O sucesso de qualquer guerra depende sempre de uma sólida retacguarda. Por isso julgo não ser importante quem fez a sua Guerra de Bissau, mas a forma como a fez.
Porque nos dá uma prespectiva da vida familiar em Bissau, acandura do Cap. Fernando Valente, pondo a nu alguma da sua vida privada, é apreciada pelo menos por este leitor.
Abraço amigo,
José Câmara
Já agora, mesmo no mato, chamada frente de guerra, também havia quem, de acordo com as possibilidades, gozasse de algumas mordomias. Podem meter aqui o meu nome.
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira
josé Eduardo Alves
bom aqui existem duas maneiras de ver, Havia quem teve se condições financeiras e podia ter uma casa em Bissau conheci um soldado que era casado e levou a sua Ex.ma esposa para bissau estando ele no mato, o estado português não proibia isso um abraço josé alves
Também tive o prazer de conhecer pessoalmente o senhor General Carlos Azeredo aquando dos convívios dos "Roncos" em Esmoriz aos quais foi convidado de honra.
Vasco Ferreira
Meu caro Fernando, a nossa história (da comissão na Guiné) nunca poderia ficar completa sem as notícias do engenho e da arte dos engenheiros militares: o que faziam, por onde andavam, o que sentiam, o que pensavam, etc...
Um das regras básicas do nosso blogue, que procuramos respeitar e fazer respeitar, é a "proibição de fazer juízos de valor" sobre camaradas que aqui escrevem, dando o seu testemunho, contando a sua história... Se assim não fosse nunca atingiríamos a longevidade que atingimos...
Não podemos fazer a distinção, hoje, entre operacionais e não operacionais, gente que estava no mato ou que vivia em Bissau, ou que trouxe a família, como foi o teu caso.
E, a propósito, seguramente que para o teu puto (hoje um homem de quarenta e tal anos), foi uma "experiência de vida" que só o enriqueceu e ajudou a formar o caracter...
Dou-te os parabéns por mais esta crónica sobre o quotidiano de uma família portuguesa em Bissau... recheada de pequenas observações sobre os "usos e costumes" dos nossos amigos guineenses, como era, por exemplo, o caso do levirato.
O Levirato (ou levirado) é (ou ainda) o costume, observado entre alguns povos da Guiné (por ex.,os fulas), que consiste na obrigação (sic) de um homem se casar com a viúva de seu irmão quando este não deixa descendência masculina. Um eventual filho deste casamento é considerado como descendente do morto.
O Levirato é uma figura do direito consuetudinário, com raízes bíblicas. Já vem do Antigo Testamento, associado às leis de Moisés.
Etimologicamente, levirato vem do latim "levir", que quer dizer "cunhado".
O António Graça e Abreu fala de uma situação de duas Guinés, mas pior é se falarmos ainda de uma guerra passada em Lisboa ou Porto e outra em Cacine ou Moeda, ou Nambuangongo.
Mas a injustiça mais gritante é um soldado e um capitão dentro do mesmo arame farpado, fora das cidades, e não haver um subsídio de risco igual para os dois em que minimizasse a diferença (lógica) de salários entre os dois.
Penso que é nesses moldes que há voluntários para as «bósnias» e que os franceses e ingleses mantêm exércitos prontos para as guerras "coloniais" e de "pacificação" no Sudão e no Afeganistão.
"Nem mais um soldado para o ultramar" é patenteado!
Caros camaradas
Estes relatos da vivência familiar em Bissau, nos idos de 70 que Fernando Magro nos tem proporcionado vêm reforçar as várias indicações que por aqui vão aparecendo, também no mesmo sentido.
Era possível, foi possível, haver vida familiar 'normal' mesmo naqueles tempos, em Bissau.
Nada que se comparasse com Luanda, com a então Lourenço Marques e outras cidades de Angola e Moçambique, mas podia-se viver com algum conforto, comodidade e, em certas circunstâncias, com mais cosmopolitismo do que em muitas terras da dita Metrópole.
E calculo, tal como refere o Luís Graça, que essa experiência tenha alguma influência na formação do carácter de teu filho.
Abraço
Hélder S.
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