domingo, 12 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12577: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (9): Novembro de 1966 - Qual guerra?

1. Em mensagem do dia 7 de Janeiro de 2014, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos o nono episódio da sua série Fragmentos de Memórias.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

9 - NOVEMBRO DE 1966

Qual guerra?

Erguia-me do leito nupcial... chegava o pequeno almoço de meio quilo de rim cortado ós códradinhos e frito quando não grelhado... a rega com a cervejola preta de 6dcl, café... digestivo... e acima de tudo com a companhia das minhas mulher e filha.

Bissau - Natal de 1966 - Veríssimo Ferreira com a sua filha

O que me era devido estava agora a ser pago, os privilégios continuavam, mas que me sentia mal, sentia, sabendo das dificuldades que a rapaziada ia tendo lá nas matas, donde as notícias continuavam a ser piores do que antes. Notava-se que as coisas não estavam bem, também e porque o IN estava a ser agora ajudado por mercenários cubanos, tendo o próprio Guevara por ali andado. Constava que combatera no Congo e que se oferecera para nos fazer frente, tendo depois desistido quando soube que éramos OS PORTUGUESES, os tais das "ARMAS E OS BARÕES ASSINALADOS".

Meteu o rabo entre pernas e foi pregar para outra freguesia. Mas, nos locais mais problemáticos, o cansaço ia causando estragos e só com muita valentia se ia dando conta do recado. Contudo, nunca a esses heróis se lhes deu a devida importância. Éramos então na Guiné cerca de 22 mil.

Certo dia chega uma comissão de estrategas americanos que vinham estudar como era possível, que com tão poucos ainda conseguíssemos por ali mandar. Ouvi o que disseram no fim e para além dos elogios às Tropas Portuguesas, sugeriam que só nós resolveríamos o conflito que eles mesmo tinham no Vietname e com forças vinte vezes superiores. Se mais não fosse, considerei-me satisfeito e pedi para que isso fosse transmitido para o mato, mas qual quê... iam lá atender ao pedido dum furriel.

O Natal de 1966 chegou e a festa fez-se, só que na hora da distribuição de prendas fui alertado para ir até ao Hospital Militar, e aquela que prometera ser uma feliz noite, transformou-se para mim num verdadeiro calvário.
Cinco dos nossos jaziam na laje fria.

A 28 fiquei de novo só, mas a vida tinha de seguir em frente... o fim do ano estava aí... fizeram-se os bailes... haja alegria... que se lixe se a dor continua... que se lixe se a guerra continua... que importa lá isso!!!
Também dancei... também bebi mais que todos os impávidos e serenos... também me exaltei...

E o ano de 1967, chegou cheio de hip's hip's e copos a transbordar, para aquelas gentes alegres que nem memória pareciam já ter. E eu a um canto chorava de tristeza e dor (e por isso mariquinhas me chamei) mas decidi e amandei-lhe com mais um Vat 69.

Tudo voltou depois à normalidade e eu ao meu trabalho, cada vez maior. Nos mentideros, ia-se ouvindo falar de coisas quase sem nexo, mas que confirmadas eram tão reais, como o facto de que onde estivessem Companhias de Açorianos, não havia mais lutas. Teriam sido zonas de perigo, mas que eles foram pacificando, constando-se até, que na mata se ouviriam gritos IN's de: "Fujam que são os Açorianos."

Mais constava que por isso é que os mandavam logo dali pra fora, pois que não convinha a muito boa gente, que a guerra terminasse. Coisa estranha... não é?
Como é possível admitir que haja a quem não conviesse acabar com a guerra? Maldizentes... pensei eu, qu'até conhecia de quem falavam.

Conhecia eu e conhecemos todos decerto, particularmente os milicianos (furriéis e alferes) que na mata comandaram substituindo quem o devia e ganhava para o fazer. Cala-te boca...
Honrosas excepções existiram também, de gentes dos quadros profissionais, que se enlameavam nas bolanhas... que não abandonavam os seus e qu'até abominavam o ar condicionado.

Entrementes fui-me cultivando desaprendendo. Desaprendendo com aquele gente teórica, que não passara, pelas Mansabás, Manhau's, Bissorã, Guileje, Madina do Boé e quejandos, mas que enchiam o peito, com o pseudo-heroísmo balofo, jamais vivido.

Comecei a conhecer os verdadeiros significados doutras palavras, tais como: Medo... ganância... traição... demagogia... deserção... subserviência... engraxadorismo... lambe-botas... o que convenhamos era demasiado para o labrego que eu era e que só fora habituado a ser honesto.

E como combati para assim me manter!!!
Não foi fácil porque o aliciamento era mais que muito.
Consegui sair intacto embora me tenha tornado mais rude e desesperado com a porca da vida, mas mais que nunca, preparado para a enfrentar e enfrentei.

Azedo fiquei?
Talvez... mas valeu a pena que continuo com uma consciência pura e bela e que jamais me condenou.
Quiseram que entrasse em palhaçadas? Pois quiseram, mão não conseguiram, fiquei apenas pobre, mas isso já era.
Quiseram recalibrar-me? Pois quiseram, só que nessa altura viram a G3.

Estão a querer fazê-lo de novo em 2014?
Pois estão... mas tenham cuidado e sejam carinhosos, que ainda estou assadinho... e nem o talco tem resultado.
Não me codilhem mais, meninos do governo, senão vou-me a vocês e decerto não se salvarão dumas palmatoadas, ou então obrigar-vos-ei a comer uma dobrada liofilizada com feijão branco, à moda do K3.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12518: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (8): Meados de Julho de 1966, O futebol move montanhas e o Natal de 1966 passado com a família

5 comentários:

Joaquim Luís Fernandes disse...

Pois foi assim como dizes camarada Veríssimo!...
- De tudo aconteceu um pouco... ou um muito;

Por tudo passamos e resistimos!...
- Mas cá estamos, de pé e de cabeça levantada.

E depois de uma vida, de trabalho honrado,
prontos para lutar e exigir mais respeito...

E já agora, um pouco mais de justiça...
É que somos tolerantes, mas não parvos.

Um abraço fraterno
JLFernandes

Luís Graça disse...

Meu caro Veríssimo:

Muitos de nós partilham da tua raiva, que é também a raiva do nosso poeta e comabatente na Região do Tombali, ainda no tempo do cáqui amareloi, 1964/66, o J.L. Mednes Gomes...

Deixa-me reproduzir um dos poemas dele, do princípio do ano... O poema tem data de 3/1/204... Como sabes, ele vive em Berlim... Recebe um abraço. Estou a ver se consigo ir ao almoço da Tabanca da Linha, no dia 16, mas está difícil o raio da agenda...

Luis Graça

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Portugal anémico...

por J.L. Mendes Gomes


Era rubra e verde a Bandeira Nacional.
Com tantos castelos conquistados
a ferro e fogo,
Dos nossos avós.
Está exangue.

Tinha a glória da esfera armilar.
Que galvanizava o povo inteiro.
E envolvia todo o mundo.

Irradiava força e muito orgulho.
Cobria de esperança este País.
Por elas se sacrificaram muitas vidas,
Na flor da idade!...
Ao pé de nós...

Bastou uma geração de apátridas,
Uma praga feroz
De ervas daninhas,
Pior que sapos.

Sugou-lhe o sangue...
Reduziu-a cinzas..

A cobriu de vergonha
E a rasgou em trapos...

E não há fogo...
Não há pó...
Não há pólvora
Que a extermine!?...

Berlim, 3 de Janeiro de 2014
23h7m
Joaquim Luís Mendes Gomes

Hélder Valério disse...

Caro Veríssimo

Que queres que te diga?
Já te disse que foi corajosa a vossa decisão de teres a tua mulher e a filhota a passar o Natal contigo, em Bissau, num tempo em que a 'guerra da Guiné' infundia um secreto temor nos ouvidos e pensamentos mais sensíveis.
Acho que fizeram bem porque assim foi possível 'sentir' ao vivo, como era viver naquele tempo naquele lugar, mesmo que isso, em termos de local, fosse Bissau.

Quanto a outros aspectos, quero agora apenas fixar-me no quanto 'azedo' te classificas.

Podes sentir-se assim, 'azedo', podes ir alimentando 'em fogo lento' a raiva que não deixas morrer (e fazes bem), mas deixa-me que te diga que para tua defesa desenvolveste um sentido de humor com ironia e amargura à mistura que, a brincar a brincar, nos vai dando conta do que foi o teu percurso militar e a difícil reintegração na dita 'sociedade civil'.

Em certa parte referes a tua perplexidade por haver festejos e 'copos a transbordar' na passagem de ano de 66 para 67, quando tinhas pouca disposição para tal, sem a companhia dos familiares desde o dia 28, sendo que tinhas ainda bem presente o 'petisco' que te calhou no Natal...

Esse tipo de 'aperto interior' foi sentido por muitos em muitas circunstâncias. Há até um registo desse 'estado de espírito' num poema que li faz muito tempo, ainda antes de ir para a Guiné, quando o poeta, algures em Angola, se deparava também com a contradição dos momentos que ele vivia, ou convivia, e com a vida que se ia vivendo na chamada Metrópole, quando escrevia "em Lisboa, na mesma, isto é, a vida corre!"

'Recalibrar-te'? Acho isso muito difícil, para não dizer impossível. E acho que isso não se vai aplicar à maioria dos que neste momento vão sofrendo com as consequências dos 'actos de governação'.

Abraço
Hélder S.

JD disse...

Viva Veríssimo!

Faço só uns sublinhados em citações:
- "Não convinha a muito boa gente que a guerra terminasse";
- "Comecei a conhecer os verdadeiros significados de palavras, tais como: medo... ganância... traição... demagogia... subserviência... engraxadorismo... lambe-botas".
Pois!
Também fiquei um bocado azedo, melhor, muito azedo relativamente a todos os que abusam da sociedade. Vivemos num regime de quase monarquia, com muitos filhos a rederem os pais nos lugares públicos, ou de privilégios. E a coisa assenta no ainda numeroso grupo que anda à babuge dos tubarões.
É urgente a educação cívica!
Abraços fraternos
JD

Unknown disse...

Como a nossa imaginação é fértil 40 e muitos anos depois.