quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12590: Blogoterapia (246): A Op Lança Afiada ou a Impotência da Escrita (Torcato Mendonça, ex-al mil art, CART 2339, Mansambo, 1968/69)



Foto Falanet III > Nº 55



Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O "repouso do guerreiro"... O alf mil Torcato Mendonça numa pausa de uma operação no mato, "matabichando"... Ou mais provavelmente, à espera do IN, numa das emboscadas montadas, algugures, nas encruzilhadas da morte (Foto nº 55, acima). Na foto a seguir (nº 58), percebe-se que está "bem acompanhado": (i) foto de mulher, de uma capa de revista; e (ii) a metralhadora ligeira HK 21... Fotos nº 55 e 58 da série Fotos Falantes III.

Fotos: © Torcato Mendonça (2007). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem: L.G.]


1. Texto, com data de 14 do corrnte,  do nosso camarada (e colaborador permanente daTabanca Grande) Torcato Mendonça, ex-alf mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69: 


[Foto à esquerda:  Fundão, 27/1/2007. Foto de L.G. ]

O TM é um autor, fecundo, com cerca de 220 referências no nosso blogue, com  diversas séries como: (i) Estórias de Mansambo, (ii) Estórias de Mansambo II, (iii) Pensar em Voz Alta, (iv) Nós da Memória, (v) Fotos Falantes... Disponibilizou-nos também o seu riquíssimo álbum fotográfico. Material mais do que suficiente para publicar vários livros... Um alfabravo caloroso para ele, para estes frios do Fundão... (LG)

Assunto: Tarde Fria

Meus caros,

Aí vai o resultado de uma tarde fria. Finalmente a montanha pariu um rato e o resultado é essa droga. É o que entendi escrever sobre a Lança Afiada. Não me merece mais que isso. Foi mau demais e já muito sobre essa Operação foi escrito. [Temos, no blogue, cerca de 3 dezenas de referências sobre a Op Lança Afiada]

Eventualmente e se um dia me der na bolha poderei escrever alguns "casos" passados naqueles dias.

Com o meu abraço, T.



2. Op Lança Afiada ou a Impotência da Escrita

por Torcato Mendonça


Em meados de Fevereiro de sessenta e nove, o Boeing aterrou na curta pista de Bissalanca.  Com lentidão, sem pressa alguma, desapertei o cinto a preparar a saída…

…o calor e a humidade bateram-me forte no curto percurso até á gare. Aí estava eu de novo na Guiné, terra "vermelha e ardente", para mais um período de cerca de um ano de comissão…

…em Santa Luzia, após o almoço, recebi novas da guerra: a saída de Madina do Boé e o desastre do Cheche, uma ou duas semanas antes, outros acontecimentos mais e uma informação que parecia dizer-me diretamente respeito:
- Na tua zona vão fazer, parece que brevemente, uma operação em grande. 

Pouco mais me disseram e nem era necessário.

Quando fiquei só, perante a facilidade e a ligeireza como proferiram estas informações fui levado a pensar que o IN (Inimigo – PAIGC) sabia, e certamente com pormenores, desta Operação. Tinha boa rede de informadores e descuidos como este pareciam ser frequentes. Guerra de merda,  com estas informações tão permissíveis.

… não compreendia a saída de Madina, depois da saída de Béli. Sabia como era a estrada para Madina e os ataques que este aquartelamento sofria. Só que aquela saída de Madina era o abandono do Boé e a deslocação da fronteira para a margem esquerda do Corubal – praticamente desde a entrada do rio no Território (Marco 49 – zona de Cabuca –ver Carta 1500.000 da Guiné) até, sem precisão, a zona de Contabane (Marcos 20/21).

O IN aproveitaria certamente essa tomada de posição e mais facilmente entraria no território. Preocupante.

Mas quem era eu, um simples Alferes de empréstimo àquela guerra, para me preocupar com o que Oficiais Superiores tinham discutido no conforto de seus gabinetes? Ninguém!

Dias depois, já em Mansambo, vim a saber mais pormenores sobre essa Operação:  o nome de código "Lança Afiada".

Eu, integrado no meu Grupo de Combate e na minha Companhia, participei nela.

Já muito foi escrito, aqui neste Blogue, sobre essa Operação. Pessoalmente creio já ter escrito o suficiente. Tentei, agora, escrever mais e acabei por ficar com dezenas de páginas. Preferi destruir a maioria e outras foram para o arquivo morto. 

Encerro o "Capitulo de A Guerra".

Aquela Operação acabou por me mostrar que assim devia proceder. Falar dela, da maior Operação em que participei, podia ser, em algumas partes, uma crítica injusta e ter, hoje, passados tantos anos uma visão completamente errada do que por lá, naqueles longos dias, se passou.

Um exemplo:  o não terem sido montadas emboscadas na margem direita do Corubal por tropas helitransportadas. Muito mais exemplos podiam ser aqui apresentados.

Quando a Operação terminou, tínhamos a consciência de que toda aquela zona do Leste (Xime ao Xitole pela margem esquerda do Corubal) foi completamente destruída e arrasada e todos os objetivos, previamente planeados, foram conseguidos. Cumpriu-se assim a missão. Mas para quê e com que resultado para as NT? Dizer que o IN não foi aniquilado e devia ter sido, hoje, parece violento. Teria outrora o mesmo significado?

O IN, não digo Turras porque não gosto de certas palavras –Tugas, tropa macaca, Pimbas, Caco e e vocábulos semelhantes.

Com estas limitações, há, isso sim, uma impotência da escrita. Questão subjetiva e passível de todo o contraditório ou mesmo colocar em causa alguns escritos meus. Não ponho um ponto final na escrita ou, melhor, nos escritos sobre a Comissão na Guiné. Se isso acontecer, fá-lo-ei como até aqui, em relato simples de certos acontecimentos. Nunca digas nunca,  mas parar um pouco é o melhor. Já estou nesse "estado" há muito tempo.

Para mim, bem para mim…

…a guerra não se descreve ou não tenho palavras para o fazer. A guerra são sons, gemidos, urros e gritos, cheiros, ódios, sofrimento, dor e a sua descrição se torna uma impossibilidade descritiva. Fica ainda para o fim a amizade, a camaradagem entre os militares e isso como se descreve? Difícil, eu sei.

Aquilo – o combate, o embate entre os contendores – acontece, acontece bruscamente ou com lentidão, num sim ou não que, em comum, tem sempre a brutalidade. Vai subindo de violência, envolvendo tudo e todos com os sons das granadas e tiros, de gritos e gemidos numa envolvência onde os automatismos, o treino, a brutalidade a tudo e a todos se sobrepõem. Vai lentamente parando, aquietando-se e fica o cheiro adocicado da morte, das ervas devastadas, do enxofre das granadas e os sons mudam agora e temos a libertação dos ódios, da constatação da morte e a tristeza aparece. Caso os sons sejam de risos, sim de risos, então tudo, naquele lado, está bem. Mas tudo isto não se descreve, tudo isto se sente, se entranha nos ossos, dentro dos ossos e lá fica. Quando chegam encostam-se ás anteriores memórias e aconchegam-se para darem lugar ás que aparecerão no futuro, ou não. Se não, se não houver memórias a guardar aparece certamente o riso tolo e sarcástico da morte. Essa está sempre presente na contenda e saltita, ri e chama. A morte, essa puta, se vence o momento leva a presa e ri saltitando em busca de algo mais.

Como descrever a morte ou o que há tanto tempo está tão profundamente guardado? Não, não é possível e existe sempre uma lógica retração. Descrever a morte de camaradas? Não.

Para quê então falar disso? Para quê então falar do cheiro da morte, dos sons, dos gritos, dos ódios se eles nos aparecem, felizmente hoje com menor intensidade. Vêm no sonho, num ruído estranho, no cheiro ligado á recordação de outrora. Vêm raramente mas vêm. Não as provoquemos. Que fiquem guardados, aquietados,  pois foram para isso tratados durante anos e anos. Um dia, anos atrás e de repente abriu-se o portão da memória e um novelo prenhe de nós correu veloz a desatar-se, a tentar libertar-se de algo.

Pará-lo é preciso e ele ficará aquietado.

Talvez também por respeito. Sim,  por respeito pelo portador do novelo das recordações já deturpadas, dos camaradas que já partiram, de muitos que hoje pretendem o silêncio. Mas nunca esqueças os teus camaradas, os teus companheiros ou os teus amigos africanos. Muitos andaram contigo no mato e te ajudaram e não eram "tropa macaca" e não te chamavam de "tuga". Mas ouviste chamarem-te assim,  no Galoiel ou no Poindom…apelos ou vómitos nervosos do IN…

Não vais desatar os nós, vais aquietar-te e, de quando em vez, podes, se for caso disso, desatar uma ou outra recordação alegre ou mesmo lamento ou protesto para com algum teu camarada ou o bom Povo das Tabancas…

Sobre a Lança Afiada é tudo. Há ou sinto uma libertação de nela falar (escrever). Foi violenta demais. Um dia, se houver esse dia, recordarei casos que não sejam tormentos aquietados.

Torcato Mendonça

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8 comentários:

Luís Graça disse...

Quando editei este poste, não tinha à mão as legendas das Fotos Falantes III, que eu sei que o TM me mandoui há uns anos... Vou-lhe perguntar que revista era esta que ele levava para o mato... E já agora o local da emboscada... Isto também é um teste à memória do nosso amigo e camarada do Fundão...

Torcato Mendonca disse...

Boa Tarde e que os Irãs os Protejam
Antes de responder ás questões. O Pontão do Udunduma era tão importante para a ligação Xime/Bambadinca, logo para todo o Leste que “era uma Vasco da Gama –sem Luso Ponte…”.No dia seguinte ao ataque a Bambadinca a 2339 comandada pelo seu Cap. LH saiu a 2 Grupos e um, comandado pelo C.M. dos Santos (o 3ºG. C.), foi defender a ponte e o que fosse necessário.Era Tropa de Mansambo (2339) porra! Época de chuvas e o “céu” a proteger…ele já disso falou e mandou agora uma mensagem. Foi muito violento para os primeiros que para lá foram. O outro fez o que tinha que ser feito (Nabijões), o meu o 2º, e regressou a Mansambo.
Os Picadores eram civis, os Milicias não eram carne nem peixe. Morreu um Picador o Kampini e deixou viúva e um bébe…com quanto teria o nosso primeiro e a CART claro comparticipado? Nada mais digo.Grandes Milicia e alguns grandes combatentes. Ainda os militares dos Pel Caç...diferente e, os C.Caç... Por ultimo e quanto ás fotos… não sei das legendas. Era um “descanso” qualquer e muitíssimo calmo e descontraído, armas encostadas, roupa e atavio muito bonito... Eu assinava, e continuei, A Vida Mundial.Tenho ali meia dúzia de capas com muitas Vidas lá dentro. Recebia lá n "revistas" …em Out/69 Eleições á vista e as inf. lá apareciam…A “foto” era a mais próxima que encontrei da minha …desse tempo. Tenho dito e já pequei por excesso. Ab, T. (davam algumas estórias)

Torcato Mendonca disse...

Luís, faltou-me recordar com saudade o meu amigo Seco Camará. Fizemos algumas Operações juntos. Ele estava na guerra desde inicio e mais de cinquenta minas detectadas. Soube da sua morte por um Furriel amigo da,salvo erro, 2715 do Xime. Nas operações trocava, se tivesse claro, as latas de sardinha ou cavala pelas de polvo do Seco. Rabo de rato dizia ele brrrr. O meu abraço Seco e a todos os que comigo andaram e se foram.
E não saio desta merda de guerra porra.
Ab,T.

Juvenal Amado disse...

Torcato

O sofrimento que se cala.
As memórias que não se apagam. Porque voltas lá?
É superior às intenções de finalmente fechar a porta, sem que abra uma janela.
A memória é um franco atirador, quando menos se espera ela aí está emboscada, revivendo e ganhando vida própria.
Eu gosto do que escreves, espero sempre pelo o escreves, não pares de nos encantar e sobretudo não deixes no esquecimento o que se passou e os que contigo sofreram, ou beberam uma cerveja, porque isso é celebrar a vida e honrar os que ficaram pelo caminho.

Pacientemente espero sempre pelo o que nos contas, desencantado ou não.

Um abraço

Luís Dias disse...

Caro Torcato

Que ao fim de todos estes anos, continuemos a passar revista a um passado que muitos querem esquecer e não conseguem, que hoje conseguimos, com a distância própria da história, reflectir,discorrer, mesmo tacticamente, nos diversos enlaces e nuances dos esquemas operacionais montados em gabinetes, que aqueles que tinham de os efectuar no terreno se espantavam de tamanha "sabedoria" e como, na maior parte das vezes,os tais "pensantes" desconheciam verdadeiramente o terreno que tínhamos de pisar e ficávamos nós, que da guerra só percebíamos o cansaço e o sangue perdido,sem perceber qual o alcance e o fim para tal e tal operação. Raio de tempo perdido na nossa mocidade, nos nossos melhores anos. E pensamos: "e aqueles que ali esgotaram o seu sangue, que deram a sua última respiração, que nunca mais viram os seus entes queridos....!". Que tempos aqueles, caro amigo, que nos marcaram até ao fim dos nossos dias.
Um abraço camarada.
Luís Dias

Anónimo disse...

Caro Torcato:
Aquele lento desapertar do cinto diz tudo: quem tem pressa para retomar o sofrimento, o calor, o pó ou a lama ? quem tem pressa para sentir o suor frio e a morte escondida no capim ou na mata cerrada? quem tem pressa para calcar picadas e carreiros traiçoeiros onde cada passo pode ser o último?
Era o regresso à guerra, ao mato, e para trás ficava o lar, os pais, os avós, os irmãos e todas as doçuras. A guerra é estúpida.
No dia 10 de Julho de 1972, em Bolama, tínhamos apenas 13 dias de Guiné e só 21 anos de idade, morrem-nos dois ali mesmo ao nosso lado ...horrível, dolorosíssimo vê-los ali, sem parte dos seus corpos que segundos antes se mostravam vigorosos e cheios de esperança num futuro que lhes pertencia por inteiro. Dia 28 do mesmo mês de Julho, em Buba, outro jovem de 21 anos, agoniza enquanto espera por uma avioneta ou hélio que nunca mais chegam...uma noite inteira de gemidos à espera que chegue a luz do dia e o transporte para o hospital...onde morre no dia seguinte. Dia 21 de Março de 1973, na zona de Colibuia, um rebentamento, uma nuvem de poeira, o corpo do Albuquerque agora já sem um pé... as lágrimas que rolam na sua face enegrecida pela explosão...a sua morte já no Hospital de Bissau...com 21 anos.
Tudo por nada e para nada. Gastando lá muito menos dinheiro e sem perda de vidas, teríamos feito muito mais estradas, pontes, escolas, hospitais e fábricas, para bem daqueles povos.
Carvalho de Mampatá.

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caros camaradas e amigos

Como diz o Carvalho de Mampatá no seu comentáro,"a guerra é estúpida"; Eu acrescento: - È um caminho de loucura, um labirinto sem fim, em espiral, que projecta para o abismo, embrutece, desumanisa, petrifica...destroi.

- Mas há os sobreviventes!... Os que saíram dela com vida, com consciência e tomam a vida que lhes resta, como um dom, que é necessário cuidar, perservar, enaltecer, saborear, celebrar;
No ar que se respira, na luz que inebria, nos horizontes que a vista e o espírito alcançam, na beleza que nos envolve e encanta, em todas as artes, nas pessoas, da criança mais frágil ao ancião mais sábio. E acima de tudo, nas amizades que vivemos no seio daqueles que amamos e por quem somos amados.
Deste modo, vamos em frente, ultrapassando obstáculos e contrariedades, alcançando a Vida e a Paz.

Um forte abraço camaradas, hoje especial para o Torcato Mendonça.
JLFernandes

Hélder Valério disse...

Caros camaradas
Caro Torcato

Só posso respeitar os teus sentimentos e as tuas decisões.
Sei, tens dito e escrito, que certas lembranças são (ainda) dolorosas e que por tal não é agradável (nunca seria) remexer no passado que se cruza com essas situações.

Mas faz o que dizes: comenta, completa as informações, esclarece o que for preciso, quando se justificar, acrescenta memória às memórias.

Um forte abraço
Hélder S.