Guiné > Bissau > Cumeré > 1/1/1972 > Passagem de ano > "À frente o alferes que nos abandonou e, primeiro da última fila [, do lado esquerdo, de pé], o capitão que também se foi" (sic)...
Legenda complementar [RB]: Em primeiro plano temos o Ferreira, e de baixo para cima da esquerda para a direita, estão o Gaspar, Baptista, Correia, Grosso, Jacinto, Oliveira, Piedade e o Sá; mais acima estão o Rodrigo Oliveira e o Silva, por cima estão o Guarda, ao lado com a garrafa e o outro a seguir me recordo dos nomes, Conde, Romana, depois temos o Figueiredo, Andrade, o outro Silva e o Bidarra.
Foto (e legenda): © Rui Baptista (2009) Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].
1. Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (14): A maldição de Cancolim e a CCAÇ 3489 que teve dois casos (o capitão e um alferes) de "abandono" das nossas fileiras (no período de férias) e um de "deserção" para as fileiras do IN.
Há uma maldição de
Cancolim ? Há uma maldição do
Saltinho / Quirafo ? Há uma maldição do
Xime / Ponta do Inglês ? Há uma maldição de
Bajocunda / Copá ? .... De Canquefilá ? De Buruntuma ? De Cheche / Madina do Boé ?...
Há uma maldição do Leste, com a escalada da guerra no
chão fula (atuais regiões de Bafatá e de Gabu), que se acentua a partir de 1969, e de que muitos de nós fomos observadores, testemunhas, atores, vítimas…
Por exemplo, João Amado, natural de Carvide, concelho de Leiria, sold aux cozinheiro, nº 03858869, CCAÇ 3489 / BCAÇ 3872, morto em 2/3/1972, no ataque a Cancolim. (Está sepultado em Vieira de Leiria, concelho de Marinha Grande.). Ou Rui Baptista, ex-fur mil da mesma subnidade, felizmente vivo, residente em Póvoa de Santo Adrião, nosso grã-tabanqueiro (desde 9/12/2009) , que pertencia ao 2º pelotão, "Os Vingadores (e que ficou sem comandante, o alf mil Rosa Santos, transferido "para as tropas africanas"). Ou o Zé António Rodrigues, recentemente falecido, que foi "prisioneiro de guerra", mas antes foi acusado de "deserção"...
Mp nosso blogue, temos cerca de três dezenas e meia de referências a Cancolim e menos de metade à
CCAÇ 3489 (Cancolim, 1971/74).
Mobilizada pelo RI 2, a CCAÇ 3489 partiu para a Guiné em 18/12/1971 no T/T Angra de Heroísmo e regressou em 28/3/1974 no T/T Niassa, tendo chegado a Lisboa em 4 de abril desse ano, a escassas 3 semanas do 25 de abril de 1974.
A CCAÇ 3489 esteve em Cancolim. Comandantes: cap mil Manuel António da Silva Guarda; e cap mil inf José Francisco Rosa. Pertencia ao BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74), comandado pelo ten cor inf José de Castro e Lemos. Faziam ainda parte deste batalhão, a CCAÇ 3490 (Saltinho; comandante: cap mil inf Dário Manuel de Jesus Lourenço) e CCAÇ 3491 (Dulombi, Galomaro, cap mil art Fernando de Jesus Pires).
O Rui Baptista é membro da nossa Tabanca Grande , desde 3/12/2009. Recorde-se como ele se nos apresentou:
(…) “Nesse espaço de tempo que permaneci na Guiné (27 meses e alguns dias), sempre em Cancolim (há que retirar o tempo do IAO no Cumeré, duas viagens de férias a Lisboa e dois internamentos no Hospital Militar em Bissau), aconteceram coisas que jamais poderei esquecer” (…)
A "maldição de Cancolim" (o termo é nosso) percebe-se agora melhor, quando o Rui diz:
“A CCaç 3489 não teve muita sorte durante a comissão, principalmente nos primeiros meses. Logo no início em Cancolim em três quintas-feiras seguidas tivemos 4 mortos e 21 feridos”:
(i) Um morto e um ferido numa mina na picada entre Cancolim e o destacamento de Sangue Cabomba;
(ii) 16 feridos ligeiros num despiste de uma viatura a caminho de Bafatá;
(iiii) e mais 3 mortos e 4 feridos na primeira flagelação do IN ao aquartelamento , em 2/3/1972.
E conta um detalhe biográfico do seu verdadeiro baptismo de fogo:
“Neste primeiro ataque tive a sorte de um ex-furriel dos velhinhos me ter empurrado para dentro da porta da secretaria; ele, com esse gesto, acabou por ser ferido numa vista por um estilhaço de uma granada de morteiro 82 e eu escapei ileso”…
Não menos grave, ou talvez ainda muito pior para o moral da tropa, foi o que se seguiu:
(...) "Tivemos o abandono do capitão e de um alferes, e a partida forçada para as tropas africanas do alferes Rosa Santos do meu pelotão”...
Repare-se que o Rui nunca fala em “deserção” (por pudor, por tabu, por respeito, por desconforto ?…) mas em “abandono” (sic)… Presume-se que os dois oficiais, milicianos, tenham "desertado" (é o termo técnica e juridicamente apropriado) durante as férias na metrópole, com menos de meio ano de comissão, portanto no verão de 1972…
A maldição continuou:
“Como o IN não nos dava tréguas, e com o pouco material de guerra que tínhamos para nos defender (na altura apenas um morteiro 81), com o assalto pelo IN ao nosso destacamento e a captura de 2 homens nossos, a fuga de um soldado para o IN, juntamente com as notícias de mortos no Saltinho [em Quirafo, em 14 de Abril de 1972,] e emboscadas no Dulombi, o desânimo instalou-se nas nossas tropas”.
"A fuga de um soldado para o IN" ? A confirmar-se seria uma terceira "deserção", o que é muito para uma companhia só, depois de um capitão e de um alferes...
E prossegue o nosso camarada Rui:
“Com a substituição do capitão e dos alferes, acabamos por não ter um comando à altura de nos elevar o moral, passámos por um período do quase salve-se quem puder. Valeu-nos o reforço de um pelotão do Dulombi e a visita de alguns Páras [, do BCP 12,] para as coisas acalmarem em Cancolim”.
Mas a maldição não acaba aqui…
“O resto da comissão, principalmente os últimos 7 ou 8 meses de 1973, foi bem mais calmo. O último ataque a Cancolim foi em 20 de janeiro de 1974, nesse dia o IN veio de manhã quase junto ao arame, apesar de muitos de nós andarem a jogar futebol, conseguimos fazer com que batessem em retirada deixando um morto no terreno.
Antes disso, ainda houve duas visitas (forçadas) do Rui ao HM 241, em Bissau, a última das quais por ferimentos graves na sequência de rebentamento de mina A/C que tinha, ao que parece, "código postal errado" (*)
No meio de tanta desgraça, desânimo e desnorte, ainda rapaziada de Cancolim conseguiu dar provas de resiliência ao stresse físico e psicológico (exemplificada em brincadeiras, jogos, atividades lúdicas, etc.), capacidade essa que todos nós, combatentes no TO da Guiné, tivémos que saber desenvolver para sobreviver...
2. Quanto ao "abandono" ou "deserção" das fileiras, por parte de 3 militares da companhia...
A deserção, tal como o suicídio, pode ser contagiante, sobretudo quando o nosso chefe ou líder dá o exemplo... Há famílias "suicidárias", como pode haver unidades militares com tendências para a deserção, em todas as épocas, em todos os exércitos...
Isso aconteceu, infelizmente, em alguns casos (seguramente raros) no TO da Guiné, durante a "nossa guerra" (1961/74). Um deles pode ter sido o da CCAÇ 3489...
O pobre
José António Almeida Rodrigues (1950-2016), ex-sold inf, foi para a cova, ainda recentemente, e a terra foi-lhe, certamente, mais pesada do que a outros camaradas , pela terrível "suspeição de deserção" que carregou toda a vida...
Dos outros dois antigos militares não falamos, presumindo nós que estão vivos e que têm direito à reserva de intimidade (o ex-capitão sabemos que sim, que está vivo): só eles sabem por que razão "abandonaram" os seus homens, no verão de 1972... e só eles podem, em consciência, dar ainda, em público, mesmo que tardiamente, uma justificação para uma decisão que não terá sido tomada de ânimo leve. (Julgamos que, no final das férias de 1972, e a partir do momento em que ficaram sob a alçada da justiça militar, pelo "crime de deserção", terão saído do país, não sabemos se de maneira concertada, ou cada um por seu lado, e por sua conta e risco, nem para onde, nem como...).
Até há pouco, quando o caso do Zé António Rodrigues veio à baila no nosso blogue, justamente por ocasião da sua morte, estava ainda muito arreigada na memória do pessoal da CCAÇ 3489 a imagem (estereotipada e injusta) do Rodrigues como "desertor" e, pior ainda, "traidor".
O Rodrigues tinha um "comportamento antisssocial", era agressivo, imprevisível, indisciplinado, "bicho do mato", dizia-se... Ninguém tinha mão nele... A verdade é que o pelotão dele ficou sem alferes, logo cedo, quando este "não regressou de férias", na metrópole, tal como o capitão!...
O Rodrigues dava-se ao luxo de sair a seu bel prazer, para ir caçar, sozinho, ou com os caçadores da tabanca...
Enfim, Cancolim parecia andar sem rei nem roque...
O camarada Rui Silva, ex-furriel e nosso grã-tabanqueiro, disse-nos, ao telefone, que a maior parte da malta estava convencida que ele, Rodrigues, se tinha "passado para o inimigo". Durante as 24 horas do seu desaparecimento, andaram atrás do seu rasto até ao rio Corubal. Encontraram munições (de G3), abandonadas, e que seriam presumivelmente dele... Logo a seguir o destacamento de Sangue Cabomba foi atacado (tal como Cancolim)...
Há quem "visse" o Rodrigues no meio dos "turras", a orientar o ataque a Sangue Cabomba!!!...
Crucificaram o Zé Rodrigues em vida!... A malta nunca lhe perdoaria a alegada "traição"!... E nunca fizeram questão de o procurar nem ele procurou os seus antigos camaradas, na metrópole!... Em Bissau, quando esteve preso por "suspeita de deserção" (sic), o 2º comandante do batalhão terá falado com ele...Ele sempre se terá defendido dizendo que tinha sido feito prisioneiro pelo PAIGC (e tratado como tal)...
O
António Batista, grã-tabanqueiro, da CCAÇ 3490, que infelizmente já também não está aqui entre nós, tendo morrido no mesmo dia do Zé António (!), deixou-os um testemunho em vídeo, e disse-nos, por mais de uma vez, que o Rodrigues levava porrada dos carcereiros...
Nunca teve nenhum "tratamento VIP" como desertor... E aliciou o Batista para fugir com ele, em março de 1974...
Recorde-se que ambos foram companheiros de infortúnio, no cativeiro, em Conacri e no Boé (entre 1972 e 1974) ... O António da Silva Batista esteve preso desde abril de 1972 até ao fim da guerra. O Zé Rodrigues, aprisionado em julho de 1972, acabou por fugir dos seus captores, em março de 1974, e ensaiar uma heróica fuga, andando 9 dias ao longo das margens do Rio Corubal até chegar ao Saltinho...
Fizemos questão de reparar esta injustiça, no nosso blogue, embora tardiamente... O Zé António nunca teve oportunidade de se defender em vida!... E só conheceu a miséria, a infelicidade, a doença e a solidão. Está morto e enterrado!... Mas, apesar dessa vida de miséria, ele também conheceu em fim de vida a compaixão humana, a solidariedade e a camaradagem...
Entrou para a nossa Tabanca Grande, a título póstumo, por proposta do Zé Manuel Lopes, seu vizinho da Régua. (**)
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Notas do editor:
(**) Último poste da série > 17 de março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1606: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (13): Jorge Cabral
(...) Há quarenta anos nós, jovens, optámos. Informados ou desinformados, fomos e lá estivemos. Partilhámos medos, sofrimentos, tristezas, alegrias.
Hoje resta-nos a memória desses tempos. E é essa memória corporizada na Tertúlia, que nos une.
A Tertúlia é, e deve continuar a ser, um Fórum de Camaradas, que em pé de igualdade, informam, relatam e recordam.
Quantos desertaram na Guiné? Porquê? Que fizeram depois? Deram informações?
Colaboraram com o Inimigo? Desconheço, mas não lhes atiro pedras. Não me peçam, porém, para os enaltecer, glorificar ou incensar. (...)