segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24740: Notas de leitura (1623): "Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril)", por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Ensaio de referência, este "Os Desastres da Guerra", graças a uma metodologia altamente afinada, permitem ao leitor menos iniciado não só acompanhar o início da guerra colonial pelas revoltas de Angola, temos aqui um excelente enquadramento da alvorada dos nacionalismos africanos, no texto anterior falou-se igualmente da rebelião da Baixa do Cassange, aqui se registam os assaltos às prisões de Luanda e a insurreição de 15 de março, e o caos sangrento que acompanhou toda esta tragédia. Falta-nos ainda descrever, aproveitando este ensaio tão rigoroso quais as organizações dos colonos e dos nacionalistas, a atenção dirige-se depois para o Palácio do Vidro em Nova Iorque, onde se cresce de tom a crítica ao colonialismo português, teremos entre nós uma campanha anti-americana, o presidente Kennedy é favorável à independência das nossas colónias e o Estado Novo vai emergir para o confronto depois de a Abrilada, assim se abre o cenário para uma guerra total em Angola, Guiné e Moçambique. É uma leitura imperdível.

Um abraço do
Mário



O início da guerra em Angola, os três primeiros meses (2):
Uma surpreendente obra de referência sobre a génese da convulsão anticolonial


Mário Beja Santos

Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril) por Valentim Alexandre, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021, marca o regresso de Valentim Alexandre à história colonial, de que possuí extenso e brilhante currículo, ainda há escassos anos nos ofereceu outra obra de referência, Contra o Vento – Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960), também publicado em Temas e Debates/Círculo de Leitores, que pode ser encarada como a primeira peça de algo que se afigura vir a ganhar corpo como a História da Guerra Colonial (1961-1975), empreendimento de grande dimensão, que até hoje nenhum investigador nem nenhuma equipa se acometeu, tal a grandeza da tarefa e o distanciamento que impõe.

Estamos agora em fevereiro de 1961, data dos assaltos às prisões de Luanda. O assalto deu-se de 3 para 4 de abril pela madrugada, os autóctones vinham armados de catanas, morreram cinco guardas brancos e houve feridos. As prisões visadas eram as seguintes: a Casa de Reclusão Militar, a Cadeia de São Paulo e a 4.ª Esquadra da Polícia de Segurança Pública. Segundo as informações oficiais internas, para além dos cinco guardas brancos mortos também um cipaio e um Cabo do Exército também tinham morrido. O objetivo da rebelião era limitado, o de libertar os numerosos presos então encarcerados nas cadeias de Luanda. Vivia-se um ambiente de extrema tensão social, os patriotas angolanos não escondiam o seu descontentamento com tão elevado número de prisões, o próprio diretor da PIDE em Angola enviara um ofício secreto ao Ministério do Ultramar a 10 de janeiro referindo o crescente número de presos acusados de crimes contra a segurança do Estado e dizia abertamente haver “estado latente de revolta generalizada”. Tal como na revolta da baixa de Cassange também por aqui andou feitiçaria e magia.

Realizaram-se os funerais dos agentes da ordem e ia iniciar-se um período de retaliações. Em documentação de caráter secreto da administração portuguesa fazia-se notar que não aparecera qualquer arma em mão dos indígenas, era de supor que não estavam armados. À saída do cemitério começou a perseguição de africanos e a sua morte, polícia e tropa irão conjuntamente com civis munidos de barras de ferro aos musseques de Luanda, haverá dezenas de mortos, uma centena de prisões e computava-se entre 700 a 800 os amotinadores detidos. O autor dá-nos a versão oficial expandida e concluí: “Não há, na documentação da época, nenhum indício credível de que os assaltos às prisões de Luanda, em fevereiro de 1961, tenham resultado de diretrizes emanadas do MPLA e da UPA – o que não significa que militantes de qualquer destas organizações não tenham neles participado, ajudando a dar corpo a um movimento espontâneo e multifacetado de revolta da população africana de Luanda”.

Passa-se agora para a insurreição de 15 de março. As autoridades militares procuravam fazer a reavaliação dos perigos que os ameaçavam, era suposto novos assaltos em Luanda, ao Paiol, a casas comerciais ou civis e num conjunto alargado de centros urbanos, greves, etc. Não se dava qualquer relevo ao Norte de Angola. Aliás, ainda se considerava que a situação estava tranquila em Moçambique e quanto à Guiné aludia-se a atividades dos elementos separatistas e escrevia-se mesmo: “A situação na Guiné é alarmante e esta Província pode ser o próximo objectivo dos nossos inimigos”, e a fonte não era despicienda, vinha do gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar.

A insurreição armada desencadeia-se da noite de 14 para 15 de março, logo se registou a morte de cerca de 70 europeus, muitos feridos brancos como negros, eram múltiplos os locais atacados, muitas plantações ficaram completamente destruídas e as ações terroristas de maior violência localizaram-se na região de Nambuangongo. Era insurreição e pânico. No dia 19 era possível confinar a sublevação a leste pela linha Maquela do Zombo-Carmona, Quitexe-Quieulungo e um limite a oeste definido pela linha São Salvador-Bembe-Nambuangongo e Quibaxe, mas havia ainda outros focos de tormenta.

O autor encontrou no Arquivo Salazar um documento que dá conta das características gerais do movimento: rapidez fulminante dos ataques, iniciados ao amanhecer, à hora do início dos trabalhos nas fazendas; a simultaneidade da ação em locais distanciados de centenas de quilómetros; violência e ferocidade dos processos usados; barbaridades cometidas contra brancos, mestiços e pretos; massas indígenas completamente fanatizadas; pânico das populações brancas; comportamento dos trabalhadores bailundos na resistência aos terroristas.

A operação foi conduzida pela UPA, os seus órgãos dirigentes acabaram por assumir a paternidade de 15 de março, que explode na imprensa mundial dois dias depois. Holden Roberto negou inicialmente a participação da UPA, mas tudo veio mais tarde a esclarecer-se quanto às responsabilidades deste partido, mesmo que ele venha a dizer que se tratava de um movimento espontâneo. Por detrás do cérebro de Holden Roberto estava um ideólogo, Franz Fanon que era favorável ao terror puro, considerava que era assim que o colonialismo se sentiria intimidado e disposto a negociar a independência dos povos.

Valentim Alexandre dá conta das raízes da revolta e de como o Estado Novo vai criar os seus mantras e a palavras de ordem, atacando o comunismo, a conspiração internacional, a civilização ocidental estaria em perigo se todas aquelas atrocidades não fossem contrariadas, procurava-se iludir a gravidade da situação, o trabalho forçado e a exploração indígena. O autor lembra que as extensões sociais nascidas do incremento da cultura do café no Norte de Angola não eram desconhecidas das autoridades coloniais portuguesas, havia relatórios confidenciais das missões de estudo efetuadas em 1956 e 1957, ali se explicava claramente as razões do profundo descontentamento, para já não falar em revoltas anteriores nos Dembos.

No relatório de um inspetor de trabalho também se dizia claramente que “O preto está à margem, e esquiva-se. Não saúda a autoridade que passa, fecha a porta da palhota à aproximação de carros”. Também não se pode abstrair da situação política do Congo Belga na sua marcha acelerada para a independência. Havia mais de 100 mil angolanos (bacongos, na sua esmagadora maioria) no Congo Belga. O governador do distrito do Congo, Hélio Felgas, insistirá que foram esses indivíduos vindos do Congo Belga que tinham revoltado os nossos indígenas. E instala-se um caos sangrento, como o autor escreve: “Os massacres praticados no Norte de Angola provocaram um número de vítimas até hoje não determinado com precisão. Do lado português, numa primeira fase, falou-se em 16 mortos (isto a 17 de março), depois em 164 (a 28 do mesmo mês) e em 267, para além de 72 desaparecidos, a 22 de abril, não sendo seguro se estão abrangidos apenas os europeus ou se se incluem também os africanos assassinados, bailundos na grande maioria”.

Aventam-se vários números, mas nada seguro. Aos milhares, os refugiados chegam a Luanda, e dá-se uma resposta militar, cujos números e atividades o autor vai descrever com bastante detalhe, incluindo informações sobre o equipamento português existente e o que iria ser comprado. Nota igualmente que num primeiro momento as chefias militares em Angola tiveram dificuldades em aperceber-se do que realmente se passava no terreno. Formaram-se milícias no Norte de Angola, os civis armados patrulhavam o terreno, há bastantes relatos sobre tudo quanto se vai passar, os colonos soldaram catanas em tubos de ferros galvanizados, houve mesmo metralhadoras ligeiras, armas de caça, tudo servia. E houve as prisões em massa, para além das ações repressivas da milícia, as autoridades tradicionais não escaparam, os colonos manifestamente hostis às coberturas de televisão, instalou-se uma grande tensão entre a administração e os colonos, dá-se conta de como funcionaram as milícias em Luanda, no Centro e no Sul de Angola, a PIDE está ativíssima, procede à prisão de sacerdotes negros e mestiços.

E os membros das missões protestantes viveram uma situação mais grave que os “assimilados” católicos. “Não há indícios seguros de que a campanha antiprotestante desencadeada na imprensa africana, com reflexos na da metrópole, fosse instigada pelo governo do território e pelo poder central. Mas o simples facto de a Censura a permitir é um sinal certo de que esse tema não desagradava as autoridades portuguesas. Essa campanha inseria-se, de forma mais ou menos consciente, no processo de criação de um bode expiatório para os acontecimentos de Angola – processo que, no campo ideológico, preenchia o vazio provocado pela falência das explicações oficiais dadas para a revolta, tendendo-se a atribui-la a uma simples ação conduzida do exterior, de inspiração comunista; em Angola, tornara-se por demais evidente que uma parte importante da população africana do Norte do território aderia a rebelião; e não se mostrava possível encontrar uma relação entre qualquer organização comunista e os acontecimentos. Negando-se a enfrentar a realidade – que punha em causa o poder colonial e os seus mecanismos, restava às autoridades e aos próprios colonos encontrar um bode expiatório a quem responsabilizar pela desordem que sacudia e abalava a sociedade angolana”.

Foi extremamente violenta a campanha antiprotestante, tudo se vai agravando no Norte, cresce o espectro do êxodo das populações brancas e chega agora o momento do autor se pronunciar sobre as movimentações políticas em Angola, desde os colonos aos nacionalistas, e depois vamos ver as repercussões que estas sublevações irão ter na política interna portuguesa.

(continua)


Guerrilheiros da UPA, na região do Dembos. Imagem da FNLA
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24731: Notas de leitura (1622): "Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril)", por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021 (1) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

João Carlos Abreu dos Santos disse...

... Manuel Valentim Franco Alexandre (nasc. 09Abr1942 em Lisboa): em 12Mai1962, sendo estudante universitário, foi pela 1ª vez detido pela PIDE em consequência de arruaças no 'campus' do Campo Grande; em Dez1964 volta a ser detido (com outros oito estudantes contestários da "guerra colonial"); em 1967 conclui na Universidade de Coimbra a licenciatura em Direito; em 29Ago1969 ingressa como cadete no curso de técnicos especialistas da Escola Naval, findo o qual promovido a 2Tn TE/RN seguiu para a Província Ultramarina da Guiné, colocado no ComDefMarG; e em Abr1972 passou à situação de licenciado. Quanto ao seu afã "anticolonialista": é vasta e muito conhecica a bibliografia daquele indivíduo que, desde 1979, com conhecidos apoios de sectores oriundos do PREC, tem publicado sempre com o mesmo propósito doutrinário.
É pois, rotundamente FALSA a sua alegada "currícula antifascista", segundo a qual «passou três vezes pela prisão, foi mobilizado para a Guerra Colonial, desertou e exilou-se na Suíça».
* [escrito em 13Set2021]

... não querendo ser 'desmancha-prazeres', o mencionado "autor" é um (meu) velho conhecido nas lides da passadista historiografia antisalazarista, anticolonialista & outras coisas "anti". P.ex, leia-se ou releia-se "Origens do Colonialismo Português Moderno - vol.III" (Sá da Costa, 1979), daquele mesmo autor. Formado (ou deformado?) na perspectiva do materialismo histórico, tão caro aos marxistas da velha guarda "antifascista" que moem e remoem contra a missão que ao Povo Português coube realizar no Além-Mar, aquele "jubilado investigador" do ICS/UL, para melhor entendimento do 'who's who', está mais ou menos aparentado com o endoutrinamento que FRosas e comandita produziu por meio do 'campus'. Por minha parte, tal recente título nem me vai merecer pecúlio na aquisição e como tal motiva-me desinteresse em sinopses ou recensões: é mais do mesmo, do que antes e pós-25A tem vindo a ser servido, requentado, "ao povo". Aliás, quer o título, qb derrorista, quer o subtítulo, a ninguém pretendem enganar.
* [escrito em 13Set2021]

... sobre a epigrafada janela temporal "1961-Janeiro a Abril": para quem tenha paciência de (me) ler, seguem-se ligações electrónicas para dois documentos em formato pdf, os quais desde há mais de dez anos estão disponíveis à borla e 'online', nos seguintes sítios >
https://ultramar.terraweb.biz/AbreudosSantos/Rumores_de_Guerra_Cassanje-e-Luanda.pdf
e
https://ultramar.terraweb.biz/AbreudosSantos/Rumores_de_Guerra_nos_Dembos.pdf

Com os melhores cumprimentos, de um não-académico "que fez a tropa no Ultramar".
* [escrito em 13Set2021]

Antº Rosinha disse...

(…os autóctones vinham armados de catanas,)

No dia 4 de Fevereiro de 1961, no assalto à casa de reclusão de Luanda, os autóctones nem de catanas precisavam, tal a negligente segurança folclórica, que eu próprio pratiquei como cabo milº uns meses antes desse 4 de fevereiro de 61.

Também eram autóctones os oito soldados I, que diariamente os cabos milº ou furrieis, comandavam até a casa da reclusão onde havia uma guarita onde ficava um desses soldados de plantão.

Essa guarda era substituida as 9 da manhã.

Havia um primeiro sargento apenas burocrático ajudado por um primeiro cabo, que foi esse que morreu que o autor menciona.

Eu conheci esse cabo com uma história interessante pois já havia sido preso nessa prisão por abusar de uma menina, e depois de cumprir o castigo meteu o chico e continuou a servir ali na reclusão.

Era de incorporação angolana, mas penso que não seria autóctone.

E se nesse dia fizéssemos os caixotes (os brancos de Angola)? Quando ainda ninguém conhecia ninguém.

Não sabia da morte do cipaio, logicamente autóctone


Valdemar Silva disse...

Esta é das boas
Um comunicado oficial do Governo-Geral de Angola informava
"O Governo-Geral de Angola tem recebido, nestes últimos dias, informações vindas do estrangeiro dizendo que se preparava uma alteração da ordem pública em Angola."

Quer dizer que as autoridades só tiveram conhecimento por informações recebidas do estrangeiro. Pudera, podiam ter arranjado uns "chegados de fresco" a entrar na alteração para assim terem conhecido o assunto.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Valdemar Silva disse...

( outros "chegados de fresco" misturaram-se por a rua estar aberta ao povo)

Biografia
Valentim Alexandre nasceu em Lisboa, a 9 de abril de 1942. É licenciado em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1967) e doutorado em História Política e Institucional, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (1989). É investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, desde 1994, investigador jubilado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, é autor de várias publicações, desde artigos de jornal, capítulos e obras completas, a recensões e artigos científicos. Os temas centrais da sua análise dizem respeito à história colonial e às relações externas portuguesas, com enfoque nos séculos XIX e XX.
De entre os livros publicados, elencam-se: Os Sentidos do Império - Questão Nacional e Questão Colonial na Crise do Antigo Regime Português (Porto, Afrontamento, 1993); O Império Africano, 1825 - 1890 (coordenador, com Jill Dias), (Lisboa, Editorial Estampa, 1998); Velho Brasil, Novas Áfricas-Portugal e o Império, 1808 - 1975 (Porto, Afrontamento, 2000); O Roubo das Almas - Salazar, a Igreja e os Totalitarismos,1930-1939 (Lisboa, Dom Quixote, 2006); e A Questão Colonial no Parlamento, 1821 - 1910 (Lisboa, Assembleia da República e Dom Quixote, 2008). Em 2017, publicou na Temas e Debates Contra o Vento - Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960).

Este homem fez parte das lutas de estudantes de 1962 contra a ditadura salazarista, como Salgado Zenha e Jorge Sampaio, que foram presos e tratados de arruaceiros pela PIDE.

Valdemar Queiroz