
Queridos amigos,
Confiro a este artigo uma grande importância, o investigador compulsa documentação que lhe permite dizer com total frontalidade que naquelas décadas de 1910 e 1920 a Guiné era, quanto muito, uma colónia embrionária onde, como se pode verificar no presente texto, e tudo devido a um sindicância às alfândegas, reconhecia-se a existência de redes de compadrio entre naturais e cabo-verdianos, a que não faltava apoio a comerciantes naturais e estrangeiros. Volta a falar-se na Liga Guineense, ainda hoje uma questão indecifrável desde a alvorada da I República na colónia. Tenho agora a informar o leitor que vou suspender temporariamente esta secção, já devia ter concluído a organização do II volume da obra Guiné, Bilhete de Identidade, ainda ando aos papéis, é um tormento a organização de tanta papelada e pretendo entregar no editor o volume antes das férias grandes. Caminho para os 80 anos, vou perdendo elasticidade, acresce que tenho ultimamente recebido solicitações e infelizmente nem a todas tenho a coragem de dizer não. Peço desculpa ao Philip Havik, que tem sido prestimoso nas sugestões que me dá sobre os seus trabalhos, asseguro ao leitor que não deixarei cair esta secção, poucos são os historiadores com o talento de Philip Havik.
Um abraço do
Mário
Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
As turbulentas duas primeiras décadas na Guiné, ainda é difícil falar dela como colónia (6) – 2
Mário Beja Santos
Um dos aspetos que mais me impressiona neste ensaio de Philip Havik é a frontalidade com que o investigador aborda a questão racial, permanentemente encapotada, inclusive nos relatórios dos governadores, convinha dar-se uma imagem de grande sossego interétnico (isto depois de 1936, após a campanha de Canhabaque, como que por magia tinham sido neutralizadas todas as tensões, aceite o colonizador e enterrados os machados de guerra). E mesmo depois da independência, permanece adormecida ou silenciada a questão cabo-verdiana. Referiu-se no texto anterior que o chefe do Círculo Aduaneiro da Guiné, César Correia Pinto, era descrito como um cabo-verdiano que se comprazia em aviltar o funcionário que não era da sua cor ou raça. Mesmo depois da reorganização das alfândegas, em 1913, muito pouca coisa mudou, demorou anos a que fosse nomeado um novo administrador. Com efeito, no ano a seguir à ocupação efetiva do território continental, em 1915, o Conselho Colonial ainda estava a apreciar o caso.
Instaurou-se um novo inquérito, desta vez em forma de sindicância, há repartição das Alfândegas da Guiné. No seu relatório, o sindicante critica duramente o diretor das Alfândegas da Guiné, que identifica como um preto e um indígena, irá centrar as suas conclusões nas questões raciais:
“Afirmo sem a menor dificuldade que me era profundamente desagradável ver um preto no lugar de chefe de serviço e de um serviço daquela natureza em que tem de lidar com numerosos brancos de categoria e um número dos quais estrangeiros, alguns cônsules de várias nações. E não é só isso: na sua qualidade de chefe de serviço tem superioridade sobre brancos, quando os haja no quadro, e pior de tudo, tem a autoridade de infligir-lhes castigos! É tudo o que há de mais deprimente para a raça branca e para nós europeus, os descobridores e conquistadores desta como doutras colónias (...). A história diz que (os pretos) são os conquistados, e consequentemente não podem ter domínio sobre os conquistadores.”
A culpa desta situação de todos os funcionários das alfândegas, segundo o sindicante, serem pretos ou mulatos não era somente atribuída ao diretor, mas também à própria metrópole, que não mandava abrir concursos e não colocava europeus naquela repartição. Insurgia-se o sindicante contra o domínio numérico dos cabo-verdianos dos serviços públicos, afirmando que o chefe da repartição era um Biafada da circunscrição de Buba, oriundo da região de Quínara: “O seu ódio pela raça branca é manifesto e toda a gente sabe que ele era presidente da ‘Sociedade do mata branco» e era depois um dos sócios mais importantes da ‘Liga Guineense’ que punha e dispunha dos jornaleiros e operários, fazendo-se superior à autoridade administrativa e antepondo-se-lhe as deliberações. E o arbítrio manda dentro daquela Alfândega de modo que as preterições, os castigos e as más colocações são o apanágio dos que se não subordinam incondicionalmente às indicações e ingestões do administrador César Correia Pinto, e daqueles que lhe são mais afeiçoados.”
Não esquecer que a figura do juiz do povo acabava por resultado no controlo do mercado de trabalho das Praças e entre postos comerciais, esta figura aparecia monopolizada pelos Grumetes. A figura deste magistrado, que surgira no século XVII, no quadro da crescente autonomia destas comunidades que ocuparam bairros periféricos nas praças de Cacheu, Bissau, Farim, Geba e Ziguinchor, tornou-se incontornável nas transações entre os povos do interior e a administração portuguesa, o que dá para não se estranhar que o sindicante recomendasse a proibição do uso do crioulo na administração pública, a língua franca no território.
E Philip Havik mais observa que o facto do administrador do Círculo Aduaneiro ocupar ininterruptamente há mais de 40 anos o cargo ilustrava a grande eficácia das redes de parentesco e afinidades que o sustentaram. Este funcionário, que tinha o ensino primário tirado na Praia tinha como subalterno um diplomado pela Escola Politécnica de Lisboa.
O que veio alterar todo este quadro de redes de parentesco teve a ver com a ocupação militar da Guiné e a implantação de uma administração colonial, tudo contribuiu para uma mudança de clima político, e não houve qualquer perturbação quando ele foi substituído por um europeu em 1917, quando foi promulgada a nova Carta Orgânica da Guiné. Contudo, como observou o sindicante, os funcionários de cor adotaram como sistema resistir passivamente às determinações do novo administrador.
E o investigador volta a relevar os porquês da fragilidade da presença portuguesa. Mesmo com as autoridades a fazerem profissão de fé de que havia soberania portuguesa em toda a província, ela manteve-se praticamente inexistente fora dos poucos centros urbanos, quem preponderava eram os cabo-verdianos e os Grumetes. E quando surgem inquéritos, inspeções e sindicâncias, há sempre quem apontasse o dedo acusador às forças de bloqueio, aos negros e aos cabo-verdianos. É extremamente revelador que o único europeu na alfândega descrevia a Guiné como “A Libéria Portuguesa”. O que batia certo com a análise feita por diplomatas e autoridades metropolitanas e coloniais, esta observação da Libéria: a Guiné sofria da preponderância dos nativos. A Guiné era cobiçada pela França e pela Alemanha, a sua continuação na soberania portuguesa parecia estar por um fio durante a Primeira Guerra Mundial.
Como Philip Havik conclui o seu artigo:
“A opinião generalizada de que a administração portuguesa não estava na posse efetiva do território, que a sua administração era débil e permitia abusos de vária ordem, justificava as reivindicações das grandes potências europeias. As referências à situação interna e os conflitos entre diferentes fações políticas e estratos sociais serviram para identificar a Guiné como problema, exigindo soluções rápidas que Portugal era incapaz de implementar num dos «mais ricos e mais acessíveis territórios em África. A alegação de que um partido cabo-verdiano ou ‘Kriston’, composto por jovens católicos composto por «jovens católicos», tinha «opiniões revolucionárias e separatistas», e que ambicionava estabelecer «uma república negra parecida com a Libéria», associava-se nitidamente à rivalidade entre países europeus e à sua cobiça por colónias ‘embrionárias’ como a Guiné. O facto de tanto governos franceses como alemães discutirem a «compra» da Guiné na época em questão usando estes pretextos, quando os conflitos internos estavam no seu auge, ilustra claramente até que ponto o território e as suas lutas internas constituíram uma peça no xadrez geopolítico regional e global de então.”
Bilhete-postal, cerca de 1910
Carta geográfica da Guiné, 1933
Cheia do rio Geba em Bafatá, bilhete-postal cerca de 1910
Bolama, antiga residência do governador
Rua Honório Barreto, Bissau, 1920
_____________Notas do editor:
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Último post da série de 21 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26711: Notas de leitura (1791): Lançados ou tangomaus e pombeiros, no tráfico de escravos, o que os distingue (Mário Beja Santos)
1 comentário:
João Crisóstomo
Meu caro Beja Santos,
Mas que história é esta de:
"Tenho agora a informar o leitor que vou suspender temporariamente esta secção"...
Espero bem que seja uma suspensão bem pequena, pois precisamos bem de ti para nos abrir os olhos a tanta coisa sobre a história da Guiné que pouca gente conhece. E ninguém como tu o sabe e pode fazer .
Sei que não aparecem muitos "comentários", mas isso não quer dizer menos interesse ou que os teus trabalhos desta secção não são lidos com interesse também.
João Crisóstomo
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