Contos com mural ao fundo (35) > Nunca digas "coragem!", ao ouvido de quem está a morrer e sabe que vai morrer
por Luís Graça (*)
Estiveste no seu leito de morte. Um fatal cancro dos pulmões, porventura curável nos nossos dias, roubara-lhe a vida, há uns trinta anos atrás. Teria hoje os seus 80 e tal, se fosse vivo. Morreu jovem, demasiado jovem.
Era um dos teus heróis da adolescência. Tinha lentamente recuperado a alegria de viver, depois de uma grave crise que ele próprio qualificara de “existencial”.
A origem dessa crise remontaria, pelo menos, a setembro de 1967, altura em que ele regressara da Guiné, onde havia conhecido a “guerra, pura e dura”.
Era um dos teus amigos, da época da tua adolescência (que em vão quiseste prolongar: acabou aos 18 anos quando viste o teu nome na lista do recenseamento militar, no edital camarário).
Dele, o Doc, guardarás para sempre uma grande saudade, não obstante as vidas de ambas, cruzadas como tantas outras, se terem separado no final da década de 1960.
Nessa altura foste tu para a tropa e estava ele a retomar, a custo, em Coimbra, os seus estudos de medicina que a vida militar viera interromper abrupta e dramaticamente.
A imagem mais dolorosa que guardas dele, é a da cama de ferro, de um anexo de um hospital, em Lisboa, num quarto, minúsculo, ao fundo de um corredor sombrio. Sem janelas. Sozinho como um cão, anichado em posição fetal, a escassas… 48 horas de exalar o seu último suspiro... Como virás a saber mais tarde, pela… telefonista de serviço. Pode ser cruel, mas era assim nesse tempo.
Reconheceu-te só pela voz. Não se moveu nem um centímetro. Estava lúcido, mas já em grande sofrimento, e sob o efeito de drogas. Só lhe sussurraste, ao ouvido, um tímido “Olá, Doc”. E acrescentaste, estúpida e desastradamente:
− Coragem!
As suas únicas (e últimas) palavras, roucas, cavernosas, inumanas, soaram-te a despedida, irremediável, brutal, sem retorno. Sentiste-as como um punhal cravado no teu peito. Guardaste-as para o resto da tua vida:
− Ruizinho (tratava-te sempre por Ruizinho), vai-te embora, vai-te embora!.
Nunca saberás se era uma súplica, uma ordem ou um grito, uma explosão abafada de raiva, revolta e impotência!
Trinta anos depois, não te envergonhas de o dizer, essas palavras, as últimas, as únicas, que ele terá proferido, no seu leito de morte, como um urso agonisante na sua toca de hibernação, ainda hoje te martelam a cabeça. E tens pesadelos ao reviver esse momento único.
Sentiste um enorme sufoco por ver a morte triunfar, impante, sobre a vida, e ao mesmo tempo vergonha por teres sido incapaz de lhe tocar!... Como se ele já fosse cadáver!...
Por pudor ou medo atávico da morte, não conseguiste sequer tocar-lhe. Mostrar empatia. Pegar-lhe na mão. Dizer-lhe a palavra certa, humana, de consolo, de conforto, de carinho. Não, só uma tímida, inócua, cobarde, desastrada palavra, completamente deslocada naquele momento e lugar:
− Coragem!
Mais tarde, talvez para tranquilizar a tua consciência e não sentir o peso da tua fraqueza e sentimento de culpa, irias interrogar-te sobre o significado que ainda poderia ter o teu gesto de compaixão, no momento mais pungente e solitário da vida de um ser humano… Que é quando agoniza, lúcido mas a sofrer, longe do mundo, já muito longe daqueles que o amaram e que ele amou!...
Em boa verdade, ele não tinha ninguém à sua cabeceira, a não ser talvez o invisível e impávido anjo da morte... Morreria dois dias depois, “sozinho como um cão” (uma expressão que ele próprio usava, nos seus aerogramas, para falar da sua condição de combatente na guerra da Guiné, em 1965/67).
Morreria sozinho como um cão, aos 48 anos, longe da família, de que, aliás, só restava a irmã, e os sobrinhos que mal o conheciam. Não tinha filhos. Nem ninguém que o tivesse amado como ele merecia.
Tiveste um ataque de choro, convulsivo, enquanto saiste dali, confuso, quase aos trambolhões, daquele corredor estreito e sombrio do anexo hospitalar, sufocado, em busca do ar fresco do pequeno jardim, rodeado de gigantescos ciprestes, sinistros, apontados para o céu, e que circundavam o pavilhão, conhecido como o “terminal da morte”.
Recuando há muitos anos atrás, vêm-te à cabeça as cenas do seu regresso da Guiné. Tu eras o único amigo de que ele se lembrava. Ou melhor, tu eras talvez o único amigo que ele ainda não queria esquecer (pensavas tu, lisonjeado).Tinha regressado da Guiné e não avisara ninguém da família. Nem sequer a namorada, a Xana. Muito menos os amigos, poucos, que vinham do tempo do liceu e do grupo de teatro amador, como era o teu caso. E tu, seguramente, eras o mais novo.
De facto, nem sequer se dignara escrever-te, a ti, que eras o seu correspondente e de certo modo confidente. Trocavam correio enquanto ele esteve na Guiné. E no grupo de teatro fizeste todos os papéis: secretário, produtor, moço de recados, ponto, aderecista, datilógrafo, figurante, aprendiz de ator, colador de cartazes… De resto, eram amigos e vizinhos de bairro, se bem que tu fosses mais novo do que ele uns bons seis anos.
Sabias que ele era um pessoa “difícil”, frequentemente “imprevisível e desconcertante”, "irascível e às vezes duro e até cruel, se não mesmo desumano e ingrato”, como escreverá um dos seus "amigos, admiradores mas críticos", no jornal da cidade, na notícia necrológica.− Olá, filho, sê bem vindo… Finalmente, em casa!
Eram os dois parecidos, pai e filho, em muita coisa, mas chocavam-se quando, por exemplo, discutiam a “guerra do ultramar” (como dizia o pai) ou a “guerra colonial” (como preferia chamar-lhe o filho). Uma questão terminológica ("mais do que semântica, conceptual!") que lhe punha os cabelos em pé, ao ponto de um dia o Doc ter arremessado ao chão a toalha com a louça posta na mesa para o jantar.
Mesmo se tivesse “cunhas” (o que não era o caso), o pai nunca se humilharia perante ninguém para interceder pelo filho, livrando-o do ultramar ou, pelo menos, da Guiné… E depois a tropa e a guerra iriam "fazer dele um homem", como fora o seu caso, que combatera os alemães, os "boches", em Moçambique na I Grande Guerra.
− Ruizinho, não me leves a mal, mas não ouças o tonto do meu Velho…
Quando ele desembarcou, a única coisa que ele queria, era chegar a casa, não ver ninguém, não estar com ninguém, fechar as cortinas, enfiar-se na cama… E acrescentou algo que te chocou e perturbou profundamente:
− Sabes que mais?… Tenho asco a tudo o que é humano!
Não alcançaste o que ele queria dizer com aquela estranha expressão. Mas ele insistia que precisava de dormir um “sono reparador”:
− … Dormir um dia inteiro, como um porco, uma semana, um mês… Porventura, um ano ou até o resto da vida…
Queria poder hibernar o resto da vida. "Como um urso" (sic). Esquecer. Esquecer a tropa, a guerra, a Guiné…
Ainda ensaiaste uma tímida tentativa de diálogo mas ele correu contigo, pondo-te fora do quarto, aos berros… Aí ficaste chocado, assustado, com a sua brutalidade, mas sobretudo ao ver e rever o seu ar acabrunhado, as olheiras fundas, os olhos vidrados, a cor da pele amarelada, a barba, de vários dias, por fazer, o ar cadavérico…
Afinal, era um “ataque de paludismo”, tranquilizou-te a pobre mãe que, à força de muitas súplicas e lágrimas, lá o convencera a ser visto pelo médico, amigo da família, e que, sendo de saúde pública, sempre devia perceber alguma coisa de "doenças tropicais"…
Nas costas da mãe e do médico, nesse fim de semana, despejou uma garrafa de uísque.
Na altura, confessarás mais tarde, até pensaste que ele poderia estar com ideias parassuicidárias, como se diz hoje. Ficaste assustado com o estado de saúde, física e mental, do teu amigo.
E ainda estava fresca, na memória de toda a gente da terra, a morte por enforcamento do pai de um antigo colega teu de escola. Estavas tu de piquete na redação do jornal, fazias os "faits divers", as pequenas ocorrências, os nascimentos, batizados, casamentos e óbitos, e ainda viste, enquanto se aguardava a chegada da autoridade de saúde, o corpo a baloiçar numa barrote da caldeira onde trabalhava, nos arredores da cidade. Era o adegueiro.
Reconstituindo o que se passara nessa manhã de neblina, em que desembarcara, no Tejo, de um velho navio, misto, de mercadorias e passageiros, da carreira colonial, agora requisitado para transporte de tropas, o Doc contou-te que durante a viagem e à chegada tinha tido “pensamentos confusos e impulsos contraditórios”.Justamente ia fazer dois anos que não se viam, ele e os pais e a irmã. Ele não viera de férias, por “razões disciplinares”: tinha apanhado uma “porrada” (sic) e, em consequência do castigo, tinha sido transferido para outra companhia, "como mandava o RDM, o regulamento de disciplina militar" (segundo depois te explicou).
Sentiste que esse episódio o marcara muito, mas nunca te deu grandes pormenores. E tu respeitaste a sua revolta e sobretudo o seu silêncio. Era evidente que o assunto o incomodava, não gostando sequer de falar dele.
Em aerograma que mandara aos pais, terá arranjado uma desculpa esfarrapada para justificar a impossibilidade de comparecer na festa, comemorativa dos 30 anos de casados, marcada para o verão de 1966. (E se a mãe tanto insistira com ele para reservar as férias para o mês de julho de 1966!).
A releitura dos seus aerogramas não te permitiu esclarecer cabalmente esta história que lhe sujou a “caderneta militar” (documento, aliás, a que tu nunca puseste a vista em cima, se é que ele não o destruiu em vida).
Há dois episódios que poderiam estar na origem da tal “porrada” ou castigo… Recapitulaste cada um deles, sem poderes entrar em grandes pormenores por falta de informação.
O primeiro terá tido a ver com uma exaltada discussão com a Polícia Militar, em Bissau, quando ele tirou uns dias para ir ao estomatologista. Traduziu-se numa participação contra ele, tudo por causa de um cena de pugilato com outro militar (de que desconhecias a patente, mas o mais provável era ter sido um 1º cabo).
O teu amigo Doc, que estava numa esplanada, perto da conhecida fortaleza da Amura, quis fazer justiça pelas suas próprias mãos, contra um grupo de “velhinhos”, ruidosamente festejando o fim de comissão e a véspera de embarque. Deram-lhes para se meter com os “djubis”, os miúdos que vendiam “mancarra" (amendoim), nas ruas da Bissau velha, frequentada pela tropa… Aliás, miúdos e miúdas.
Fizeram-lhes uma série de tropelias, o que começava a incomodar quem estava na esplanada, seguramente todos militares, uns fardados, outros à civil. O Doc interpretou isso como um ato de violência gratuita, se não mesmo racista, para mais sendo as vítimas crianças, indefesas, que tentavam ganhar a vida… Porém, de nada lhe valeu, a ele, puxar dos galões. O grupo estava sob a euforia dos vapores do álcool e ninguém mediu as consequências dos seus atos. Às tantas generalizou-se a pancadaria, e voaram cadeiras da esplanada, até que chegou a Polícia Militar e restabeleceu a ordem.
Abreviando a história, houve várias detenções. O Doc foi levado para o quartel da polícia militar. Ficou lá cerca de uma manhã. Mas houve testemunhas que abonaram a seu favor. Pelo menos, um dos alferes ou furriéis que estavam sentados na esplanada, e que, por cobardia, comodismo ou cautela, não se quiseram meter ao barulho.
− Afinal, um militar fardado, para mais oficial, está ou não está 24 horas por dia de serviço?! − interrogava-se o Doc, em voz alta, a limpar o sangue do sobrolho e ainda a espumar de raiva contra o grupo de arruaceiros.
O segundo episódio prende-se-á com uma situação algo semelhante, em que vem ao de cima o lado “justiceiro” e "solidário" do Doc, mas desta vez envolvendo um oficial superior, um major, que terá tratado mal (com insultos e ameaças de porrada) alguns militares de um pelotão de caçadores nativos, adido à companhia de comando e serviços do batalhão a que pertencia o Doc.
Eis o essencial da versão do Doc, num dos aerogramas que ele te escreveu:
− Os soldados, todos guineenses, estavam a abrir valas, à volta do perímetro do aquartelamento… À porta do bar... Valas que seriam depois encimadas por bidões cheios de areia, como proteção em caso de ataque...
Calaceiros, mandriões e outros epítetos ainda mais injuriosos acompanharam as ameaças do major, 2º comandante de batalhão, impaciente com a fraca produtividade dos "nharros", dos "barrotes queimados" e outros "mimos" de semelhante teor, que o Doc interpretei como sendo grosseiros, descabidos, inapropriados e despudoradamente racistas...
À hora do bridge, e depois dos uísques do costume, a seguir ao jantar na messe de oficiais, o Doc, que assistira à cena da tarde, à porta do bar, “impotente mas indignado”, caiu na asneira de comentar, em tom subtil mas jocoso, em voz alta, a versão do major sobre o "incidente", ao mesmo tempo que incriminava o alferes, comandante do pelotão em causa, por deixar os seus homens ao deus-dará...
− Este, cobardolas, branco como a cal da parede, estava enfiado na cadeira com o rabo entre as pernas...
O Doc terá citado um provérbio popular, muito usado na sua região: "Quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão"...
Caiu o Carmo e a Trindade, na messe de oficiais… O major ficou lívido de raiva, "à beira de um ataque de nervos", era de resto um homem "histérico e irascível". O comandante veio de imediato em defesa dele e da honra do convento, dando ordens ao alferes, ao Doc, para "se recolher de imediato ao seus aposentos".
O médico do batalhão, que era conhecido do Doc, do tempo de Coimbra e da crise estudantil de 1962, terá ainda, "timidamente", interferido a seu favor, junto do tenente-coronel. Em vão, ao que parece.
Não sabes bem o desfecho da história. Mas verdade é que, passado pouco tempo, em maio de 1966, o Doc é transferido de unidade…
O castigo disciplinar, "desproporcionado", teve consequências graves na sua vida militar na Guiné: perdeu, de imediato, o direito ao gozo da licença de férias, e passou, de uma região relativamente calma, o Leste, para outra, o Sul, onde a atividade operacional era mais intensa…
− Tal como cheguei, sozinho como um cão, assim parti...
Nenhum dos seus camaradas, alferes milicianos, se dignou ir ao bar de sargentos beber um copo de despedida com ele.
− Nem sequer o sacana do médico. Tive apenas, à mesa, dois ou três furriéis que me estimavam...
E, pior ainda, ele que tinha uma especialidade relativamente burocrática (era oficial de operações e informações), passou a andar no mato, de camuflado e de G3 em punho, como comandante de um grupo de combate numa companhia de caçadores…
Nunca soubeste ao certo por onde ele andou o resto da comissão… Porque nos aerogramas só vinha o SPM, o código do Serviço Postal Militar. E tinha sempre o cuidado de nunca se identificar. Assinava, na correspondência para ti, como “o teu amigo Doc”…
Num dos últimos aerogramas que te escreveu, já perto do final da comissão, confidenciara-te:(...) “Tenho a mania que vou endireitar o mundo. A liberdade de expressão na tropa paga-se caro, com língua de palmo. Nestes quase quinze meses cá em baixo, na região a que chamam de Tomba...li, já conheci os múltiplos tormentos do inferno desta guerra: a sede, a fome, a insolação, os ataques de abelhas, as formigas carnívoras, a exaustão física e emocional, os tufões e outras intempéries tropicais, a merda que te cobre o corpo, a solidão, a alienação, a desumanidade… Para não te falar do medo das minas e armadilhas, e das emboscadas, mais do que dos ataques e flagelações aos nossos quartéis, onde, apesar de tudo, tens um buraco para enfiar os cornos" (...).
− Ruizinho (também te tratava carinhosamente por Ruizinho, como o filho), o teu amigo Doc chegou!... Está vivo e inteiro, graças a Deus. Mas não está nada bom da cabeça, o meu pobre filho!...
A dona Domitília Meneses era uma santa senhora. Era professora primária, já reformada. Tinha sido tua professora da 4.ª classe e do exame de admissão ao liceu. Era moçambicana, de origem goesa, descendente de gente da pequena nobreza local, um dos seus antepassados teria sido vice-rei da Índia em meados do séc. XVIII, "ao tempo do senhor Dom João V".
Já o mesmo não se poderia dizer do marido, também ele professor do ensino primário, velho republicano, maçónico... Tinha mais quinze anos do que ela, e fora aposentado compulsivamente da função pública na sequência, dizia-se, do apoio à candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República em 1949.
Tu conhecia-o mal, era um homem amargurado, pouco sociável, para não dizer misantropo… Na realidade, ele tinha sido marginalizado, legal e politicamente pelo poder central e socialmente pela elite local. Passando a ser considerado, ostensivamente, um “oposicionista", um indivíduo "contra a situação", deixara de ser convidado para integrar os corpos sociais das diversas associações locais de que era sócio ou membro (a filarmónica, os bombeiros, o clube recreativo, desportivo e cultural, o núcleo local da liga dos combatentes, etc.).
Raramente saía à rua, nem mesmo nalgumas efemérides patrióticas, como o 1º de dezembro de 1640 ou o 5 de outubro de 1910. Quando muito dava um salto a Coimbra, para ir consultar bibliotecas e arquivos públicos. Dedicava-se aos seus livros, era um apaixonado africanista, correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, interessando-se, muito em particular, pela história da colonização de Moçambique, no tempo da monarquia constitucional e da I República.
O único ponto em que estava de acordo com a política do Estado Novo era na questão da “defesa intransigente do Ultramar”. Tinha estado na sua juventude em Moçambique, primeiro como expedicionário e depois, mais tarde, como professor. E alí viria a conhecer a mulher em meados dos anos 30. O filho nasceria, na Beira, em 1942. E tivera como ama de leite uma jovem mãe negra.
Parecidos em muitos aspetos de personalidade, pai e filho, separados por quase cinquenta anos de diferença, engalfinhavam-se com frequência em discussões, por vezes violentas, sobre o que se estava a passar nos territórios ultramarinos portugueses (mas também na África Austral do "apartheid").
Tinha ideias fixas, o “Velho”, sobre o futuro desses territórios (“possessões ou colónias, como queiras chamar-lhe”, dizia ele ao filho), defendendo todavia o princípio da autodeterminação progressiva, a par da criação de uma "Commonwealth" à portuguesa. Era um admirador incondicional da colonização britânica e da formação de elites locais.
O teu amigo Doc era, para ti, o irmão mais velho que tu nunca tiveras. Partilhavam ambos alguns interesses intelectuais, a começar pelo teatro, a poesia, a literatura, a arte e, claro, a política.
Nessa época, poucos jovens da tua idade tinham ainda “consciência política” (como então se dizia), porque só uma minoria tinha acesso a um educação de nível superior e a fontes de informação, independentes e credíveis. Vivia-se num regime de partido único, não havia opinião pública, os jornais estavam sujeitos à censura, havia a polícia política, a PIDE, e a única televisão de que o povo podia ver, a RTP, era a voz do dono, tal como a Emissora Nacional… Era o tempo dos 3 FFF: Fátima, Futebol e Fado, três coisas que "tiravam do sério" o teu amigo Doc,,,
O que é que tu sabias do que se passava em África, no "nosso glorioso Império Colonial", para usar uma expressão irónica do Doc ? Racismo, colonialismo, trabalho forçado, revoltas nacionalistas…? Não, nunca ouviras falar disso, muito menos da boca da tua querida professora, a Dona Domitília, para quem Moçambique era "o paraíso na terra"...
Tu vivias numa pequena cidade da região centro, onde só os mais afortunados iam estudar para Coimbra… A maioria dos jovens da tua geração sabia lá o que se passava em África… Mal sabiam do se passava à sua volta, nos arrozais e nas fábricas, na frota pesqueira, nas escolas, nos quartéis, nos hospitais…
− Queima-os, Ruizinho, queima-os!
Não lhe fizeste a vontade. Devias tê-lo feito? Continuaram guardados ao teu cuidado. Sempre pensaste que ele poderia, com os anos, mudar de opinião. Era material para uma ou mais peças de teatro... Mas, não, nunca mais quis falar da Guiné e desses "anos de chumbo" em que esteve na tropa e na guerra... E acabaste, afinal, por entregar os aerogramas à irmã, no dia do seu funeral. Hoje tens pena de não os ter fotocopiado, limitaste-te a copiar alguns excertos.
Sabias que o teu avô, materno, era da “situação”… Era um bom homem, um "santarrão", ia à missa, raramente discutia política, e muito menos contigo… Não gostava do Salazar, é verdade, mas tolerava-o. Encolhia os ombros e, às vezes, desabafava com os filhos e netos, quando se jantava lá em casa:
− Meus filhos, hoje o Salazar, amanhã, quem sabe, talvez pior, o diabo em figura de gente…
O teu avô, coitado, era dos que acreditavam que o Salazar é que tinha livrado os portugueses da II Grande Guerra, com a ajuda da Nossa Senhora de Fátima… Um seu irmão mais novo, que tu não chegaste a conhecer, tinha sido expedicionário nos Açores, e tinha regressado a casa, “são e salvo"..., para morrer, afinal, uns meses depois, de "doença do peito", de tísica, de tuberculose... Falava-te que nesse tempo tinha tido muito medo, por causa do irmão, dos submarinos alemães que infestavam o Atlântico Norte… e que chegavam a Cabo Verde. Ele, de resto, ouvia a BBC.
Tinha, por outro lado, a sua tertúlia, os seus amigos, os seus petiscos. Mais importante: o teu avô tinha uma adega, a que chamavam a “adega do povo”, aberta a todos os amigos e vizinhos, embora já fora da cidade… Na adega também tinha o seu escritório e o seu arquivo (pastas e pastas da contabilidade).
O teu avô estava acima de todas as suspeitas. Era um homem respeitado e respeitável, guarda-livros de profissão, conhecia os “podres” das várias famílias importantes da terra… Razão por que todos o estimavam (e temiam), pondo as mãos no lume por ele. Em contrapartida, podiam contar com o seu “silêncio de ouro”.
Tu gostavas muito dele, tinha bonomia e bom humor, nunca se chateava contigo. Dizia-te na brincadeira que era ele, o guarda-livros, quem tinha uma das três chaves do céu…
− Então?... E as outras duas, avô?
− Tem-nas o padre e o médico!...
A pior desgraça que podia acontecer a um guarda-livros era ser despedido (e, nalguns casos, preso) por abuso de confiança:
− Tens a chave do céu mas não podes abrir a porta… E houve casos, meu filho (tratava-me por filho) de gente, nesta profissão, que não soube qual era o seu lugar, na ordem natural das coisas… Olha, um matou-se, o outro foi parar à prisão…
O Doc nunca te deixou publicar nenhuma notícia, a seu respeito, no jornal, um quinzenário, onde tu trabalhavas, como estagiário e, em boa verdade, como “pau para toda a obra”, desde paquete a repórter, embora ainda sem cartão e jornalista (que era emitido pelo sindicato corporativo). Tinham uma secção, “Correio dos Heróis do Ultramar”, onde se publicavam notícias dos filhos da terra a cumprir “missões de soberania além-mar".
O jornal, regionalista, tinha uma orientação editorial que não se coadunava, de todo, com as ideias (políticas, estéticas, éticas e culturais) do teu amigo que, de resto, era conhecido na cidade como filho de um oposicionista, e já teria, ele próprio, ficha na PIDE.
O Doc estava a estudar em Coimbra, na faculdade de medicina, quando foi inesperadamente chamado para a tropa. Na secretaria, explicaram-lhe secamente que, tendo chumbado a uma cadeira, deixava automaticamente de beneficiar do direito ao adiamento da incorporação militar…
A filha mais velha, por sinal tua catequista, casara com um “jovem e promissor advogado” que viera de Coimbra, no princípio dos anos 50, e que aqui se fixara.
A tua terra tinha fama de acolher bem “os de fora”. De imediato, esse advogado foi admitido no “seleto clube local” e aí não levou tempo a perceber quem poderia ser a sua futura clientela e, mais do que isso, quem eram as meninas casadoiras… Era ali que estavam as "forças vivas" da terra, aquelas que tinham nome, património, estatuto, influência, charme, poder e... algum dinheiro.
Ora um dos seus primeiros clientes foi justamente a empresa do futuro sogro, grande (para a época e para a terra) armazenista de vinhos que exportava para África, e sobretudo proprietário urbano, “dono de uma rua inteira da cidade” (como se dizia, não sem exagero). O teu futuro patrão, o advogado, teve, como uma das prendas de casamento a direção do jornal (a menos valiosa, materialmente falando, mas nem por isso dispicienda para o seu projeto de promoção pessoal, profissional e até polílica).
Dentro de todos os condicionalismos da época (censura, autocensura, ausência de formação profissional e de regras de deontologia, não dissociação da propriedade e da direção, etc.) foi para ti a a tua escola de jornalismo e de escrita, muito embora o Doc andasse sempre a gozar contigo por causa do teu “jornaleco”… Pensas que ele não gostava sobretudo da pessoa do diretor…
Tu e o teu diretor tinham uma diferença de quase trinta anos. A ele ficaste a dever alguns favores e até confidências. Por ele soubeste que tinha vivido numa república de estudantes, em Coimbra, acabando por se envolver na política, no MUD Juvenil, o movimento juvenil democrático, constituído em 1945, no rescaldo da guerra…
− Paixões da juventude, coisas de garotos, que às vezes têm um preço alto, mais tarde – comentou ele, de um modo algo enigmático.
Como diretor do jornal, gostava de acarinhar os “jovens literatos” da terra, onde tu te incluías, gente que tinha saído do liceu, uns, poucos, que haviam entrado na universidade, outros, como tu, que esperavam a “sorte grande” da tropa…
Admirava agora os jovens, da geração 60, que estavam a aparecer, e que tinham até mais talento e cultura literária do que a sua geração… Para esses havia um cantinho no jornal, uma página juvenil… onde poderiam escrever, “sempre era uma melhor alternativa do que andar por aí a dar cabo da vida e da saúde, e a comprometer o seu futuro, em antros imorais e quiçá subversivos" (sic)...
Em 1962 houve a crise académica... E em 1964 o Doc foi chamado para a tropa e, em menos de um ano depois, estava na Guiné.
Parte da tua formação intelectual e até literária deves-lha a ele, ao teu amigo Doc. Emprestava-te livros, trazia-me jornais e revistas quando vinha de Coimbra nas férias, incluindo alguns, estrangeiros, franceses, que não chegavam à província, como “Le Monde” ou “Le Nouvel Observateur”…
Depois da sua prolongada “cura de sono” (que passou também por uma clínica de desintoxicação alcoólica, deves acrescentar sem trair a sua memória…), acabou por voltar a Coimbra e à sua “doce boémia”… Com as economias que trouxera da Guiné, conseguiu assegurar a sua independência económica. Fez algumas cadeiras atrasadas no ano letivo de 1968/69. Mas o curso marcava passo.
Mas foi também a época em que tu deixaste de ver o Doc, com regularidade. Soubeste depois que se tinha incompatibilizado de vez com o pai, por causa das eleições legislativas de 1969, rompendo então, definitivamente, com a sua cidade natal. Há muito que deixara, de resto, o teatro da cidade, que passara a ter um novo diretor, aquando da sua partida para a Guiné. Enfim, fixou-se de vez em Coimbra.
E tu nessa altura acabavas de chegar à Guiné, onde votaste em branco nas eleições para a Assembleia Nacional. Ias tendo algumas notícias dele pela sua mãe, sempre extremosa, mas também pela irmã que estava em Lisboa, onde tirara o curso de germânicas, e que não escondia os seus cuidados pela saúde do irmão, mais novo, o seu "caçula".
Não tens aerogramas dele do teu tempo de Guiné. Nunca se corresponderam nesse tempo. E um ou dois que lhe escreveste, não tiveste coragem de os pôr no correio...
Depois do teu regresso à Guiné, e da tua própria "cura de sono", tiveste em Lisboa notícias dele e da família: a dona Domitília Meneses não sobrevivera a um cancro da mama, uns bons anos antes da morte do filho.
Por seu turno, o marido já tinha morrido antes dela, não sem ter tido, porém, duas alegrias: a de ver o seu filho finalmente formado em medicina, aos 30 e picos anos, e logo a seguir a de ter podido dar vivas à liberdade, no 25 de Abril de 1974. (À boa maneira republicana, lançando o chapéu ao ar, enquanto alguns dos seus tradicionais inimigos políticos se trancavam em casa para ver em que é que paravam as modas.)
Por onde andou o Doc, agora médico de pleno direito, depois do 25 de Abril e até morrer, quinze anos depois, no princípio de 1990 ?
− Enfim, ando por aí − como te garantiu ele, da última vez que falaram ao telefone − a ver se ainda consigo reconciliar-me com a humanidade...
Nota do editor: