1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires, ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70, com data de 3 de Maio de 2012:
Meu Caro Editor. Camarada.
O Daniel faz anos já no dia 10 de Maio.
O Daniel Agostinho Silva foi meu Soldado Maqueiro.
No dia 1 de Agosto de 1969 accionou uma mina anti-pessoal e foi-lhe amputado um dos pés.
Eu quero contar a sua história e o Daniel merece que eu a conte.
E que a conte aqui, no nosso mural, lugar certo e único para fazer das nossas histórias, história.
Abraços
Armando Pires
Sem ressentimentos
Chovia desesperadamente naquela manhã do primeiro dia de Agosto.
Eu e o furriel miliciano Moncada Cordeiro estamos à conversa, sentados na torre da sua Panhard.
Falamos da cidade onde nascemos, dos nossos lugares, dos amigos comuns, enquanto, em João Landim, aguardamos que a jangada traga do outro lado do Mansoa, vindas de Bissau, as duas últimas viaturas que por nós irão ser escoltadas até Bula e, daí, levadas através da estrada de S. Vicente.
É o último movimento do último dia da “Operação Chave de Ouro”.
Uma operação de três dias que visava proteger as colunas de transporte de um Batalhão de Caçadores para S. Domingos, do pessoal e máquinas da Engenharia que iriam abrir e asfaltar a estrada desde Bula até às margens do Cacheu.
A importância estratégica daquela estrada levara a um grande empenhamento militar do PAIGC, com o objectivo de travar a sua construção.
Daí o forte dispositivo militar que, do nosso lado, foi colocado no terreno.
Uma Companhia de Comandos, a 122 de Paraquedistas, a CCAÇ 2312, a CCAÇ 2466, as Panhard’s do EREC 2454 e o Poletão de Sapadores da CCS do BCAÇ 2861.
Portanto, eu e Cordeiro falávamos, olhos postos no lado de lá do rio onde a jangada se tomava de viaturas e homens.
Eram para aí umas onze da manhã, mais uma horita estavam do lado de cá, descarrega e põe-te a andar, seis quilómetros dali a Bula, era só deixá-los já na estrada de S. Vicente, sempre a rodar para norte, na segurança que lhes fora montada.
Com tudo a correr bem, do nosso lado, lá pela uma e meia estávamos a almoçar “em casa”.
O rádio da Panhard acordou e o Cordeiro ajeitou os auscultadores.
Olhei-o, para ouvir notícias, e ele olhou-me como se, de facto, tivesse alguma coisa para me dizer.
- Estão a pedir uma evacuação lá para cima.
Para onde:
- Perguntei-lhe, num estranho e súbito alarme.
Quis saber se de lá tinham dito quem iam evacuar.
- Népia, pá. Pedem o heli para Ponta Fortuna. O indicativo é da 2466.
Num raio, o Daniel veio-me ao pensamento.
- Furriel, o Daniel está a querer baldar-se. Diz que logo à noite não sai – foi o aviso de ontem, feito pelo Maltez.
Sobressaltei-me, ainda mais do que já ficara, saltei da Panhard e meti-me a pensar ao mesmo tempo que caminhava de um lado para o outro.
Só pode ter sido uma mina. Tinham embrulhado, forte e feio, mas bem mais cedo, Logo pelas sete da manhã. E sem consequências.
Na véspera, sim, houvera porrada da grossa, quase toda a manhã, a 2466 tivera um ferido grave e o EREC 2454 dois feridos ligeiros, resultado de um roquete que atingira superficialmente uma Panhard.
Agora só podia ter sido uma mina.
Voltei a ontem, lá para o fim da tarde, e ao aviso do Maltez.
- Furriel, o Daniel está a querer baldar-se.
Por razões diferentes, a CCAÇ 2466, que ficou em Bula junto do Batalhão, o 2861, ficara privada da sua equipa de enfermeiros. Nessa altura, falei com o meu médico, o alferes miliciano José Manuel Oliveira, e disse-lhe que, depois de ter conversado com os meus homens, os enfermeiros da CCS iam passar a sair com eles.
Quando juntei a minha equipa e lhes disse das minhas intenções – que dali nenhum homem saía sem enfermeiro – nem um só recuou.
Reinava, desde então, o acordado princípio da rotatividade.
Tinha chegado a vez do Daniel e disse ao Machado, 1º cabo enfº., que lhe comunicasse.
Às 22, junto da 66 para sair.
Eram para aí umas seis e picos da tarde, no alpendre entre os quartos e a messe, batíamos uma quingalhada a fazer horas para jantar.
- O Daniel está a querer baldar-se – foi avisar-me o Maltez, meu soldado maqueiro.
Perguntei-lhe porquê e ele, o Maltez, mordendo o sorriso, disse-me uma razão, para mim, tão absurda quanto estranha.
- Diz que está de diarreia.
- Ó Maltez, diz-lhe que vá cagar e que às dez esteja no sítio combinado.
Mergulhei, de novo, a cabeça nas cartas, mas já sem atinar com as vasas, sem ser capaz de perceber quem tinha o King nem como me safar das duas últimas.
Mas o que é que deu agora neste gajo, hem?
Levantei-me, irritado, coisa que sempre me acontecia para as primeiras impressões, procurando uma explicação para aquela ideia parva da diarreia.
1969 – O Daniel no quartel de Bula
O Daniel, Daniel Agostinho Silva, Soldado Maqueiro, era um mocetão nascido em Cela, ali para os lados de Alcobaça. Alto, braços de quem cedo tinha começado a fazer pela vida, andar de quem está sempre com receio de chegar atrasado, senhor de um sorriso que até dava gosto e dono de uma farta bigodaça negra, que lhe valeu ter passado a chamar-lhe o Pancho Vila.
Nunca o vira nem contrafeito nem de cara virada à luta.
E se, às vezes, a coisa até ficava sem graça nenhuma.
Como daquela vez, por exemplo, em que de uma operação, já noite dentro, entrou no aquartelamento um homem da 2466 com o crânio desfeito por estilhaço.
Houve quem quisesse enviar o corpo assim mesmo para Bissau.
- Furriel, não senhor. O homem não sai daqui assim. A gente vai tratar do assunto.
“A gente”, eram o Daniel e o Maltez.
Curioso estarem sempre juntos aqueles que andavam sempre à porra e à massa, um com o outro.
Lavaram-no, limparam-lhe o crânio feito de massa encefálica e sangue seco, onde já os mosquitos enxameavam, encheram o vazio com maços de algodão, ligaram-lhe a cabeça como se apenas tivesse ocorrido um golpe mais azarado e deram a tarefa por acabada.
Então, e vinha agora aquele gajo dizer-me que estava de diarreia?
Decido-me a ir à enfermaria, que ficava junto à porta de armas do quartel, e tirar tudo a limpo.
Estavam lá o Daniel e os outros.
Os outros eram o Machado, 1º Cabo Enfermeiro, o Maltez, o João e o Teixeira, todos soldados maqueiros.
- Então, conta lá que merda andaste a beber para estares de diarreia.
O Daniel encaixou e respondeu-me naquele tom de quem diz “que se lixe, digo já tudo”.
- Ó furriel, não é nada. Eu é que estou com um pressentimento. É um mau pressentimento, tá a ver?
Aquela fracção de segundo entre a resposta dele e a minha decisão, pesou como chumbo dentro da sala.
Oito pares de olhos estavam cravados em mim.
Como em outros momentos, aquele era, para mim, um assunto de fácil resolução. Mandaria o Daniel à merda, pegaria na trouxa e sairia eu com a Companhia.
Mas senti que esse impulso, tão fácil em mim, significaria perder os meus homens.
Não que me vissem, depois, como alguém incapaz de impor o respeito. Não, nunca houve, entre mim e eles, necessidade de chegar a esse ponto. O que percebi foi que, dali para a frente, não mais haveria decisões conjuntas, acordos firmados e cumpridos, desse por onde desse.
Danado por me ver forçado a seguir o caminho que não era o meu, disparei para o Daniel:
- Eu quero que tu e os teus pressentimentos se f… Ou estás às 10 horas pronto para sair com a Companhia ou embrulho-te numa folha de papel azul que nunca mais sais daqui.
Nem bom dia nem boa tarde, nem mais uma palavra, virei costas e saí.
O tempo que se seguiu foi de cigarro atrás de cigarro e olhos sempre postos nos ponteiros do relógio.
Passava um bom bocado das dez quando o Maltez me tornou a aparecer.
- Furriel, o Daniel já saiu com a Companhia.
Eu respirei de alívio e o Maltez colocou aquele ar de “final feliz” para me contar.
- O Furriel não quer saber que ele foi tomar banho, vestiu roupa lavada e até estreou um par de cuecas. Disse que se lhe acontecesse alguma coisa não queria que o vissem com roupa suja. Ó furriel, e não quer ver que quando saiu a porta de armas baixou um joelho e benzeu-se? Aquilo é que é, hem!?
Todo o resto da manhã, desde que o Cordeiro ouviu, no rádio, pedir uma evacuação, passei-o sempre ocupado a rememorar este filme. De tal forma me absorveu que mal dei por já estar a entrar no quartel, em Bula.
Saltei do Unimog, corri na direcção da enfermaria, entrei e estavam lá todos. Incluindo o Dr. Oliveira.
- Já sabes?
Não, não sabia, não precisava de saber, não precisava que me dissessem.
Bastou-me aquele silêncio. Aqueles rostos. Os olhos do Dr. Oliveira.
- Foi uma mina, pá – disse o Doutor – Só agora é que chegaram para o evacuar. A chuva atrasou o helicóptero. Ou é o pé ou a perna, vamos ver. O resto parece estar tudo bem.
Levantou-se, passou por mim colocando a mão sobre o meu ombro, fez uma ligeira pressão para me transmitir o seu afecto, e saiu porque, conhecendo-me, percebeu que aquela era a “nossa” hora.
Ficámos ali, a fumar, os que fumavam, a olhar para o vazio, sem palavras, sem descartar que éramos todos, em equipa, culpados de não termos entendido os pressentimentos do Daniel.
Só ao fim da tarde, quando a Companhia regressou ao quartel, é que o Xana, furriel miliciano do grupo de combate onde ia o Daniel, é que me contou pormenores.
Fizeram auto, ali na área de Ponta Fortuna, principiaram a instalar-se, um ou outro procurou sítio para uma mijadela, o Daniel ia advertindo para terem cuidado
- “É pá, vejam lá se não há por aí alguma mina” – quando, junto de um bága-bága, pisou aquela que estava ali, à espera que se realizasse o seu pressentimento.
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Passados meia dúzia de dias estava em Bissau. Ia de férias a Lisboa.
Fui, eu e outros, ver o Daniel ao Hospital Militar.
Fora-lhe amputado o pé, pelo terço inferior da perna direita.
Que palavras tínhamos para lhe dizer?
Eu iria pedir-lhe desculpa, e ele? Aceitaria? Compreendia a decisão que tomei?
O peito mal conseguia suster o alvoroço que ia lá dentro. Na cabeça tinha um estranho eco que fazia parecer tudo tão longe. Mas não tão longe que não me deixasse ouvir, distintamente, aquelas tremendas e generosas palavras do Daniel.
- É furriel, pá! Isto foi o destino. Estava escrito, furriel. Você não tem nada a ver com isto. Foi o destino, sabe o que é?
Talvez que eu não soubesse o que era o destino.
Talvez que eu nunca venha a saber o que é o destino.
Mas sei, e isso o Daniel só vai saber agora, que foram aquelas palavras decisivas para que eu possa olhar o meu passado na Guiné, com orgulho e sem ressentimentos.
Eu e o Daniel Agostinho num dos recentes convívios da Companhia.
Em segundo plano, curiosamente, de sorriso rasgado, o Joaquim Maltez
Armando Pires
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 10 de Maio de 2012 >
Guiné 63/74 - P9876: Parabéns a você (417): Henrique Matos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Guiné, 1966/68)