1. Em mensagem do dia 19 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense (CSJD/QG/CTIG, 1973/74), enviou mais uma peripécia para a sua série Um amanuense em terras de Kako Baldé.
Um Amanuense em terras de Kako Baldé
(Para quem não sabe, Kako Baldé era o nome por que era conhecido, entre a tropa, o General Spínola. Kako – (caco) lente que o General metia no olho. Baldé – Nome muito comum na Guiné)
4.1 – Curtas férias em Cacine – CCAÇ 3520
Na sequência dos acontecimentos relatados no post anterior teríamos então de, na manhã seguinte, nos apresentar no Cais do Pidjiquiti a fim de embarcar num pequeno barco de carga, vulgarmente chamado de “barco turra”, que nos levaria para o Sul (???).
Entretanto tivemos de nos aviar em terra. Distribuíram-nos as G3, cartucheiras atestadas e várias embalagens de munições para G3(???).
Sul, G3, munições à “fartazana”! Iríamos para Gadamael?! A “coisa” já não me estava a cheirar nada bem. Comecei a pensar se não teria sido melhor eu ter ido para Padre!
Eu sou Amanuense, porra!
De seguida, foi-nos fornecido equipamento que me deixou completamente no nível mais elevado da estupefacção!
Foram-nos entregues
2 Máquinas de escrever Messa, devidamente embaladas e acondicionadas, rigorosamente a estrear!
É certo que, naquela Terra, raramente bebia água, mas juro que, naquele dia, o único álcool que tinha ingerido tinha sido o do copo que me serviram à hora do almoço e uma cerveja a meio da tarde, até porque estava em serviço de Sargento da Guarda!
Ó saudoso Raul Solnado, tu que és entendido neste tipo de guerras, diz-me, por favor:
- “O que vai um grupo composto por, 1 Major comando, 1 Alf. Milº OE, 1 Fur. Milº de Transportes, 1 Fur. Milº Amanuense e 1 Cabo Escriturário, armados e acompanhados de 2 máquinas de escrever, fazer para uma zona onde há “festa da brava”?!
Bom, no dia seguinte, lá pelas 7 horas da manhã, apresentamo-nos no Pidjiquiti de armas e bagagens e embarcamos no tal “iate”. Este teria talvez uns 8 x 4m e era composto por um porão coberto a madeira e uma “cabine” (4 estacas e uma cobertura).
A tripulação era composta pelo comandante (um negro de meia-idade, com o seu cachimbo artesanal sempre na boca) e outros 2 negros, mais jovens.
Quando o sol começava a “apertar”, a única sombra possível era no porão que se encontrava cheio de rações de combate e alguns bidões de combustível e onde se podia cozer pão com algum grau de certeza de êxito.
Um bom marinheiro avia-se em terra e nós, tínhamos trazido para a viagem uma grade de cerveja cujas garrafas, presas a pequenas cordas, penduramos na borda do “iate” e deixámo-las “refrescar” um pouco nas águas do Atlântico.
Claro que as ditas, mesmo “pouco quentes” desapareceram num ápice tal era a sede naquela situação.
Emborcadas as “bejecas” mornas deitamo-nos, em tronco nu, sobre a cobertura do porão.
Está-se mesmo a ver o filme! Uma valente soneca ao sol escaldante daquelas paragens!
Conhecem, com certeza, o que acontece à pele da sardinha quando a metemos no forno completamente coberta com sal? Sai direitinha como se de uma camisa se tratasse!
Pois foi exactamente o que aconteceu com a minha pele do tronco, rosto e pés (tinha descalçado as botas e meias).
Depois, veio a ressaca acompanhada daquela secura de boca tão característica do “pós-moca”. E água, cá dela?
Havia a bordo, junto à “cabine” do piloto, um bidão ferrugento onde a tripulação enfiava uma velha mangueira de plástico e, através da outra extremidade, sugava o precioso líquido (da bolanha?), matando a sua sede.
Com o sol cada vez mais a pino e a língua cada vez mais seca, olho e volto a olhar para o vaivém da tripulação em direcção à “fonte”. Hesito várias vezes, mas vem-me à memória relatos de alguns dos nossos militares que, no mato, para matarem a sede, tinham de afastar os insectos da água da bolanha.
O que tinha ali à minha frente era um luxo comparado com o que se passava no mato. E, vai daí, qual bravo guerreiro enfrentando o inimigo de peito aberto, “tungas”, atiro-me à mangueira, limpo disfarçadamente com o lenço a ponta e enfio-a pelas goelas, sugando avidamente aquela “pomada” refrescante!
Que alívio e, passados 40 anos, ainda não morri!
Surgida a noite, aquela “casca de noz” teve de enfrentar um mar de tal maneira revolto que eu, agarrado a uma das estacas da “cabine”, senti que, por vezes, ficava com as costas a centímetros da linha de água. Isto é: a embarcação quando navegava paralelamente às ondas, inclinava-se de tal modo para bombordo que a onda seguinte parecia ir desabar na minha cabeça. Foi assustador para um marinheiro de água doce como eu, que nunca tinha andado no mar alto! Felizmente veio a bonança, mas aqueles momentos pareceram-me intermináveis.
Na minha mente, sempre o mesmo:
“Eu sou Amanuense, carago!”
Entretanto, vindas não sei de onde, juntaram-se a nós outras embarcações do género, formando um pequeno comboio ao qual se juntaram também, à entrada do rio Cacine, duas LDM’s (Lanchas de Desembarque Médias) que nos iriam escoltar. Uma à frente e outra à retaguarda do comboio.
Iniciada a subida do rio, os “canhangulos” que equipavam as LDM’s e que se encontravam na vertical e cobertos com um oleado ou outra coisa do género, foram destapados e colocados na horizontal com os “artilheiros” em posição de combate e apontando para cada uma das margens do rio.
Novamente, na minha mente:
“Eu sou Amanuense, carago!”
Navegando lentamente e em ziguezague (por causa dos bancos de areia, julgo eu) lá fomos avançando, sempre de “bico calado” e não me cabendo um
“Phaseolus vulgaris no orifício rectal”, até que chegamos ao nosso destino, ao fim da tarde do dia seguinte ao do embarque, tendo atracado pelo “caminho” em vários locais, as restantes embarcações que compunham o comboio.
Tínhamos atracado ao cais de Cacine!
No cais amontoavam-se munições de armas pesadas que a minha condição de “guerreiro do ar condicionado” não conseguia identificar, mas que, pelo tamanho, seriam com toda a certeza de obus.
A recepção foi óptima com um vai-vem de helicópteros (contei 7 evacuações) que vinham buscar feridos para os levar para Bissau.
Os feridos eram provenientes de Gadamael, a cerca de 10 km de distância, mas vinham por via fluvial, em
sintexes e
zebros, talvez por haver grande congestionamento de tráfego nas estradas da zona.
Em Cacine encontrava-se albergada uma razoável quantidade de elementos da guarnição açoriana de Gadamael que para ali se tinham deslocado incomodados com o barulho que se fazia sentir no seu aglomerado habitacional.
Usavam apenas uns calções camuflados, habilmente confeccionados por um velho alfaiate negro a partir de restos de fardas velhas. Nos pés usavam daqueles “
chanatos” de plástico tão do agrado do pessoal indígena. Tinham saído de noite à pressa e sem tempo de fazer as malas, tendo ali chegado com apenas a roupa que traziam no corpo (cuecas).
O Major Leal de Almeida e o Alf. Milº já lá estavam a “banhos”.
Ali por perto estava instalado um destacamento de Fuzileiros Especiais.
Estavam também por lá acampadas as 2 Companhias de Pára-quedistas – 120 e 121.
O grupo do Marcelino também apareceu.
Em resumo: Estava tudo preparado para a “festa” e, “pelos vistos”, só aguardavam a minha chegada.
Porra, eu sou Amanuense, carago!
O pessoal de Cacine - CCAÇ 3520, com 23 meses de permanência naquela praia fluvial, aguardava ansioso pela rendição que tardava e, sabedores que foram da chegada de um Fur. Milº do CSJD, logo trataram de saber ao que íamos. Não lhes soube responder, ou por outra, respondi-lhes que também não sabia, no que não acreditaram e esse facto maior desconfiança lhes causou.
Imagine-se o que terá perpassado pelas cabeças daquelas almas quando nos viram armados com
2 máquinas de escrever! Se a isso lhe juntarmos a minha pretensa “recusa” em lhes revelar o “segredo” da nossa missão, quantas congeminações por ali não andariam?!
O que é verdade é que não sabia mesmo e à sua constante insistência a resposta era sempre igual, o que lhes adensava mais a curiosidade.
Lá nos disponibilizaram uma habitação que iria ser adaptada a QG do Major Leal de Almeida e onde, para essa noite, colocaram um beliche duplo com apenas um colchão, ao qual o meu camarada dos transportes logo se “abarbatou”. Tive que a andar na “pedinchice” pois, apesar de ter saído “todo rotinho do último cruzeiro”, não me via a dormir em cima de uma rede de chapas entrelaçadas típica das camas militares.
Alguém me encontrou um colchão ensanguentado onde, tinha morrido um militar de Gadamael e cujo sangue não me pareceu totalmente seco. Recusei.
Valeram-me, então, os Pára-quedistas que, solícitos e bem apetrechados como sempre, lá me cederam um velho colchão insuflável, mas que parecia ter sido atacado pelas traças. Amanuense como sou, ataquei-o logo com fita-cola e ele lá encheu e, num ápice, adormeci.
Na manhã seguinte acordei com o colchão completamente vazio e com o corpo tão dorido que parecia ter dormido dentro duma britadeira em movimento.
Porra, eu sou Amanuense!
Havia agora que retirar o beliche e preparar o gabinete de operações do Major Leal de Almeida, mas com que equipamento?
Lá desencantei uma mesa carunchosa e um banco corrido daqueles usados nas tabernas e estava criado o gabinete.
O Major não fez qualquer comentário ao mobiliário
“new style”, mas pediu-me que completasse o “ramalhete” com alguns acessórios indispensáveis para um bom andamento dos trabalhos, tais como: suporte para esferográficas e arquivo de dossiês. Perante a minha hesitação, tipo:
“Eu sei lá onde fica a Staples cá do sítio!”, sugeriu-me que fosse junto ao paiol e procurasse por embalagens vazias de granadas, para as esferográficas e caixotes de madeira, para os arquivos e assim fiz.
Colocado o porta-esferográficas em cima da mesa e pregados os caixotes à parede, o gabinete estava pronto para dali saírem as mais elaboradas directivas que iriam, de certeza, acabar com a “festa” na aldeia vizinha.
Foi então que, enquanto arquivava a papelada, dei com um documento que continha o carimbo de
“secreto” e que tinha como título
“Operação Trovão” e onde eram descritas as acções a levar a efeito.
Li-o apressadamente com receio da entrada abrupta do Major e o que dali retirei foi, resumidamente, se percebi bem e não me falha a memória, o seguinte:
O pessoal “refugiado” em Cacine teria de ser “recambiado” para Gadamael;
O pessoal de Gadamael teria de aguentar nas valas a rações de combate e até ao último homem;
As forças estacionadas em Cacine (eu incluído?!!!!! Eu sou Amanuense!!!) iriam tentar desbaratar o IN que se encontrava algures a bombardear incessantemente o Quartel de Gadamael.
Entretanto o Kako Baldé, talvez sabedor da minha presença naquelas paragens, resolve fazer-nos uma visita.
Lá aparece de camuflado vestido, com o habitual caco no olho, o indispensável pingalim e o seu séquito de ombros reluzentes e com o héli-canhão lá em cima, sempre às voltas.
Exige a presença do Major Leal de Almeida e ali, no meio da “parada”, dá-lhe um valente “bate-barbas” e retira-se sem sequer me cumprimentar (enfim…!).
O Major entra no gabinete e desabafa:
- “Esta “rabecada” ainda se vai transformar num louvor”.
Não fazia a mínima ideia do que se tinha passado, mas suponho que teria a ver com as prolongadas presenças do Major em Cacine (agradava-lhe, talvez, a minha companhia) quando seria suposto, julgo eu, passar mais tempo na “festa”, tanto que, a partir daí, várias vezes o vi com a sua Kalashnikov rumar, via fluvial, a Gadamael e lá permanecer alguns dias.
(Continua …)
AM
Próximo capítulo – (4.2) Curtas férias em Cacine – CCAÇ 3520 (continuação)
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 30 DE JANEIRO DE 2013 >
Guiné 63/74 - P11029: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (3): Sargento da Guarda ao QG do CTIG