1. Mensagem de Manuel Reis [, ex-Alf Mil Cav, CCAV 8350, Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel, Cumbijã, Colibuia, 25/10/72 - 27/8/1974], com data de 13 de dezembro último:
Caros amigos Carlos e Luís:
Trata-se de um pequeno texto de agradecimento a todos os africanos que, na guerra da Guiné, muitas vezes nos serviram de escudo protector. Fica ao vosso critério a publicação, ou não, deste texto.
2. Abdulai, meu irmão
por Manuel Reis
Por vezes, dou comigo a pensar no destino triste e por vezes dramático dos nossos amigos guinéus, os que partilharam connosco a tortura da guerra e a população anónima, que se acolhia sob a nossa protecção. Muitos já não estão no reino dos vivos, ou porque foram mortos após a nossa retirada, como represália, ou porque a erosão provocada pela guerra insensata causou danos irreversíveis, ou porque as deficientes condições de saúde e/ou alimentação apressaram a sua partida.
Quase todos os ex-combatentes sentem uma dívida de gratidão, por todos os que, estando do nosso lado, se expuseram de modo a salvaguardar a nossa integridade física.
Recordo aqui alguns nomes, desta gente anónima, com quem partilhei alguns momentos e que a memória se recusou a enviar para o caixote do lixo. Não passa de um gesto simbólico de agradecimento a camaradas e amigos que já partiram.
Sátala Colubali, Camisa Conté, Abdulai Silá e Sargento Samba Coiaté eram milícias em Guileje, tendo cada um destes ex-combatentes uma missão diferente a desempenhar dentro do grupo.
Trata-se de um pequeno texto de agradecimento a todos os africanos que, na guerra da Guiné, muitas vezes nos serviram de escudo protector. Fica ao vosso critério a publicação, ou não, deste texto.
2. Abdulai, meu irmão
por Manuel Reis
Por vezes, dou comigo a pensar no destino triste e por vezes dramático dos nossos amigos guinéus, os que partilharam connosco a tortura da guerra e a população anónima, que se acolhia sob a nossa protecção. Muitos já não estão no reino dos vivos, ou porque foram mortos após a nossa retirada, como represália, ou porque a erosão provocada pela guerra insensata causou danos irreversíveis, ou porque as deficientes condições de saúde e/ou alimentação apressaram a sua partida.
Quase todos os ex-combatentes sentem uma dívida de gratidão, por todos os que, estando do nosso lado, se expuseram de modo a salvaguardar a nossa integridade física.
Recordo aqui alguns nomes, desta gente anónima, com quem partilhei alguns momentos e que a memória se recusou a enviar para o caixote do lixo. Não passa de um gesto simbólico de agradecimento a camaradas e amigos que já partiram.
Sátala Colubali, Camisa Conté, Abdulai Silá e Sargento Samba Coiaté eram milícias em Guileje, tendo cada um destes ex-combatentes uma missão diferente a desempenhar dentro do grupo.
Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CCAÇ 3518 (1972/74), "Os Marados de Gadamael" > "Dois dos melhores soldados milícias que nos
acompanharam em Gadamael. O da direita, Camisa Conté, viria a falecer em 1973
quando das batralhas de Guileje e Gadamael". Foto do nosso saudoso camarada Daniel Matos [1950-2011, ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74].
Comentário (postetior de Manuel Reis: "É feliz a foto do camarada Daniel Matos. Do lado esquerdo está Camisa Conté e do lado direito o Sátala Colubali, duas referências do meu texto."... E eu (LG) acrescento: "São tão raras as fotos dos nossos camaradas guineenses!"...
Comentário (postetior de Manuel Reis: "É feliz a foto do camarada Daniel Matos. Do lado esquerdo está Camisa Conté e do lado direito o Sátala Colubali, duas referências do meu texto."... E eu (LG) acrescento: "São tão raras as fotos dos nossos camaradas guineenses!"...
Foto (e legenda): © Daniel Matos (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados
Sátala Colubali assumia o Comando de Grupo, na ausência de Samba, e distinguia-se pelo empenho e cuidado que colocava em cada missão, que lhe era destinada. A presença dele, em qualquer missão, era sinónimo de segurança e tranquilidade para todos os combatentes. Sabia o terreno que pisava, fruto da experiência dos muitos anos de guerrilha.
Camisa Conté actuava clandestinamente, entre o cair da tarde e o amanhecer do dia seguinte. A sua actuação residia na colocação de minas e armadilhas junto da fronteira ou dentro do próprio território da Guiné-Conacky. Saía só, pelo cair da tarde, com uma sacola aos ombros e a G3 a tiracolo. Estas surtidas obrigavam a um certo cuidado na desactivação das armadilhas do trilho, que ele utilizava e aos responsáveis pela vigilância do aquartelamento, quando do seu regresso ao romper do dia. Esta tarefa tinha, por vezes, algum êxito, a dar crédito nas informações que nos chegavam. Não era do meu gosto este tipo de actuação, mas o reconhecimento por todo este trabalho está fora de causa.
Estes dois amigos e camaradas vieram a falecer no mesmo dia, finais de Abril de 73, nas imediações do aquartelamento, quando Camisa Conté procedia ao levantamento de um engenho anti-carro, colocado no troço de estrada que ligava ao Mejo, recém-aberto. O Sátala que sempre se recusara a trabalhar com tal material, nesse dia fatídico, resolveu acompanhá-lo. Eram homens estimados e admirados por todos, combatentes e população. Um grito de dor, em uníssono, ecoou pela mata cálida de Abril, quando os restos mortais dos dois nos aparecem embrulhados numa camisa de um dos milícias. Permanecem na memória de todos como símbolos vivos de uma amizade, feita de convívio, luta e sofrimento .
Abdulai Silá, era um dos Homens-Grandes, tinha atravessado todo o período da guerra. Já com idade avançada, acima dos 40 anos, era o nosso guia. Detectava a presença do IN a uma distância considerável, pelo seu olfacto apurado e pela sua experiência de 10 anos de guerrilha. Muitos episódios partilhei com ele, em missões de maior risco, pois só nessas participava, dada a sua idade não se coadunar com um grande desgaste físico.
Vou citar apenas duas dessas acções:
Um dia foi-me atribuído um patrulhamento nas imediações da fronteira, onde o contacto com o PAIGC tinha um grau de probabilidade elevado, por ser um trilho de reabastecimento do PAIGC, que se dirigia a Gandembel e aí inflectia para dentro da Guiné, seguindo o mítico corredor de Guileje. A 100 metros do trilho Abdulai chama-me e comunica-me a presença de grupos de combate do PAIGC. Alerta-me para as possíveis consequências negativas de um confronto, pelo facto de as nossas tropas se mostrarem um pouco inquietas. Conjuntamente com ele e com o comandante do outro grupo de combate decidimos não arriscar. Nunca esqueci as palavras amigas e sábias de Abdulai, nesse momento: “Nós, se morremos, morremos na nossa terra, junto da nossa família, enquanto vós estais longe da família”.
Uma das missões mais complicadas que me foi atribuída, foi a montagem de uma emboscada no Corredor de Guileje. Exigia-se a presença do Abdulai para com ele e com o Alferes Lourenço, o melhor amigo [, de seu nome completo, Vitor Paulo Vasconcelos Lourenço, e que viria a morrer, por acidente em 5/3/73], delinearmos o trajecto, dada a densidade da mata e a dificuldade de progressão. O trajecto foi dividido em duas partes, pelo facto de ser necessário abrir um novo trilho, por questões de segurança.
No 1º dia fizemos metade do percurso e no final armadilhámo-lo com uma granada defensiva, o que desagradou a um chimpanzé que resolveu accioná-la. A conclusão do percurso fez-se passados três dias. Chegados ao local, previamente determinado, a detecção da nossa presença foi de imediato assinalada por um tiro de kalachnikov. A situação era delicada, o local era muito bem controlado pelo PAIGC. Abdulai aconselhou-me a retirar do local, dada a previsível violência do embate, fazendo fé nos embates anteriores com as nossas forças especiais, noutros momentos, e sempre ao nível de Companhia ou Batalhão. Era urgente abandonar o local. A emboscada abortou, após prévio reconhecimento do local e uma breve conferência com o Abdulai e o Lourenço. O conhecimento da actuação do inimigo, nesta zona, foi valioso para uma tomada de decisão.
De quando em vez Abdulai vinha a Bissau gozar uns dias férias e, sempre que o fazia, solicitava ao Comandante de Companhia a não atribuição de missões muito arriscadas na sua ausência.
Abdulai morreu em Gadamael, atingido por um estilhaço, no final do dia, com perfuração pulmonar. Foram imensos os apelos para que o helicóptero, que ainda se encontrava em Cacine, o transportasse para Bissau, mas tornou-se impossível, dada a proximidade da noite e o risco do voo.
Do Sargento Samba [Coiaté], lembro o seu espírito de sacrifício, quando no ar já se sentia o cheiro da guerra, que se aproximava com toda a violência. Comandava o seu grupo, já muito reduzido, no dia 18 de Maio de 1973, com a missão de detectar a existência de minas na picada, que ligava Guileje a Gadamael. De repente gerou-se entre eles uma enorme discussão, cuja razão de ser não consegui entender. Falavam em crioulo e a sua conversa até chegou a ser escutada pelo grupo do PAIGC que se encontrava emboscado a 30/40 metros.
Alertei-os para a gravidade de tal atitude e Samba, num gesto repentino de revolta, assume a dianteira dos seus homens e 30/40 metros à frente detecta um fio eléctrico, que as gotas de água, caídas durante a noite, puseram a descoberto. Atingido, com um tiro no pescoço, teve morte imediata. Este sacrifício impediu que os restantes combatentes caíssem na zona de morte, que se estendia ao longo de 100 metros, com os guerrilheiros do PAIGC bem protegidos em valas construídas para o efeito e com a picada bem armadilhada com 20 minas, electricamente comandadas.
A todos o meu Bem-haja. Aos que partiram o meus desejo que Repousem em Paz.
Com as cordiais saudações natalícias.
Um abraço. Manuel Reis
P.S. Segue uma foto mais actualizada.
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Úlotimo poste da série > 8 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10501: Os nossos camaradas guineenses (35): O Dandi, manjaco, natural de Jol, que eu conheci... (Manuel Resende / Augusto Silva Santos)