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sábado, 11 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27308: Os nossos seres, saberes e lazeres (704): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (225): O espetacular passeio na Ribeira Sacra – 4 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2025:

Queridos amigos,
Saímos de S. Pedro do Sul, o destino seguinte não era propriamente Ourense, mas a Catedral era de visita obrigatória, é um dos templos românicos mais deslumbrantes da Galiza. Escolheu-se uma povoação de Nogueira de Ramuin, começava-se o dia com um cruzeiro no Canhão do Rio Sil, viagem assombrosa pelos contrastes das duas margens, pela imponência do granito entre a vegetação agreste, e aquela singularidade dos mosteiros dos eremitas que depois os dominicanos e os cistercienses remodelaram. Irá visitar-se o Mosteiro de S. Estevão, fica para o próximo texto.

Abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (225):
O espetacular passeio na Ribeira Sacra – 4


Mário Beja Santos

Não há em toda a Espanha uma região como esta, quanto à arte românica, dispõe de centenas de templos religiosos, na sua maioria muito humildes, mas profundamente tocantes, são convocatórias vivas à fé do Homem. Na organização do nosso programa no sul da Galiza houve calorosa discussão, havia quem queria sair pelo Minho e visitar a Catedral de Tuy, houve propostas para ir a Lugo, uma neta de catorze anos decidiu por todos, já que há piscinas de água quente em Ourense, é para aí que vamos. E assim foi. Atravessa-se a fronteira e durante os primeiros quilómetros as diferenças são mínimas. Depois desaparecem os eucaliptos, elevam-se as serras, está alterada a paisagem, o casario.

E lá se viajou até Ourense, com o estômago a bater horas, a urbanização da cidade não deixou ninguém em frenesim, falei na Catedral, uma gema preciosíssima; depois de Santiago de Compostela, rezam as crónicas, não há nada arquitetónica e artisticamente tão sumptuoso. Olhá-la de fora, gera muita perplexidade, as alterações do século XI em diante são mais do que muitas: por exemplo, onde agora vemos aquele zimbório houve até ao século XV um teto abobadado. Como as recriminações para comer eram mais que muitas, a visita foi de médico, melhor dito, quando se chegou ao Pórtico do Paraíso todos ficaram de boca aberta. Sucede que este Pórtico foi feito um século depois do Pórtico da Glória de Santiago de Compostela, são linhas góticas opulentíssimas, ainda há restos de policromia, ali se debatem figuras do Antigo e do Novo Testamento. Entrada mais feliz na região do sul da Galiza não podia haver. Finda as delícias da mesa, rumou-se para os arredores, para um local onde há matas que nos recordam Sintra, de nome Luintra. A razão é muito simples quanto a esta escolha, queremos todos percorrer no dia de amanhã os tesouros naturais e edificados da Ribeira Sacra.

Ao romper da aurora, lá vamos a caminho do canhão do Rio Sil, à procura do ancoradouro de Santo Estevão. A Ribeira Sacra é região interior da Galiza composta de uma parte do sul da província de Lugo e de uma parte do norte da província de Ourense, território estruturado pelos rios Minho e Sil. O Sil é fronteira natural entre as duas províncias, Ourense na margem direita Lugo na margem esquerda. Do lado de Ourense, o rio é mais arborizado, tem mais sombra, é mais húmido, do lado de Lugo recebe mais horas de sol, tem as encostas ideias para a cultura da vinha. Vamos então começar o cruzeiro.

Fachada principal da Catedral de Ourense, 1160
Pórtico do Paraíso, Catedral de Ourense
Não, não se trata de uma paisagem lunar, é o amanhecer que deixa as formas indistintas, todo este granito escalvado e a vegetação agreste envolvente ainda não têm o recorte pronunciado. Aqui temos um microclima mediterrânico, ao contrário da maior parte da Galiza que tem um clima oceânico, pluvioso. Daí vermos nas escarpas carvalhos e castanheiros e toda a arborização típica do clima mediterrânico, nem faltam as oliveiras.
O que se vai revelando empolgante na viagem é o contraste das duas margens, as vinhas em terraços e nas encostas da margem esquerda e a vegetação agreste na margem direita. Há para aqui a barragem de Santo Estevão, muito perto do ancoradouro, erigida em 1957. Pergunto a um dos mestres da embarcação o porquê deste fenómeno da vinha. Ele aponta o dedo para os maciços graníticos e explica-se que as vinhas estão plantadas ao lado da pedra, é o granito que regula a temperatura, absorve o calor do sol durante o dia e transmite às vinhas durante a noite. E com o mesmo dedo aponta para os terraços ou socalcos, é ali que se planta melhor, e não deixa de comentar que há aqui garrafas de vinho que se vendem entre os 80 e 100€.
Temos aqui uma imagem dos meandros do rio, de um altifalante anuncia-se que olhemos para os pontos mais altos, há lindíssimos miradouros, e fala nos balcões de Madrid, tem a ver com as épocas da emigração a que foram sujeitos os galegos, até para Portugal, tanto podiam ser aguadeiros como amola tesouras, reparadores de chapéus de chuva, anunciavam-se por uma gaita e uma melodia inimitável.
Tivesse eu uma boa máquina fotográfica e o leitor ficaria verdadeiramente impressionado com a altura e a imponência destas escarpas.
Quem diria que nesta Ribeira Sacra há uma atração religiosa ímpar. Situa-se aqui a mais importante concentração da arte românica rural da Europa, tendo em conta a dimensão do território. A Ribeira Sacra possui uma centena de igrejas românicas e vinte mosteiros. Seguramente que todos são credores de visita, iremos, finda esta viagem no canhão do Sil, até ao Mosteiro de Santo Estevão. O Mosteiro de Santa Cristina de Ribas de Sil é um mosteiro românico do século X que pertenceu à ordem dominicana. Pode-se visitar o claustro e a igreja, que conserva retábulos e frescos e a rosácea da fachada principal é muito bela. Intrigado, fui procurar saber o porquê desta quantidade de mosteiros.

No início da Idade Média, as pessoas chegavam aqui atraídas pela espiritualidade dos lugares, tudo natureza e sem grandes centros populacionais. Essas pessoas eram os eremitas, uma corrente do cristianismo composta de pessoas que abandonavam tudo para viver na solidão. Quando acabara este passeio, quinze minutos depois estaremos no Mosteiro de Santo Estevão. Outro mosteiro importante é o de São Pedro de Rocas, que é o mosteiro mais antigo da Galiza, data do século VI, a sua visita é recomendada pela sua singularidade, a igreja possui três capelas aprofundadas na rocha, há uma necrópole medieval com túmulos antropomórficos e possui uma atalaia com uma altura de vinte metros. O castanheiro dava um alimento essencial na Idade Média, só no século XVI é que chegaram à Europa as batatas o milho e outros legumes. Vivemos uma manhã de sonho. À saída da viagem deram-me um folheto com os miradouros e descobri que o Concelho em que estamos a viver se chama Nogueira de Ramuín.

Vista do ancoradouro de Santo Estevão de um ponto alto
E pronto, chegámos a este mosteiro situado na encosta norte do Rio Sil, entre bosques de carvalhos e castanheiros, é dado como o mais importante mosteiro da Ribeira Sacra. Santo Estevão de Ribas de Sil, é anterior ao século X, é do tempo do Rei Ordonho II o restauro de uma comunidade de eremitas que habitavam a zona do Canhão de Sil, no século X restaurou-se o que fora o primitivo edifício datado do século VI. Não há na atualidade vestígios arquitetónicos das primeiras construções e o que de mais antigo se conserva é a igreja românica datada da segunda metade do século XII. É esta a visita que vamos fazer.
Estátua de homenagem em Luintra aos amola-tesouras que partiam desta região de Ourense para outros pontos de Espanha e Portugal

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 4 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27285: Os nossos seres, saberes e lazeres (703): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (224): O espetacular balneário romano de São Pedro do Sul - 3 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27307: Manuscrito(s) (Luís Graça) (275): 50 pequenas coisas que mudaram em 50 anos no Portugal sacro-profano que eram as terras de Candoz, no Marco de Canveses, em Entre-Douro-e-Minho



Marco de Canaveses > circa anos 40 do séc. XX  > O típico carro de bois de Entre Douro e Minho...O boi com a sua "molhelha",,, A mulher, com o seu lenço de cabeça, escondendo o cabelo, ela e o seu "home", cada um no seu lugar... Ela a tanger os bois...Ele de chapéu e varapau...

(Molhela: almofada, geralmente composta de couro, palha e estopa, onde assenta a canga que junge os bois,e que é  colocada no cachaço, protegendo-o do atrito da canga).


Marco de Canaveses > circa anos 40 do séc. XX  >  A vinha de enforcado, a vindima (com recurso a escadas altas), os grandes cestos de verga à cabeça, as mulheres e os seus "cantaréus" (canções de trabalho, cantadas a 3 vozes, exclusivamente femininas, nas "serviçadas", como a vindima, as desfolhadas, etc.)

Fonte: Aguiar, P. M. Vieira de - Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses. Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947. (Com a devida vénia).



Quinta de Candoz > A matança do porco (c. 1975/80): uma cena que Bruxelas conseguiu banir definitivamente dos nossos campos e aldeias (mas não da nossa memória) em nome de uma conceção ( fundamentalista, dizem os críticos) da saúde pública e de uma Europa securitária, globalizada, normalizada e tecnocrática, matando a etnodiversidade... 

Declaração de interesses: Não sou "vegan", adoro carne de porco, adoro leitao... Claro que eu hoje não queria ver as minhas netas a assistir a uma cena "cruel" como esta (hoje fala-se em "bem-estar" animal)... Na nossa infância tivemos que "ver e ouvir" os gritos lancinantes do pobre animal, mas a seguir comíamos-lhe o sarrabulho, os rojões, as "febras", as bochechas, o presunto, os salpicões, os chouriços... E jogávamos á bola com a bexiga do porquinho!)



Marco de Canaveses > c. 1975/80>   O "toirinho" (sic), vendido na feira do Marco, uma das poucas fontes de receita dos "caseiros" (ou "rendeiros", tínhamos um em Candoz, nessa altura), para além do vinho e do milho... Este era um
 boi de trabalho, não de engorda; a junta de bois puxava a charrua de ferro, e trazia do "monte" uma carrada de lenha. Por sua vez, o porco era o governinho da patroa (que o guardava, com engenho e arte,  na "salgadeira" ou no "fumeiro"). 




Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > O que resta do velho carros de bois...Foi caindo aos pedaços, já com uma bela idade...

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Comecei a ir a Candoz há 50 anos, em 1975... Freguesia de Paredes de Viadores, concelho de Marco de Canaveses, na bacia hidrográfica do rio Douro e do rio Tâmega;  a sul , em frente, ficava/fica a serra de Montemuro, já no distrito de Viseu. 

1975,  em "pleno verão quente", um ano depois do 25 de Abril.  Fui fazer, eu e a Alice, uma viagem pelo "Portugal profundo", "sacro-profano",  que eu não conhecia. Ela sim, tinha começado a trabalhar na instalação do Parque Nacional da Peneda-Gerês. E era nada e criada naquelas terras, donde já se avista o Marão. 

Foi então que descobri a  região do vinho verde, e ainda a tempo de "apanhar em andamento o passado" deste País, a vinha de enforcado, as latadas, o milho, os engenhos (moinhos a água), as histórias do linho e das desfolhadas, as tradições comunitárias como as "serviçadas", a matança do porco,  os carros de bois "a chiar pelos montes acima ou abaixo", a parceria agrícola e pecuária (formas pré-capitalistas de produção) , as feiras de gado, as romarias, as tunas rurais, os bailes mandados, etc.... E, pela primeira vez (e única) na minha vida também ajudei a pisar a uva (tinta) no lagar... Uma tarefa que só podia ser feita pelos homens porque não eram,,, "menstruados".

Casar-nos-íamos, lá, em Candoz, um ano depois. Pelo civil. O primeiro casamento civil do ano, no Marco de Canaveses, segundo nos disse o ajudante de registo civil que foi lá a casa.  Uma heresia, numa família católica e conservadora.

 A 7 de agosto de 1976. Ganhei uma nova família. Fiquei mais rico tendo optado pela exogamia (a lei que manda nunca casar na tua terra...).

As formas de estar, viver, trabalhar, pensar, educar, amar, morrer... até aos anos 60 ainda estavam  ligadas a uma economia agrícola fracamente monetarizada, e em grande parte de autossubsistência... 

Ainda apanhei a tradição e a transição, a mudança, as pequenas mudanças operadas naquelas terras do Norte de Portugal...Em meio século, assisti a muitas mudanças, pequenas e grandes. Naquele microcosmo  (socioantropológico...), no coração de Entre-Douro-e-Minho, aonde dantes ia meia dúzia de vezes por ano (e agora um pouco menos)... E quando digo dantes, ainda era no tempo em que não havia autoestradas (!), e a viagem de Lisboa até lá (400 km), demorava um dia...

Hoje são uma série delas (se eu partir de Alfragide): CRIL A8, A17, A1,CREP, A4... Recorde-se que a autoestrada A1 só ficou completamente concluída em 1991, ligando Lisboa ao Porto. Já a autoestrada A4, que liga o Porto a Amarante, foi concluída em 1995...

2. Aqui vão, por ordem alfabética, sem  qualquer ordem de precedência, importância,  relevância ou cronologia, algumas das 50 (ou mais) pequenas grandes mudanças ali operadas (refiro-me, no essencial, à freguesia de Paredes de Viadores, onde se situa a Quinta de Candoz,  e onde as pessoas precisavam de berrar ou falar alto para comunicarem umas com os outros, porque o povoamento era e é disperso).

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  • a Água de consortes, as "levadas" (como a água de Covas, que vinha da serra, e de que o meu sogro tinha direito a utilizar, só no solstício do inverno, uma vez por semana, das 10h da manhã às 6h00 da tarde); a construção civil, a abertura de estradões, a abertura de poços e minas, as alterações climáticas, etc.,  levaram... a "levada", a água de Covas, que chegava a Candoz e continuava pela encosta abaixo: era uma alegria para os sentidos, a vista, o ouvido, etc., assistir à rega do milho;
  • o Anho assado com arroz de forno, que hoje é produto... "gourmet" (e tem confraria);
  •  Bacalhau “lascudo” (que ainda não havia no Natal, nem o bacalhau era a pataco, como a República prometia em 1910)
  • o “Baile mandado” com “mandador” e os homens e as mulheres separados, de pé, encostados às paredes da casa; e dançavam-se as danças palacianas e burguesas do passado; a valsa, a mazurca, a contradança, o fado; e o mandador era também o "coreógrafo";
  • cozia-se a Broa de milho e centeio (três partes de milho e uma de centeio), no forno a lenha, e que tinha de durar 8 dias (ou até 15, "duro que nem cornos"!);
  • o Caciquismo político e eleitoral (do regedor, do padre, do comerciante, do professor, do “fidalgo"...);
  • só os homens usavam Calças (!) (e as raparigas, Tranças, que cortavam quando ficavam "comprometidas" ou iam para o Porto estudar, um privilégio);
  • a Canalha, a miudagem,  uma  Cama para três (e às vezes era no Palheiro, o quarto dos rapazes);
  • ouvia-se o Carro de bois a chiar, "com toda a cagança",  pelos estradões (uma verdadeira sinfonia!); 
  • o osso com Carne ("ó pai, chuche e dê  -mo!") no Moado  (caldo);
  • as Cebolinhas do "talho" (de talhão, da horta, provenientes da monda do cebolal...), o Presunto Verde, o Salpicão,  o Verde,  o Arroz de Cabidela, as Papas de Farinha de Pau, a "Aletria", o "Doce da Teixeira", a Regueifa, e outros pequenos manjares da culinária local
  • os grandes Cestos de vime de 50 kg de uva que os “homes” transportavam aos ombros (e as mulheres à cabeça), por leiras e socalcos abaixo (ou acima) até ao “lagar do vinho” (em geral, no piso térreo, da casa, e com chão saibroso por causa da temperatura ambiente: a "loja" onde também ficava a "salgadeira"); 
  • o Compasso Pascal, a Festa de Nra. do Socorro, a Festa do Castelinho (gente de folgar e trabalhar, ou trabalhar muito e folgar pouco);
  • não se conhecia a Contraceção nem o Planeamento familiar (mesmo a “Pílula” chegaria tarde à cidade…) ("porra e lenha é quanto a venha", um provérbio que pode ter uma conotação sexual, mas não tenho a certeza);
  • a Cultura do milho de regadio, exigente em água e mão de obra (escondia-se o milho nas “minas”, as nascentes de água, para escapar à requisição do governo nos anos da II Guerra Mundial e do pós-guerra);
  • as Crianças habituavam-se, cedo, às “Sopas de cavalo cansado” e eram “Sedadas com Bagaço” quando se contorciam com dores, tinham fome ou estavam doentes;
  • andava-se Descalço (ou, tal como em África, se levava os sapatos na mão até à entrada da vila, da escola, da igreja…);
  • a autossuficiência da Economia do pequeno campesinato familiar onde o pai era “pai e patrão” e a “ranchada de filhos” era garantia de mão-de-obra abundante e gratuita;
  • a Electricidade, o Frigorífico a Televisão, etc., só chegariam depois do 25 de Abril (mesmo com a barragem do Carrapatelo a escassos quilómetros de Candoz);
  • Emigração, primeiro para o Brasil (até aos anos 50) e depois para França ( "a salto") e Alemanha, também depois Luxemburgo e Suiça;
  • não havia  Estradões ( e foi com essa promessa de abrir estradões que caciques como o Ferreira Torres ganhavam eleições);
  • a “Esterqueira” (ao pé da porta onde se faziam todos os despejos domésticos e se deitava todo o lixo orgânico que não fosse para a “gamela” de, "com a sua licença", o porco) (já não é do meu tempo, mas da infância da Alice; aliás, da minha infância quando ia casa dos meus tios no Nadrupe, á Quinta do Bolardo,  á casa dos meus parentes do clã Maçarico, em Ribamar);
  •  não havia  Estradões ( e foi com  a promessa de abrir estradões que caciques como o Ferreira Torres ganhavam eleições) ("roubava, mas fazia obra", dizia o povo...);
  • a Estratificação social nos campos: ”fidalgos”, pequenos proprietários, rendeiros…e cabaneiros (gente sem terra nem casa) (e que na igreja também se dispunham pela mesma ordem, com homens e mulheres, socioespacialmente separados);
  • as Feiras anuais e sobretudo as feiras de gado (onde se levava o porquinho e o tourinho para vender, ou onde se ia comprar uma "junta de bois") (era lá que também se fazia, além de negócios, namoros, casamentos, alianças; tal como a igreja, a feira era um importante local de socialização):
  •  a importância das Feiras e romarias como factor de lazer, de socialização, de negócios, de informação, conhecimento e propaganda (ah!, os pregões dos feirantes!);
  • batia-se  forte e feio nos Filhos (em casa e no campo) e nas crianças (na escola) ("quem dá o pão, dá a educação");
  • em que os mais remediados diziam: “criei-os [aos Filhos] fartos e cheios [de pão, que não se escondia na “trave” do telhado de telha vã, fora do alcance dos ratos e… das crianças, isso era sinal de pobreza];
  • o Fumeiro e o Barro vidrado que tanto cancro no estômago provocou;
  • a criação, em cortes, do  Gado bovino (o “tourinho”, mais bem tratado que a “canalha”, a miudagem,  porque rendia dinheiro ao ser vendido na grande feira do Marco de Canaveses);
  • só os Homens usavam calças (!) (e as raparigas cortavam as tranças quando ficavam comprometidas ou iam estudar para o Porto, um privilégio, nos anos 60);
  •  as Juntas de bois lavrando a terra com arados de ferro;
  • só se bebia Leite (de cabra, de vaca era mais raro) quando se estava doente (em geral os adultos);
  •  as Longas caminhadas a pé (para se ir à missa, à romaria, à feira, à repartição de finanças na sede do concelho, mas também ao médico e o hospital da misericórdia... a 13/15 km de distância);
  •  a Luz do candeeiro a petróleo ou querosene;
  • o valor comercial da Madeira de carvalho, castanho, pinho, cerejeira, etc. (madeira nobre hoje destronada pelo eucalipto);
  • a Matança do porco, o fumeiro e a salgadeira (que eram o “governinho da tia Aninhas”, e também uma das principais causas de morbimortalidade por doenças cérebro-vasculares, como a “trombose”):
  • o Médico da vila  ("João Semana") que só se chamava a casa na hora da morte para passar a certidão de óbito;
  • o Medo das trovoadas, das bruxas, dos lobisomens, do mau olhado, das pragas que se rogavam uns aos outros por ódio, vingança,  inveja, intrigas, desamores, etc.; 
  • a escassez de Meios de tração mecânica na lavoura (tratores, motocultivadores, serras mecânicas, etc.) e de transporte automóvel (não me lembro de haver nenhum trator em 1975...);
  • cultivava-se o Milho, o  Centeio... e o Linho (!);
  • a fraca Monetarização da economia (fazia-se algum dinheiro com a venda das uvas, do milho, do tourinho, da cereja e pouco mais; ou trabalhando à jorna, ocasionalmente para o "ramadeiro", para o "construtor civil, etc., que os mais sortudos iam para a polícia e os caminhos de ferro, a CP);
  • os "Montes” (pinhais) que eram “rapados” todos os anos, não só para limpeza e prevenção dos incêndios (não havia incêndios) como sobretudo por causa da importância que tinha o mato para fazer a "cama dos animais” e depois o estrume (fundamental para a cultura do milho ou da batata); 
  • "na casa desta Mulher come-se tudo o que ela der";
  • as grandes Mulheres (ou "Mulheres Grandes") que em geral se escondem(iam) atrás dos seus “homes" (e tinham sempre uma palavra de peso, a última, nos negócios, nas compras de propriedade, nos amores, nos casórios dos filhos, etc.);
  • o Obscurantismo não só político e cultural mas também religioso (como o daquele pároco que mandou cortar as pilinhas dos anjinhos na igreja);
  • a "minha Palavra vale mais do que a minha terra toda" (a palavra dada era lei);
  • as Panelas de ferro, ao lume, na lareira (onde se faziam os "Rojões");
  • as “Parteiras” (que não as havia, diplomadas) eram as “aparadeiras” (sic) (mulheres curiosas, mais velhas, que já tinham sido mães...);
  • jogava-se ao Pião (os rapazes) e  brincava-se às Bonecas de trapos (as raparigas);
  • ó Maria, dá-me o Pito...E Porra e Lenha é quanto a venha (a maneira brejeira, pícara, desta gente do... carago!);
  • as Professoras do ensino primário que se chamavam "regentes escolares"; 
  • fatalismo dos Provérbios populares (“boda e mortalha no céu se talha”, "muita saúde e pouca vida que Deus não dá tudo"...); 
  • as Ramadas e o Ramadeiro (construtor de ramadas);
  • a luta dos Rendeiros, a seguir ao 25 de Abril, contra a parceria agrícola e pecuária, formas pré-capitalistas de exploração da terra, com o pagamento das “rendas” em géneros  (em geral, numa proporção fixa, por exemplo ao terço, a meias, etc.);
  • os Salamaleques da “servidão da gleba”: “com a sua licença, meu senhor e meu amo”, dizia o caseiro para o “fidalgo”, desbarretando-se a 10 metros de distância, num  concelho onde em 1958 mais de metade dos agricultores eram rendeiros;
  • a Salgadeira (onde se guardava o porco, desmanchado) (responsável por muitos AVC);
  • os Salpicões feitos em vinho verde tinto (fundamental na cozinha e nos enchidos, este vinho único no mundo);
  • não havia Saneamento básico, água potável (a não ser o das minas) nem banheiro com duche;
  • a Sardinha “para três” (que chegava de Matosinhos na Linha do Douro até  a estação do Juncal, e depois era transportada à canastra e vendida de porta em porta) (... e os ovos que se vendiam para comprar a "sardinha para três");
  • o Sável e a Lampreia do rio Douro (que as barragens "mataram") (comia-se o sável pela Quaresma,  quando a Igreja proibia o consumo de carne... aos pobres);
  •  as "Serviçadas” como a vindima, a malha do centeio, a desfolhada do milho, a espadelada do linho, a matança do porco, etc., em que os familiares e os vizinhos se ajudavam, uns aos outros;
  • "Ir às Sortes" (à junta médica militar, e ficar apto ou apto para a tropa); (era também um a "ritual de passagem para os "machos", e o início do "home leaving"; quando se regressava, é para para o jovem adulto a começar a governar a sua vida, deixar a casa dos pais, ir para o Porto trabalhar na África, ou para o Brasil, e mais tarde para França, Luxemburgo, Suiça...na construção civil;
  • "na casa deste home quem não Trabalha não come";
  • começava.se a Trabalhar muito cedo (“ o trabalho do menino é pouco, mas quem não o aproveita é louco”; "na casa deste home, quem não trabalha não come; e na casa desta mulher, come-se tudo o que ela fizer"):
  •  as “Tunas rurais do Marão” (indispensáveis nos "bailes mandados") (uma rabeca, um violão, uma viola, um cavaquinho, unas ferrinhos, uma voz) ;
  • “Varapau” como símbolo da masculinidade (mas também de violência) (a ponto de ter sido proibido na via pública, nas festas, nas romarias e nos bailes, sendo o seu cumprimento fiscalizado pela GNR):
  • a “Venda” que era mercearia, tasca, casa de comidas (para os de fora), cabine pública de telefone, caixa de correio, palco de mexericos, boatos e notícias, etc. (a da Candoz, ficava no Alto,na estrada real Porto-Régua,   a 3 km de distância por caminho de carro de bois, que agora é estrada municipal e nos leva à albufeira da barragem do Carrapatelo);
  • a Vinha de bordadura e de enforcado (e na sua grande maioria, videiras de tinto… jaquê, um híbrido americano de  há muito proibido mas sempre tolerado; de fraca graduação e pior qualidade, o “jaquê” chegava a maio já era intragável; de resto, nas vindimas toda a uva podre ia “para o tinto”; e não havia vinho verde branco, o que se fazia era “para o padre”; e muito do que ia para o "ultramar", a tropa, que tinha poder de compra, era vinho branco leve, de 9 / 10 graus, enviado para os armazéns do Porto e de Vila Nova de Gaia, e depois gaseificado e rotulado como "vinho verde branco");
  • o Vinho verde branco, feito de bica aberta, e que era só para o padre e para a missa (hoje é um dos senhores "embaixadores de Portugal");
  • o Vinho verde tinto, o tal "berdinho", carrascão, bebido da malga de barro vidrado ou da “caneca de porcelana”;
  • a Virgindade (feminina) antes do casamento (e ai da rapariga que fosse "rejeitada" pelo rapaz...); ou tivesse a desgraça de ser "mãe solteira";
  • ... e quando a gente (a nossa geração) nasceu, por volta de 1945, no fim da II Guerra Mundial, ainda morriam 120 crianças em cada mil nados-vivos.

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Nota do editor LG:

Guiné 61/74 - P27306: Parabéns a você (2426): Benito Neves, ex-Fur Mil Cav da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67); Eduardo Campos, ex-1.º Cabo TRMS da CCAÇ 4540 (Bigene, Cadique e Nhacra, 1972/74) e Patrício Ribeiro, ex-Fuzileiro Naval (Angola, 1969/72), Empresário na Guiné-Bissau

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Nota do editor

Último post da série de 10 de Outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27302: Parabéns a você (2425): Manuerl Resende, ex-Alf Mil Art da CCAÇ 2585 / BCAÇ 2884 (Jolmete, 1969/71)

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27305: Convívios (1041): 62º almoço-convívio da Magnífica Tabanca da Linha, quinta feira, 23/10/2025, Algés; há já 44 inscritos...Camarada, sê mais um "magnífico", junta-te aos "magníficos" (Manuel Resende, régulo)




Situação em 10/10/2025, às 20h00

62º CONVÍVIO DA MAGNÍFICA TABANCA DA LINHA


Quinta-feira,  23 de outubro de 2025


RESTAURANTE CARAVELA DE OURO (Algés) (vd. localização no mapa)

Morada: Praça 25 de Abril de 1974, 1495 Algés - Telefone: 214 118 350

Estacionamento em frente tem sistema de "Via Verde Estacionar 2 horas"

I N S C R I Ç õ E S :

Até às 12 horas do dia 21 de Outubro de 2025, 3ª feira

para: Manuel Resende - Tel. 91 945 82 10
manuel.resende8@gmail.com
magnificatabancadalinha2@gmail.com
dizendo "vou" ao convite no nosso grupo no Facebook
Estarei atento ao grupo do Whatsapp para quem se inscrever por este meio.

+ + + + + E M E N T A + + + + +

Começamos com aperitivos às 12,30 – Almoço às 13 horas
Peço que tragam a quantia certa, 28 €. Ajudem os organizadores.
Pagamento por Multibanco, no Rés-do-Chão e, ao entrar para a sala, apresente o duplicado.

APERITIVOS DIVERSOS

Bolinhos de bacalhau  | Croquetes de vitela | Rissóis de camarão | Tapas de queijo e presunto
Martini tinto e branco - Porto seco - Moscatel.

SOPAS

Canja de galinha
Creme de marisco

PRATO PRINCIPAL

Nacos grelhados, à Transmontana, com batatas a murro e grelos.

SOBREMESA

Salada de fruta ou Pudim
Café

BEBIDAS INCLUIDAS

Vinho branco e tinto “Ladeiras de Santa Comba" ou outro
Águas - Sumos - Cerveja

PREÇO POR PESSOA ... 28 €

(Crianças dos 5 aos 10 anos se aparecerem, pagam metade)


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Nota do editor LG:

Último poste da série > 16 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27022: Convívios (1040): O pessoal da 2.ª CART do BART 6521/72 reuniu-se no passado dia 5 de Julho de 2025, em Rio Maior para comemorar os 51 anos da chegada da Guiné (José Morgado, ex-Soldado CAR)

Guiné 61/74 - P27304: Notas de leitura (1849): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Outubro de 2025:

Queridos amigos,
Só agora descobri este interessantíssimo livro editado pela Tinta-da-China em 2022, trata-se de um projeto coletivo envolvendo académicos, ativistas, museólogos, jornalistas que interrogam Lisboa através de um quadro sólido de instituições, entidades, espaços públicos, monumentos, infraestruturas e até nomes de ruas e que são ecos, e mesmo reminiscências, da nossa presença colonial. Dedica-se hoje atenção ao Arquivo Histórico Ultramarino, à Associação Comercial de Lisboa e ao Bairro das Colónias, o primeiro é um lugar fundamental de uma imensidade de estudos, para aqui convergiram documentos multisseculares, os arquivos do Ministério das Colónias, do Arsenal da Marinha, entre outros, deram-se muitas alterações, quando andei a pesquisar João Vicente Santana Barreto, tenente médico que esteve em Cabo Verde e prestou meritíssimos serviços na Guiné, pensei que o seu processo estivesse no Arquivo Geral do Exército, não senhor, o melhor que encontrei foi mesmo aqui; a Associação Comercial de Lisboa esteve ligada a nomes bem representativos de negócios africanos caso de Angola e São Tomé; e o Bairro das Colónias é assim tratado por toda a gente, só resiste a outro tratamento a antiga Praça do Ultramar, hoje Praça das Novas Nações, é um Bairro altamente miscigenado, tem a Farmácia Colonial e o Restaurante Sabores de Goa...

Um abraço do
Mário



Império e colonialismo: reverberações na Lisboa atual - 1

Mário Beja Santos

Ecos Coloniais resulta de um exercício coletivo de investigação sobre o património histórico e cultural, aqui se interrogam instituições, entidades, monumentos, obras de arte, palácios onde se interseccionam a história colonial e imperial portuguesa, do passado ao presente, edição ilustrada com fotografias de Pedro Medeiros e o acervo de textos tem a coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto, edição Tinta-da-China 2022. Logo na introdução, os organizadores referem que este levantamento é uma obra consciente e que há muito por investigar e por saber, importa evitar generalidades e simplismos mobilizadores para escapar aos engenheiros e empreendedores da “história” e da “memória”.

A viagem começa no Arquivo Histórico Ultramarino, instituição criada na década de 1930, pensado desde o início como o arquivo histórico do Império. O seu próprio nome é revelador da profunda ligação que este projeto manteve com uma visão histórica do Império Colonial. Era intento do Estado Novo moldar a memória colonial para se obter uma narrativa oficial sobre o passado de Portugal enquanto nação imperial. Os autores do artigo contam a história deste arquivo que está instalado no Palácio dos Condes da Ega, na Calçada da Boa Hora n.º 30, na Junqueira, lembram a convergência de outros arquivos para aqui, a grande preocupação era a do investimento ideológico no controlo da memória e do discurso histórico sobre o Império. Prevendo-se, após a II Guerra Mundial, o surto da descolonização rebatizou-se o Arquivo Histórico Colonial de Ultramarino.

Depois do 25 de abril, o arquivo conheceu várias tutelas até que em 2015 foi incorporado na Universidade de Lisboa, está integrado na Direção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas. Há vários discursos e narrativas estratégicas na vida deste arquivo e fala-se agora muito de que é um património arquivístico comum da lusofonia. Observam os autores:
“É fundamental que a inventariação da enorme massa documental do Arquivo seja acompanhada por uma sensibilidade crítica relativamente à sombra que esta genealogia continua a projetar sobre o Arquivo”, e advertem que “convém ter presente que os sistemas coloniais de classificação documental podem ocultar certos sujeitos ou certos temas tidos no passado por secundários ou, de algum modo, irrelevantes ou inconvenientes”.
Os autores também referem que também se está a proceder na atualidade a um levantamento dos fundos do Conselho Ultramarino.

Passamos agora para a Associação Comercial de Lisboa, edifício projetado pelo arquiteto Álvaro Augusto Machado, o mesmo da Sociedade Nacional de Belas Artes, aqui se alojou inicialmente um espaço de diversão noturna, o Club Palace, quando este fechou as portas, foi aqui que a Associação se estabeleceu. Esta Associação transferira-se em 1895 para o antigo Palácio Seiscentista dos Condes de Povolide, o Ateneu Comercial de Lisboa. No século XIX fora constituída a Associação Mercantil Lisbonense, muitos dos seus dirigentes estavam ligados a negócios coloniais. “Entre os seus fundadores, muito poucos vinham dos tempos anteriores à abertura dos portos do Brasil à navegação estrangeira, em 1808. A regularização das relações comerciais com o Brasil, sobre as quais a direção solicitava ao Rei providências urgentes, foi uma das suas primeiras preocupações. O mesmo sucedeu com a promoção do comércio com as colónias de África. Logo em 1835, o Conselho da Associação apreciou o memorando sobre a situação de Angola após a abolição do tráfico de escravos. Após ter mudado de denominação para Associação Comercial de Lisboa, em 1855, a Associação formou várias comissões especializadas, uma das quais dedicadas às questões ultramarinas.”

Refere o autor as ligações da Associação com o Banco Nacional Ultramarino, com donos de roças São Tomé e Príncipe e Angola, entre outras, e escreve:
“É impressionante a identificação, durante quase um século entre a direção da Associação e os interesses coloniais. E ainda hoje, passadas décadas sobre a descolonização, embora se concentre mais nas suas funções de Câmara de Comércio e Indústria, a memória dessa relação vive no percurso de vida do atual presidente. À frente da Associação desde 2005, Bruno Pinto Basto Bobone viveu quase toda a sua infância em Moçambique, de onde só regressou depois do 25 de abril.”
Conclui nestes termos:
“Investigar organizações como a Associação Comercial de Lisboa, o processo de recrutamento dos seus dirigentes e de formação das suas posições, enquanto instituições que representam, no plano político, os mesmos interesses económicos coletivos ao longo do tempo, mas sondá-las também como lugares de encontro de indivíduos e de grupos, contribui-se certamente para compreender como mesmo na sociedade de hoje, se seguem certos rumos e se tomam certas opções.”

Da rua das Portas de Santo Antão, passamos para o Bairro das Colónias. Mudou o nome da Praça do Ultramar para Praça das Novas Nações, o nome das ruas mantém-se, há mesmo uma placa de trânsito a indicar o Bairro das Ex-Colónias. Este local corresponde a uma etapa da urbanização da cidade, foi um dos últimos bairros construídos em torno da Avenida Almirante Reis, resultou de um projeto apresentado à Câmara Municipal para urbanizar o espaço que restava da Quinta da Mineira e da Quinta da Charca, era um terreno que se situava entre dois bairros recentes, o Bairro Andrade e o Bairro de Inglaterra. O Bairro das Colónias começou a ser construído na década de 1930.

“Uma das forças mais eficazes na normalização da nomenclatura do Bairro das Colónias é o negócio imobiliário. Se alguém consultar as principais empresas imobiliárias com a intenção de comprar ou arrendar uma casa não encontrará nenhuma oferta no Bairro das Novas Nações. Já no Bairro das Colónias as possibilidades são diversas.”

As transformações do Bairro, a avalanche de nossos compradores levou a alterar o perfil do comércio; é verdade que ainda existe a Farmácia Colonial, o restaurante central das Colónias, a oficina de automóveis Auto-Colonial ou a Pastelaria Nova Ultramarina, mas este imaginário tem vindo a dar lugar a negócios geridos por imigrantes, sobretudo os provenientes do Nepal, do Bangladesh, do Paquistão e da Índia, o Bairro dispõe de massagens tailandesas, de um café com serviços para imigrantes, ostentam-se nos prédios bandeiras da Guiné-Bissau, do Nepal, do Senegal e da Roménia. E para concluir diz o autor:
“Com mais de noventa anos de história, maioritariamente vividos em democracia, o Bairro das Colónias passou por mudanças significativas, mas o seu anacrónico nome permanece sem aparente contestação”.

O autor recorda que o Bairro Africano de Berlim conheceu um movimento de contestação nacional e internacional que propôs a renomeação das ruas do Bairro, que mantinham alusões às antigas colónias e a colonialistas de renome. A não existência em Lisboa de movimentos semelhantes aos de Berlim não deveria suster a ação urgente dos poderes autárquicos locais, começando eventualmente pelas placas de trânsito. Num processo que deveria conduzir à tão necessária mudança do Bairro, seria igualmente relevante considerar que as populações que lá viveram e alguns dos que ficaram, escapando à fúria dos imobiliários, associam este nome às suas geografias sentimentais. Bem explicada, a ideia de que não se deve celebrar um regime colonial e predador será certamente compreendida pela maioria.

Regressamos falando do Banco Nacional Ultramarino e de vários monumentos espalhados pela cidade.

Palácio da Ega, Arquivo Histórico Ultramarino
Associação Comercial de Lisboa - Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa
Rua de Angola, Bairro das Colónias, imagem de Jorge Ferreira, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 7 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27293: Notas de leitura (1848): "O capelão militar na guerra colonial", de Bártolo Paiva Pereira, capelão, major ref - Parte IV: "Até 1966 eram todos voluntários" (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P27303: A nossa guerra em números (39): E os "retornados" de outros impérios coloniais (França, Holanda, Grã-Bretanha, etc.) quantos foram ?


Bandeira da França, "vandalizada" com o emblema representativos dos "pieds-noirs" da Argélia.   Imagem do domínio público

Fobte: Cortesia de Wikimedia Commons



1. O "boneco" do nosso António Rosinha (*), "tuga", "colon", "retornado", leva-nos a fazer a seguinte pergunta: quantos "retornados" houve, no séc. XX, nos outros países europeus, para além de Portugal, com colónias ou protetorados que acederam à independência política ?  Casos nomeadamente da França, da Holanda, Grão-Bretanha...

Como termo de comparação, partimos da estimativa mais consensual do total geral de “retornados” (1974/76), oriundos de Angola e Moçambique: c. 500 mil / 520 mil pessoas.

Aproximadamente menos de 2/3 vieram de Angola, e pouco mais de 1/3 de Moçambique; das restantes colónias (Cabo Verde, Guiné, São Tomé) os números são residuais (**).


O caso mais notório seria, de entre os colonizadores europeus, o da França, que manteve na Argélia uma guerra prolongada e violentíssima, entre 1954 e 1962. 


 Tal como de resto não o é o termo "retornado" entre nós: de facto, havia  portugueses,  cabo-verdianos, guineenses, angolanos, moçambicanos,  goeses, e até chineses, etc., nascidos em África e para quem Portugal era o "Puto",  um país europeu, estrangeiro, distante, física, cultural e afetivamente. 

De facto, havia quem tivesse nascido em Angola ou Moçambique, de pais, avós e até bisavós oriundos de Portugal, continental e ilhas atlânticas (Madeira, Açores, Cabo-Verde) mas também de outras proveniências, e que se consideravam, a si próprios, depreciativamente, como "portugueses de 2ª"

 Em todo o caso, vinham cá de férias ou de licença graciosa ( os funcionários públicos),  vinham cá consultar o médico, ou estudar cá, etc. A universidade só tardiamente chegou a Luanda,  Nova Lisboa, Lourenço Marques... A formação das elites tinha que ter o "carimbo" de Lisboa...

Esses angolanos e moçambicanos não aceitavam ser tratados como "retornados".  Mas o "Puto" acabou por ser felizmente uma pátria de acolhimento para eles. Seriam hoje apátridas. É verdade que nem todos viajar para a antiga metrópole. Não sabemos quantos foram para  o Brasil, a África do Sul, a Venezuela...
 

A. Quantos foram os "pieds-noirs" que  sairam da Argélia, com a independência em 1962 ? (***)


É arriscado avançar com números, por causa das fontes, das metodologias, dos enviesamentos, etc.  Mas os números são necessários para termos uma noção mais aproximada das realidades complexas. É verdade que também servem para mentir, ocultar, branquear, etc.

A assistente de IA que rapa o tacho aqui e acolá, vasculha o lixo da Net, não tem espírito crítico nem muito menos empatia e compaixão, assim de rajada diz-nos logo que os "pieds-noirs" terão sido entre 650 mil e  1 milhão.  

Pés-negros ? Parece ter um sentido pejorativo, tal como "tuga" (no tempo da guerra colonial).. O nosso "retornado", apesar de tudo, parece ser mais "neutro", mas não é menos impreciso e redutor... A língua tem sempre estas limitações, e a realidade é sempre mais dinâmica, espessa e complexa.

Entenda-se: "pieds-noirs" = colonos europeus, principalmente franceses, que  saíram da Argélia após a independência em 1962, buscando refúgio sobretudo na França. 

Mesmo o termo "colono"  é impreciso: o missionário, o professor, o topógrafo, o médico,  etc., são colonos ?

O número exato varia conforme a fonte:

(i) vários relatos históricos estabelecem que cerca de 800 mil foram evacuados para França e aproximadamente 200 mil  permaneceram temporariamente na Argélia, sendo que o número dos que permaneceram foi se reduzindo rapidamente; 

(ii) algumas fontes falam em “quase 1 milhão” de refugiados (outro termo que também não é "neutro");

(iii) registros administrativos (de 1962)  apontam para  cerca de 650 mil a  680 mil os recém-chegados à França só nesse ano;

(iv) considerando também os judeus argelinos (alguns, seguramente sefarditas, de origem ibérica, c. 130 mil), bem como outros europeus, estima-se que até 1.050.000 pessoas de origem europeia viviam na Argélia no início da década de 1960; 

(v) sabe-se que a esmagadora maioria partiu com a independência, depois de uma guerra que foi uma tragédia.

O êxodo ocorreu de forma acelerada, em poucos meses, tal como em Angola e Moçambique, fruto do temor de represálias e das mudanças políticas, económicas e sociais radicais após o fim do domínio francês.

Claro que a saída dos "pieds-noirs" teve profundas consequências sociais e políticas tanto na Argélia como na França, marcando o pós-colonialismo no Mediterrâneo ocidental.


B. Quanto a holandeses (ou neerlandeses, como se diz hoje), saídos das ex-colónias dos Países Baixos...

O número de "retornados holandeses"  variaram bastante conforme o contexto histórico de cada território. 

Não houve um êxodo tão em massa e tão concentrado como no caso dos "pieds-noirs" da Argélia, nem do "ultramar português" (Angola, Moçambique...).

 Vejamos caso a caso:

(i) Índias Orientais Holandesas (Indonésia)

após a independência (1949), cerca de 300 /350  mil "colonos" emigraram para a Holanda entre as décadas de 1940 e 1960; mas nesse número não estão  apenas holandeses "puros" (de sangue),  mas também mestiços euro-asiáticos (os chamados "indos"), judeus, chineses e outros grupos ligados à administração colonial; os tais "indos " que migraram para a Holanda, serão estimados em 200 mil;

(ii) Suriname: 

com a independência em 1975,  quase metade da população original (estimada entre 100/150 mil pessoas) mudou-se para a Holanda, numa corrida migratória antes do encerramento das fronteiras (foram sobretudo descendentes de holandeses e outros grupos ligados à administração colonial);

(iii) Antilhas Holandesas: 

houve um  fluxo menor, mas constante, das ex-colónias caribenhas (Curaçao, Aruba, Sint Maarten) para a Holanda, especialmente em contextos de crise, totalizando hoje cerca de 200 mil descendentes de caribenhos holandeses  a viver  nos Países Baixos;

(iv) África do Sul: 

após o fim da dominação holandesa no Cabo (1815), muitos dos bóeres (palavra de origem neerlandesa, quer dizer isso mesmo, colono, descendente de holandeses) permaneceram na região e formaram comunidades que deram origem aos atuais africâneres; neste caso,  não houve uma saída massiva para a Holanda.

Mais especificamente os africâneres 
são um grupo étnico  sul-africano descendente de colonos, protestantes calvinistas,  europeus, principalmente holandeses, alemães e franceses (huguenotes), que chegaram ao Cabo da Boa Esperança a partir do século XVII. 

Eles falam africâner, uma língua germânica, que evoluiu do dialeto holandês dessa época;  desempenharam um papel central na história da África do Sul, incluindo o regime do apartheid (que vigorou de 1948 a 1994); historicamente, eles dominavam  setores como a política, o comércio  e a agricultura, mas a minoria branca, incluindo os africâneres,  é hoje uma pequena percentagem da população. 

Em resumo: a saída dos holandeses das ex-colónias foi significativa na Indonésia (após 1949) e em Suriname (após 1975), mas comparativamente menos dramática que a dos "pieds-noirs" na Argélia. ou das colónias / províncias ultramarinas portuguesas (há quem não goste do termo "colónias),

A diáspora holandesa mundial contemporânea reflete essas migrações, com estimativa de até 15 milhões de pessoas de origem holandesa/neerlandesa e seus descendentes vivendo fora da Holanda, incluindo grandes comunidades vindas das antigas colónias.  

C. Quanto aos britânicos, não há um número consolidado ou uma estimativa global de “retornados”, na sequência  das várias independências dos territórios do império onde o sol nunca se punha no tempo da Raínha Vitória...

Os retornos existiram, mas dispersos, com destaque para expulsões pontuais (ex: Uganda, 1972,  cerca de 27.000).

O fenómeno é amplamente documentado no caso português, mas não tem equivalente em escala ou identificação no caso britânico.


D. Os espanhóis, por sua vez,  não tiveram um fenómeno de "retornados" semelhante ao caso português.

A descolonização espanhola  (grande potência imperial) ocorreu maioritariamente nas Américas no século XIX, com processos de independência que resultaram na formação de vários países novos entre 1810 e 1824, e não no século XX como nos impérios britânico, francês ou português; esses processos de independência foram guerras e movimentos políticos e sociais que levaram à saída da Espanha das colónias americanas, mas não provocaram um retorno em massa de colonos espanhóis para a Espanha equivalente ao nosso caso no pós-25 de Abril.

Ainda há os casos residuais dos italianos, alemães, belgas... E até dos suecos, que, ao que parece,  também tiveram colónias.

(Pesquisa: LG + Assistente de IA / Perplexity, ChatGPT, Gemini...)

(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27288: Humor de caserna (214): O dono daquilo tudo, do Cuanza ao Cunene, o "colón", o retornado", o "coronel" e o "grão-tabanqueiro" António Rosinha

(**) Vd. poste de 12 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27113: A nossa guerra em números (31): Angola e Moçambique: População europeia total: ~535 mil / 600 mil | Total geral de "retornados" (incluindo os restantes territórios): c. 500 mil / 520 mil pessoas

(***) Último poste da série > 7 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27191: A nossa guerra em números (38): Em 27 de maio de 1974, existiriam no CTIG 1960 "bombas de napalm" (1170 de 350 litros e 790 de 100 litros)... ou apenas os invólucros

Guiné 61/74 - P27302: Parabéns a você (2425): Manuerl Resende, ex-Alf Mil Art da CCAÇ 2585 / BCAÇ 2884 (Jolmete, 1969/71)

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Nota do editor

Último post da série de 9 de Outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27298: Parabéns a você (2424): Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 414 (Catió e Ganjola - Guiné e Ilha do Sal - Cabo Verde, 1963/65)

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27301: Efemérides (469): Rescaldo do XXX Convívio dos Antigos Combatentes da Guiné da Vila de Guifões, levado a efeito no passado dia 5 de Outubro (Albano Costa, ex-1.º Cabo At Inf)


1. Mensagem do nosso camarada e amigo Albano Costa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 4150 (Bigene e Guidaje, 1973/74), com data de 8 de outubro de 2025:

XXX Convívio dos Antigos Combatentes na Guiné da Vila de Guifões

Dia 5 de Outubro de 2025

Pelas 9 horas da manhã, ainda em Guifões, foi feita a habitual homenagem do dia 5 de Outubro a todos os Combatentes do Ultramar com a deposição de uma coroa de flores no Monumento alusivo aos Combatentes.

Seguidamente rumámos em dois autocarros em direção ao Marco de Canaveses, onde fizemos uma visita, e de seguida fomos para o local reservado para a confraternização que foi na Quintinha dos Queiroses, em Maureles.

O resto do dia foi passado em franca amizade entre todos os presentes.

Antes do corte do bolo foi cantado o Hino Nacional e entregue uma lembrança a cada combatente na Guiné e uma flor a todas as senhoras.

Por volta das 19 horas foi o regresso ao ponto de partida.

A Comissão Organizadora, mais uma vez, agradece ao Eng. Pedro Gonçalves, Presidente da União de Freguesias de Guifões, Custóias e Leça do Balio, todo o apoio prestado, na oferta da coroa, das flores e das lembranças.

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Nota do editor

Último post da série de 5 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27286: Efemérides (468): Faz agora 54 anos: em 1 de outubro de 1971, a CCS/BCAÇ 2912 e a CCAÇ 2700 sofrem uma emboscada, num patrulhanento auto noturno a aldeias em A/D, na picada Duas Fontes-Bangacia, de que resultaram 8 mortos (5 no local, 3 no HM 241). Mais uma vez a CECA não reportou este revés das NT, no livro sobre a atividade operacional de 1971