Foto: Capa de Corpo Ausente (novelas), de Mário Braga. Lisboa: Portugália. Editora. 1961 (Contemporânea, 26). Autor da capa: João da Câmara Leme.
Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > 1973 > CART 3493 > Aquartelamento de Mansambo (donde partiu o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos, em 27 de Fevereiro de 1969, para a Operação Fado Hilário, a Galoiel, juntamente com forças da unidade de quadrícula local, na época a CART 2339, a que pertencia o Alf Mil Torcato Mendonça). Reconhecem-se na fotografia soldados (africanos) da CCAÇ 12, em preparação para mais uma operação no regulado do Corubal.
Foto: © Sousa de Castro (2005). Direitos reservados.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > 1970 > Vista aérea do aquartelamento. Ao fundo, da esquerda para a direita, a estrada Bambadinca-Xitole. Na foto é vísivel a célebre árvore dos 17 passarinhos que servia de mira... para os ataques do IN.
Foto: © Humberto Reis (2006) . Direitos reservados.
Texto enviado em 2 de Fevereiro de 2007. Continuação das memórias do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).
Fado Hilário
por Beja Santos
A 26 de Fevereiro, a meio da manhã, chegou a Missirá o Pel Caç Nat 63 que aqui vem ficar enquanto partimos para a Operação Fado Hilário a desenrolar em Mansambo, indo connosco o Pelotão de Milícias nº 102, de Finete, ficando neste alguma milícia de Missirá e parte do Pel Caç Nat 54. Antes de partir, depois de ter apresentado o aquartelamento à tropa que vai ficar, peço ajuda ao Cherno para começar a arrumar os meus bens, já que de Mansambo partirei para Bissau, para ser operado.
Primeiro, os discos. Trouxe tudo o que tinha: óperas como a Madame Butterfly, La Traviata, Otelo, D. Carlos, mas também a Salomé, O Crepúsculo dos Deuses, o Parsifal; música de câmara de Haydn, Mozart, Beethoven, Prokofiev; recitais de piano, como o de Samson François a tocar os prelúdios de Chopin, oferta da Cristina; Adriano de Correia Oliveira e Zeca Afonso, até com compras feitas em Bissau, no início de Agosto passado. O Cherno e eu limpamos os discos enquanto George London, uma das mais lindas vozes de barítono de todos os tempos, enche os ares com árias de Verdi e Massenet.
Seguem-se os livros, espalhados, sublinhados, maltratados e por vezes permutados. Não falo do que já aqui foi invocado, recordo os ensaios, os livros sobre religião, história, antropologia e sociologia que estou a arrumar pela última vez, sem o saber. Naqueles dois baús estão os livros que fui acumulando desde os 14 anos, as lembranças dos amigos como aquela espantosa obra Espera de Deus, de Simone Weil que o Carlos Sampaio me ofereceu na véspera de embarque, que li e reli sofregamente e que mais tarde aqui faremos referência graças à tradução portuguesa que encontrei recentemente na Assírio Alvim.
Estão aqui lembranças das minhas economias, descobertas que me deslumbraram nos alfarrabistas onde passava as minhas tardes de sábado , estão aqui os meus cinco sentidos, um dos meus sedimentos culturais, as leituras da minha paz, a minha companhia entre as emboscadas nocturnas, as obras em Missirá, os patrulhamentos a Mato de Cão, a vigilância que procuro responsavelmente montar no Cuor. São livros preciosos de estudo, na sua maioria, o destino pregou-me uma partida, acabei por me centrar na ficção, com os meses que virão vou descobrir a perda de capacidade de concentração e a propensão para leituras menos comprometidas.
Depois, arrumo a documentação que vou entregar ao cuidado do Casanova, se bem que haja duas diligências a prover no processo da Fatu e dos seus dois filhos brutalmente sinistrados com uma granada de fumos, em Finete, em 1967. A seguir, dou ordem ao meu correio, recebido nos últimos 7 meses: as cartas da Cristina e da minha mãe, a companhia dos amigos em toneladas de aerogramas, o apoio permanente, do Ruy Cinatti, do Carlos Sampaio e de tantos outros. Ordeno as cartas e os aerogramas dentro de uma caixa de sapatos. Faço a mala com roupa para duas/três semanas, escovo a farda nº 2 que não uso desde que saí de Bissau. Nessa altura, lembro ao Cherno que é preciso remover várias caixas de munições e entregar os livros de abastecimentos ao cuidado do Alcino Barbosa, o 1º Cabo que recebeu esta incumbência, coadjuvando o Furriel Pires.
O Cherno olha-me fixamente e adianta:
-Ainda não lhe disse mas vou de férias. Vou contigo, vou para Bissau, levo a mala e depois vou levar água e bananas ao hospital. Quem vai ficar aqui a tomar conta da cubata de Alfero é o Ussumane Baldé. O guarda-costas anda sempre com Alfero.
A voz embargou-se-me, eu estava tolhido pela comoção, e só recentemente me recordei das visitas do Cherno ao Hospital dos Capuchos, quando fui operado a uma hérnia discal, em 1995. O Cherno aparecia todos os dias com duas garrafas de 1,5 litros de água e quilos de bananas monumentais. A explicação que me deu era muito simples:
-A água faz sempre bem e se a comida não for boa a banana aconchega.
Pois bem, está tudo arrumado, olho à volta, detenho-me a arrumar a colcha da minha cama e saio da cubata enquanto o Cherno tira as esteiras do chão e varre o espaço que ele assumiu sob a sua total responsabilidade. Cá fora , bem fardados, aguarda-me o Pel Caç Nat 52 em peso. Binta, a minha lavadeira, não esconde a sua ansiedade:
-Vai embora? Não me paga? Fica em Bissau? - Explico-lhe que vou primeiro a Mansambo e que só dentro de três dias é que parto para Bissau e virei a andar melhor.
Perguntei há pouco tempo ao Queta Baldé se a Anda Cá tinha deixado gente doente, impossibilitada de nos acompanhar a Mansambo:
- Estávamos muito tristes com a perna quebrada do Fodé, sabíamos que nosso Alfero estava a sofrer, decidimos ir todos. - E Queta que tem a memória prodigiosa que já viram, adiantou:
-Ia o Teixeira com o rádio, o Domingos com a metralhadora, o Ussumane, Mamadu Silá, Mamadu Djau, Cherno, Campino, Serifo, Tomani, Sadjó, Silá Baldé, Camara, o Doutor e eu, mais os cabos Alcino e Queirós. Levámos duas bazucas, um morteiro 60 e 4 apontadores dilagrama. Não se esqueça que o Alferes Reis, aquele sapador que armadilhou tudo à volta de Missirá já andava aos gritos com o Alferes do 63, dizendo que quem mandava ali era ele.
Depois de cumprimentar a população e de abraçar o régulo, partimos. Em Finete, juntou-se Bacari Soncó, mas antes fui cumprimentar a família de Fodé Dahaba. Gente da CCS e do 54 desejaram-nos boa sorte. Em Bambadinca, fui recebido por o Major das Operações, desta vez lacónico e que soletrava as sílabas como lâminas de gelo:
-Veja lá se depois da barraca de Madina levam desta vez a missão até ao fim. Já lhe expliquei que vão à região Galoiel, confirmar que o acampamento inimigo está abandonado. Não é nada de especial, mas pode haver surpresas.
Chegámos a Mansambo ao anoitecer, era a primeira vez que visitava este quartel, quase novo em folha (2). Para quem, como eu, estava a ser demolido por não saber demarcar quartel da tabanca, dei comigo a pensar onde estaria a população civil de Mansambo. Só mais tarde, quando comecei a fazer patrulhamentos na periferia de Bambadinca e a coordenar colunas ao Xitole é que fiquei com a ideia do ordenamento das populações. O Capitão Laranjeira Henriques, de quem me tornei amigo, recebeu-nos com afabilidade e pela primeira vez desde que cheguei à Guiné fui inteirado da missão de combate, com rigor e objectividade.
Depois de jantar, recordo que fui encontrar Cherno, Mamadu Djau e Tomani a rezar. Quando recuei para não os pertubar, Mamadu tocou-me nas costas e disse-me:
-Estamos a rezar a Deus por Fodé Dahaba. Junta-te a nós. - Assim aconteceu, ergui as mãos e mais do que rezar desejei que o tempo passasse rapidamente para eu poder entrar numa enfermaria num hospital de Bissau.
Ao romper da alva, partimos para Galoiel . Socorri-me da história da operação e pedi confirmações a Queta, ele anuiu que havia dois picadores, Lati Baldé e Massamba Buaro. Ainda me atrevi a dizer:
-Queta, não será Massamba Buapó? É o que está escrito no relatório. - Ele foi categórico:
- Não, era Buaro, conhecia-o perfeitamente das feiras de Amedelai, Taibatá e Samba Silate, ele era da família Buaro e ficou muito ferido.
De facto, pouco passava uma hora após a saída de Mansambo quando foi detectada uma mina antipessoal, Buaro terá picado com demasiada força a tampa da mina que rebentou, ferindo gravemente os dois. Vem um grupo de combate de Mansambo que os transportou e eles foram evacuados.
Atingimos Galoiel três horas depois, e pela primeira vez entrei num acampamento abandonado, com cubatas desconjuntadas, sem colmo, estacas calcinadas, mostraram-me o local onde os rebeldes abrigavam as suas metralhadoras, não havia ali vestígios de que o inimigo regressara depois de ter sido desalojado em fins de Novembro passado. De acordo com a missão seguimos para o rio Samba Uriel onde ouvimos rajadas de metralhadora. Queta confirmou:
- Eu sabia, andámos demasiados expostos junto das lalas, alguém nos viu, aquele sinal da metralhadora era um código. Depois, a avioneta ajudava a denunciar-nos.
Procedeu-se à batida deste rio, apanhámos um trilho que servia anteriormente ligação entre dois povoados que tinham desaparecido com a luta armada e começava a escurecer quando regressamos a Mansambo. Na manhã seguinte, numa atmosfera de cordialidade que até agora não provara, regressámos a Bambadinca e daqui seguimos para Finete e Missirá.
Conversei nessa noite longamente com o Reis e o Casanova, a ambos entreguei memorandos que organizara com a escrita hábil do Pires: para além das idas obrigatórias a Mato de Cão, o plano das obras em dois abrigos, o recurso ao Sintex para trazer o material de construção civil que nos pertence e está no depósito de engenharia em Bambadinca; as obras em Finete, o pequeno curso de bazuca que será dado pelo Campino e Mamadu Djau. Apelei vezes sem conta a que o Reis não se excedesse em novos armadilhamentos, pedindo inclusivamente ao Pires que o acompanhasse para elaborar o plano dos novos engenhos.
Estou derreado, amanhã parto para Bissau. Por impulso, escrevinho os meus últimos volteios líricos:
- Os meus feridos martelam esta floresta e deslizam em abóbodas de gás, como se houvesse um concerto polar, uma pétala encravada à porta da minha morada. Retalho, esventro, entrego à pira recordações avulsas, iludindo a dor daqueles que acabaram de partir.
Não sei o que fazer à minha solidão, há silêncios que ribombam dentro desta cubata onde não sei resolver dolorosos conflitos sentimentais que estalaram entre pessoas que amo profundamente. Magoado com a minha condição, garatujo uma queixa que intitulei:
- Estou na guerra, mãe.
É um papel amarrotado, inconsequente e hoje risível, onde escrevo:
- Tu és a minha primeira testemunha e a minha ancestral companhia. És o meu campanário, uma ternura balouçante onde se redigem as poderosas leis onde elevo o meu coração ao cesto da gávea.
Dominado pela comoção e por aquela mágoa sem nenhuma direcção, desato a chorar convulsivamente no silêncio da noite. São os nervos de quem vai partir para Bissau, nada sabe do seu regresso, está tomado por negros presságios.
Uma palavra sobre as últimas leituras em Missirá. Li Corpo Ausente, de Mário Braga. É um conjunto de novelas que falam exactamente de ausência, rompendo os muros dos códigos não realistas: o morto que parte e é negócio para cangalheiros, incapazes de perceber a dor e a fragilidade de quem contrata um serviço em desequilíbrio; um espólio guardado num baú que esperou um amor intenso para ser posto à luz do dia; um cauteleiro fantasma que entra em pesadelo, misturando a realidade com a ficção; uma noite de insónia onde o insone reorganiza o passado e glorifica o futuro; um grupo de resistentes que atropelam um transeunte e não resistem à solidariedade.
Afago o livro quando o arrumo no baú, mal sabendo que o autor me oferecerá um igual exemplar décadas depois, pondo termo a uma ausência. E leio também Simenon e o seu herói mais popular, o Comissário Maigret. Mal sabia então que Maigret se iria alcandorar às minhas leituras predilectas. Então, deliciei-me com uma história rocambolesca em que Madame Maigret tomou conta de uma criança, perdeu a consulta do dentista mas ajudou o mais humano dos comissário de polícia a desvendar uma história intrincada, de final sombrio.
Saio de Missirá olho tudo bem à volta, como se estivesse a gravar toda a ternura da gente e do meio. Ainda não sei que esta Missirá já não vai existir quando eu regressar. E pronto, uma viatura leva-me a Bafatá e daqui parto para Bissau. O Cherno seguia comigo e perdeu completamente a timidez . Conversávamos, ele tinha a minha mala na mão, de repente, na pista do aeroporto de Bafatá, avançou para um piloto e perguntou:
-Não há um lugar para mim? Ele vai para o hospital e eu só tenho barco à noite para Bissau. Eu sou o guarda-costas de Alfero. Por favor.
O piloto olhou, depois olhou-me, sorriu e disse:
- Estás com sorte, sobe. Tu mereces seguir para Bissau.
E agora vou-vos contar a minha ida ao Hospital Militar 241.
________________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 23 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1542: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (34): Uma desastrada e desastrosa operação a Madina/Belel
(2) Troca de correspondência entre o Beja Santos (Pel Caç Nat 52, 1968/70) e o Torcato Mendonça (CART 2339, 1968/69):
Texto enviado em 2 de Fevereiro de 2007. Continuação das memórias do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).
Fado Hilário
por Beja Santos
A 26 de Fevereiro, a meio da manhã, chegou a Missirá o Pel Caç Nat 63 que aqui vem ficar enquanto partimos para a Operação Fado Hilário a desenrolar em Mansambo, indo connosco o Pelotão de Milícias nº 102, de Finete, ficando neste alguma milícia de Missirá e parte do Pel Caç Nat 54. Antes de partir, depois de ter apresentado o aquartelamento à tropa que vai ficar, peço ajuda ao Cherno para começar a arrumar os meus bens, já que de Mansambo partirei para Bissau, para ser operado.
Primeiro, os discos. Trouxe tudo o que tinha: óperas como a Madame Butterfly, La Traviata, Otelo, D. Carlos, mas também a Salomé, O Crepúsculo dos Deuses, o Parsifal; música de câmara de Haydn, Mozart, Beethoven, Prokofiev; recitais de piano, como o de Samson François a tocar os prelúdios de Chopin, oferta da Cristina; Adriano de Correia Oliveira e Zeca Afonso, até com compras feitas em Bissau, no início de Agosto passado. O Cherno e eu limpamos os discos enquanto George London, uma das mais lindas vozes de barítono de todos os tempos, enche os ares com árias de Verdi e Massenet.
Seguem-se os livros, espalhados, sublinhados, maltratados e por vezes permutados. Não falo do que já aqui foi invocado, recordo os ensaios, os livros sobre religião, história, antropologia e sociologia que estou a arrumar pela última vez, sem o saber. Naqueles dois baús estão os livros que fui acumulando desde os 14 anos, as lembranças dos amigos como aquela espantosa obra Espera de Deus, de Simone Weil que o Carlos Sampaio me ofereceu na véspera de embarque, que li e reli sofregamente e que mais tarde aqui faremos referência graças à tradução portuguesa que encontrei recentemente na Assírio Alvim.
Estão aqui lembranças das minhas economias, descobertas que me deslumbraram nos alfarrabistas onde passava as minhas tardes de sábado , estão aqui os meus cinco sentidos, um dos meus sedimentos culturais, as leituras da minha paz, a minha companhia entre as emboscadas nocturnas, as obras em Missirá, os patrulhamentos a Mato de Cão, a vigilância que procuro responsavelmente montar no Cuor. São livros preciosos de estudo, na sua maioria, o destino pregou-me uma partida, acabei por me centrar na ficção, com os meses que virão vou descobrir a perda de capacidade de concentração e a propensão para leituras menos comprometidas.
Depois, arrumo a documentação que vou entregar ao cuidado do Casanova, se bem que haja duas diligências a prover no processo da Fatu e dos seus dois filhos brutalmente sinistrados com uma granada de fumos, em Finete, em 1967. A seguir, dou ordem ao meu correio, recebido nos últimos 7 meses: as cartas da Cristina e da minha mãe, a companhia dos amigos em toneladas de aerogramas, o apoio permanente, do Ruy Cinatti, do Carlos Sampaio e de tantos outros. Ordeno as cartas e os aerogramas dentro de uma caixa de sapatos. Faço a mala com roupa para duas/três semanas, escovo a farda nº 2 que não uso desde que saí de Bissau. Nessa altura, lembro ao Cherno que é preciso remover várias caixas de munições e entregar os livros de abastecimentos ao cuidado do Alcino Barbosa, o 1º Cabo que recebeu esta incumbência, coadjuvando o Furriel Pires.
O Cherno olha-me fixamente e adianta:
-Ainda não lhe disse mas vou de férias. Vou contigo, vou para Bissau, levo a mala e depois vou levar água e bananas ao hospital. Quem vai ficar aqui a tomar conta da cubata de Alfero é o Ussumane Baldé. O guarda-costas anda sempre com Alfero.
A voz embargou-se-me, eu estava tolhido pela comoção, e só recentemente me recordei das visitas do Cherno ao Hospital dos Capuchos, quando fui operado a uma hérnia discal, em 1995. O Cherno aparecia todos os dias com duas garrafas de 1,5 litros de água e quilos de bananas monumentais. A explicação que me deu era muito simples:
-A água faz sempre bem e se a comida não for boa a banana aconchega.
Pois bem, está tudo arrumado, olho à volta, detenho-me a arrumar a colcha da minha cama e saio da cubata enquanto o Cherno tira as esteiras do chão e varre o espaço que ele assumiu sob a sua total responsabilidade. Cá fora , bem fardados, aguarda-me o Pel Caç Nat 52 em peso. Binta, a minha lavadeira, não esconde a sua ansiedade:
-Vai embora? Não me paga? Fica em Bissau? - Explico-lhe que vou primeiro a Mansambo e que só dentro de três dias é que parto para Bissau e virei a andar melhor.
Perguntei há pouco tempo ao Queta Baldé se a Anda Cá tinha deixado gente doente, impossibilitada de nos acompanhar a Mansambo:
- Estávamos muito tristes com a perna quebrada do Fodé, sabíamos que nosso Alfero estava a sofrer, decidimos ir todos. - E Queta que tem a memória prodigiosa que já viram, adiantou:
-Ia o Teixeira com o rádio, o Domingos com a metralhadora, o Ussumane, Mamadu Silá, Mamadu Djau, Cherno, Campino, Serifo, Tomani, Sadjó, Silá Baldé, Camara, o Doutor e eu, mais os cabos Alcino e Queirós. Levámos duas bazucas, um morteiro 60 e 4 apontadores dilagrama. Não se esqueça que o Alferes Reis, aquele sapador que armadilhou tudo à volta de Missirá já andava aos gritos com o Alferes do 63, dizendo que quem mandava ali era ele.
Depois de cumprimentar a população e de abraçar o régulo, partimos. Em Finete, juntou-se Bacari Soncó, mas antes fui cumprimentar a família de Fodé Dahaba. Gente da CCS e do 54 desejaram-nos boa sorte. Em Bambadinca, fui recebido por o Major das Operações, desta vez lacónico e que soletrava as sílabas como lâminas de gelo:
-Veja lá se depois da barraca de Madina levam desta vez a missão até ao fim. Já lhe expliquei que vão à região Galoiel, confirmar que o acampamento inimigo está abandonado. Não é nada de especial, mas pode haver surpresas.
Chegámos a Mansambo ao anoitecer, era a primeira vez que visitava este quartel, quase novo em folha (2). Para quem, como eu, estava a ser demolido por não saber demarcar quartel da tabanca, dei comigo a pensar onde estaria a população civil de Mansambo. Só mais tarde, quando comecei a fazer patrulhamentos na periferia de Bambadinca e a coordenar colunas ao Xitole é que fiquei com a ideia do ordenamento das populações. O Capitão Laranjeira Henriques, de quem me tornei amigo, recebeu-nos com afabilidade e pela primeira vez desde que cheguei à Guiné fui inteirado da missão de combate, com rigor e objectividade.
Depois de jantar, recordo que fui encontrar Cherno, Mamadu Djau e Tomani a rezar. Quando recuei para não os pertubar, Mamadu tocou-me nas costas e disse-me:
-Estamos a rezar a Deus por Fodé Dahaba. Junta-te a nós. - Assim aconteceu, ergui as mãos e mais do que rezar desejei que o tempo passasse rapidamente para eu poder entrar numa enfermaria num hospital de Bissau.
Ao romper da alva, partimos para Galoiel . Socorri-me da história da operação e pedi confirmações a Queta, ele anuiu que havia dois picadores, Lati Baldé e Massamba Buaro. Ainda me atrevi a dizer:
-Queta, não será Massamba Buapó? É o que está escrito no relatório. - Ele foi categórico:
- Não, era Buaro, conhecia-o perfeitamente das feiras de Amedelai, Taibatá e Samba Silate, ele era da família Buaro e ficou muito ferido.
De facto, pouco passava uma hora após a saída de Mansambo quando foi detectada uma mina antipessoal, Buaro terá picado com demasiada força a tampa da mina que rebentou, ferindo gravemente os dois. Vem um grupo de combate de Mansambo que os transportou e eles foram evacuados.
Atingimos Galoiel três horas depois, e pela primeira vez entrei num acampamento abandonado, com cubatas desconjuntadas, sem colmo, estacas calcinadas, mostraram-me o local onde os rebeldes abrigavam as suas metralhadoras, não havia ali vestígios de que o inimigo regressara depois de ter sido desalojado em fins de Novembro passado. De acordo com a missão seguimos para o rio Samba Uriel onde ouvimos rajadas de metralhadora. Queta confirmou:
- Eu sabia, andámos demasiados expostos junto das lalas, alguém nos viu, aquele sinal da metralhadora era um código. Depois, a avioneta ajudava a denunciar-nos.
Procedeu-se à batida deste rio, apanhámos um trilho que servia anteriormente ligação entre dois povoados que tinham desaparecido com a luta armada e começava a escurecer quando regressamos a Mansambo. Na manhã seguinte, numa atmosfera de cordialidade que até agora não provara, regressámos a Bambadinca e daqui seguimos para Finete e Missirá.
Conversei nessa noite longamente com o Reis e o Casanova, a ambos entreguei memorandos que organizara com a escrita hábil do Pires: para além das idas obrigatórias a Mato de Cão, o plano das obras em dois abrigos, o recurso ao Sintex para trazer o material de construção civil que nos pertence e está no depósito de engenharia em Bambadinca; as obras em Finete, o pequeno curso de bazuca que será dado pelo Campino e Mamadu Djau. Apelei vezes sem conta a que o Reis não se excedesse em novos armadilhamentos, pedindo inclusivamente ao Pires que o acompanhasse para elaborar o plano dos novos engenhos.
Estou derreado, amanhã parto para Bissau. Por impulso, escrevinho os meus últimos volteios líricos:
- Os meus feridos martelam esta floresta e deslizam em abóbodas de gás, como se houvesse um concerto polar, uma pétala encravada à porta da minha morada. Retalho, esventro, entrego à pira recordações avulsas, iludindo a dor daqueles que acabaram de partir.
Não sei o que fazer à minha solidão, há silêncios que ribombam dentro desta cubata onde não sei resolver dolorosos conflitos sentimentais que estalaram entre pessoas que amo profundamente. Magoado com a minha condição, garatujo uma queixa que intitulei:
- Estou na guerra, mãe.
É um papel amarrotado, inconsequente e hoje risível, onde escrevo:
- Tu és a minha primeira testemunha e a minha ancestral companhia. És o meu campanário, uma ternura balouçante onde se redigem as poderosas leis onde elevo o meu coração ao cesto da gávea.
Dominado pela comoção e por aquela mágoa sem nenhuma direcção, desato a chorar convulsivamente no silêncio da noite. São os nervos de quem vai partir para Bissau, nada sabe do seu regresso, está tomado por negros presságios.
Uma palavra sobre as últimas leituras em Missirá. Li Corpo Ausente, de Mário Braga. É um conjunto de novelas que falam exactamente de ausência, rompendo os muros dos códigos não realistas: o morto que parte e é negócio para cangalheiros, incapazes de perceber a dor e a fragilidade de quem contrata um serviço em desequilíbrio; um espólio guardado num baú que esperou um amor intenso para ser posto à luz do dia; um cauteleiro fantasma que entra em pesadelo, misturando a realidade com a ficção; uma noite de insónia onde o insone reorganiza o passado e glorifica o futuro; um grupo de resistentes que atropelam um transeunte e não resistem à solidariedade.
Afago o livro quando o arrumo no baú, mal sabendo que o autor me oferecerá um igual exemplar décadas depois, pondo termo a uma ausência. E leio também Simenon e o seu herói mais popular, o Comissário Maigret. Mal sabia então que Maigret se iria alcandorar às minhas leituras predilectas. Então, deliciei-me com uma história rocambolesca em que Madame Maigret tomou conta de uma criança, perdeu a consulta do dentista mas ajudou o mais humano dos comissário de polícia a desvendar uma história intrincada, de final sombrio.
Saio de Missirá olho tudo bem à volta, como se estivesse a gravar toda a ternura da gente e do meio. Ainda não sei que esta Missirá já não vai existir quando eu regressar. E pronto, uma viatura leva-me a Bafatá e daqui parto para Bissau. O Cherno seguia comigo e perdeu completamente a timidez . Conversávamos, ele tinha a minha mala na mão, de repente, na pista do aeroporto de Bafatá, avançou para um piloto e perguntou:
-Não há um lugar para mim? Ele vai para o hospital e eu só tenho barco à noite para Bissau. Eu sou o guarda-costas de Alfero. Por favor.
O piloto olhou, depois olhou-me, sorriu e disse:
- Estás com sorte, sobe. Tu mereces seguir para Bissau.
E agora vou-vos contar a minha ida ao Hospital Militar 241.
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Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 23 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1542: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (34): Uma desastrada e desastrosa operação a Madina/Belel
(2) Troca de correspondência entre o Beja Santos (Pel Caç Nat 52, 1968/70) e o Torcato Mendonça (CART 2339, 1968/69):
Assunto - Operação Fado Hilário, Galoiel, Mansambo, 27 de Fevereiro de 1969
(i) Mensagem do Beja Santos > Caro Torcato: Os nossos destinos cruzaram-se nessa operação em que se regressou a Galoiel, para se confirmar que estava às moscas.Tens lembrança, fotografias (das falantes!), recordas o picador que ficou sinistrado? Aguardo uma grande surpresa da tua memória elefantina, Mário Beja Santos
(ii) Resposta do Torcato Mendonça >
Beja Santos: Creio não ter participado nesta Operação. Cheguei na véspera, a Mansambo, vindo de férias. Estive na destruição do Galoiel em 28 de Novembro de 1968. Posso lá ter ido, fui a tantas…
Nesta, participaram 3 Grupos da CART 2339, o Pel Caç Nat 52 e Milícias de Finete – diz o Historial da 2339, que tem falhas.
Não tenho fotos. Infelizmente muito desse material, desapareceu… as tracejantes e a cobertura das moranças não conjugavam.
Efectivamente o IN (Turras) tinha abandonado o acampamento. Diz o breve relatório – ouviu-se um tiro, de caçador IN… Pelas 06h15, o picador Ladi Baldé detectou mina A/P… O picador Mamasamba Buero para verificar, aproximou-se, accionou a mina e ficaram ambos feridos…Foram evacuados para Mansambo… As NT prosseguiram, verificaram a destruição de Galoiel… deram uma volta, para verificar o trilho Demba Danejo-Biro e regressaram, pelas 16h30 ao Quartel.
Sabes eu afastei-me daquilo até Maio de 2006. Deram-me a conhecer o Blogue, do Luís Graça, …e tenho recordado. De quando em vez um escrito.
É o que sei sobre o Fado Hilário… Raio de nome! Pobre fado…pobre Hilário. Coimbra que lhes perdoe!
Meu Caro, um abraço, Torcato Mendonça.
(i) Mensagem do Beja Santos > Caro Torcato: Os nossos destinos cruzaram-se nessa operação em que se regressou a Galoiel, para se confirmar que estava às moscas.Tens lembrança, fotografias (das falantes!), recordas o picador que ficou sinistrado? Aguardo uma grande surpresa da tua memória elefantina, Mário Beja Santos
(ii) Resposta do Torcato Mendonça >
Beja Santos: Creio não ter participado nesta Operação. Cheguei na véspera, a Mansambo, vindo de férias. Estive na destruição do Galoiel em 28 de Novembro de 1968. Posso lá ter ido, fui a tantas…
Nesta, participaram 3 Grupos da CART 2339, o Pel Caç Nat 52 e Milícias de Finete – diz o Historial da 2339, que tem falhas.
Não tenho fotos. Infelizmente muito desse material, desapareceu… as tracejantes e a cobertura das moranças não conjugavam.
Efectivamente o IN (Turras) tinha abandonado o acampamento. Diz o breve relatório – ouviu-se um tiro, de caçador IN… Pelas 06h15, o picador Ladi Baldé detectou mina A/P… O picador Mamasamba Buero para verificar, aproximou-se, accionou a mina e ficaram ambos feridos…Foram evacuados para Mansambo… As NT prosseguiram, verificaram a destruição de Galoiel… deram uma volta, para verificar o trilho Demba Danejo-Biro e regressaram, pelas 16h30 ao Quartel.
Sabes eu afastei-me daquilo até Maio de 2006. Deram-me a conhecer o Blogue, do Luís Graça, …e tenho recordado. De quando em vez um escrito.
É o que sei sobre o Fado Hilário… Raio de nome! Pobre fado…pobre Hilário. Coimbra que lhes perdoe!
Meu Caro, um abraço, Torcato Mendonça.
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