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Segunda parte da recensão do livro "Os Heróis e o Medo", de Magalhães Pinto, enviada pelo nosso camarada Mário Beja Santos (*), ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, em mensagem com data de 29 de Setembro de 2009.
Meus bravos, de que cor é o medo ?
Beja Santos
(Continuação)
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Os diferentes figurantes vão sendo concentrados em Santa Margarida, daqui partirão para a Guiné, ainda na primeira metade dos anos 60, Arnaldo Schultz é governador. Em pinceladas largas, temos um tenente-coronel de formação conservadora, para quem a Pátria nunca se discute. Aos poucos, o seu mundo familiar entra em revolução: um filho prisioneiro na Índia, que se irá demitir do Exército e sair de Portugal; uma filha contestatária que se enamora de um jovem opositor do regime, que será castigado, enviado para a Guiné, exactamente para a unidade comandada pelo pai da sua namorada; a redacção principal cabe a Mário que vai tarde e a más horas para esta comissão, cria amizades com Álvaro e Manel. Depois de um estágio à volta de Bissau, partem para Mansoa, os Águias vão fazer operações no Morés. A narrativa tem, pois, os condimentos que permitem ao obreiro do romance aprofundar aquilo que se propõe: como se mede o heroísmo, como se manifesta? No teatro de combate, o que leva um ser humano a exceder-se ou a tolher-se? Magalhães Pinto refugia-se na polpa do troar das armas, no sangue à vista, não tira consequências dos estados de alma. É pena, temos aqui um bom território de combate e cidadãos identificáveis que nunca pretenderam alcançar a heroicidade. Nos casos em que ela lhes tomou o destino, a expressão literária é confusa e incompleta. Mas como a matéria-prima é muito rica, recomendamos a Magalhães Pinto que se afoite a rever este livro de alto a baixo, poderá aqui haver uma grande surpresa para a literatura da guerra colonial.
As tropas do batalhão de Mansoa, com companhias espalhadas por Mansabá, Bissorã e Olossato, estão de regresso do Morés, Álvaro rabiscou mais um dos seus poemas que Mário lê. É uma tropa exausta, tiveram duas baixas que estão na capela de Mansoa. Ao nível do comando, já há tensões, o major Glória Marques desabafa ao comandante Soveral que esta guerra não conduz a nada, os militares estão a pagar o tratamento injusto das populações pelos colonizadores. O autor aproveita para nos descrever a vida social em Mansoa com o seu clube de futebol Os Balantas, o círculo social das mulheres de alguns oficiais e sargentos, a mulher do administrador civil, as filhas do dono do tasco, as idas ao cinema, o restaurante de Emília Sá.
É nisto que se dá um violento ataque ao destacamento de Cutia. Sai uma coluna de socorro quando se percebe que estão cortadas as ligações e a situação no fortim parece aflitiva. Na noite escura, os faróis das viaturas desenhavam fantasmas na margem da picada. É a descrição mais poderosa do romance de Magalhães Pinto, a do ataque a Cutia. Tudo começa com o “pof” inconfundível de uma granada de morteiro a sair do tubo, depois o assobio em crescendo dos projécteis a cair no destacamento, a que se seguiu a fuzilaria das costureirinhas. No pandemónio que se vive dentro do destacamento, manobram-se quatro metralhadoras pesadas, mas o fogo inimigo parece nascer do chão, não distante do arame farpado, quem está dentro de Cutia sente o cerco, os guerrilheiros avançam para as fieiras de arame farpado. É o momento de heroísmo de Manel, ele pressente que os guerrilheiros podem chegar aos abrigos, a seguir seria o caos. Assim vai agir um herói sem medo: “Desceu o que restava das escadas da torre, chamou dois dos nativos e disse-lhes para virem atrás dele, carregando cada qual um cunhete de granadas de mão. Afrontaram o fogo a peito descoberto. Friamente, o Manel avançou, destemido e seguido pelos dois nativos, para o inimigo. Arrancava raivosamente, com os dentes, o grampo de segurança das granadas, segurando a cavilha, punha-se de pé e deixava-se tombar para a frente, arremessando as granadas na direcção dos adversários com o impulso da queda. Berros agora mais frequentes indicavam o sucesso da acção suicida. Empolgados pela acção do seu comandante, os soldados saíram dos abrigos e carregaram. Disparando incessantemente. O fogo do lado de lá foi abrandando, cada vez mais longe da cerca, agora. Alguns minutos depois, a parecerem horas, o silêncio voltou, quebrado por alguns gemidos aqui e além. Acalmada a trovoada, as rãs voltaram a coaxar”. Morreu o Miragaia, com o rosto meio desfeito por um estilhaço de morteiro.
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O romance prossegue com a ceia de Natal, um espectáculo organizado entre militares, Zé António, que viera castigado para a Guiné vai morrer na explosão de uma mina anti-carro, mais um problema graúdo na vida do comandante Soveral. É quando a comissão de serviços está no fim, que Mário realiza o seu último patrulhamento, na emboscada está Mamadu. E num dado momento ambos estão de armas apontadas, numa promessa de morte. É Mário quem dispara, aproxima-se e vê com horror que a arma de Mamadu estava travada. Mamadu pagara com a vida a vida que devia ao português. E assim termina o romance: “Vazio, sonâmbulo, ajoelhou-se e tomou o corpo inerte nos seus braços, abandonada toda a precaução a si mesmo jurada. Abraçou-o. Afagou-lhe a carapinha, enquanto deixava correr, rosto abaixo, duas lágrimas redentoras. Apenas duas. Tinha já passado a época das chuvas”.
Não se discute a sinceridade deste testemunho de Magalhães Pinto, é mesmo de supor que se trata de autobiografia com laivos de pura ficção. Haverá tudo a ganhar em refazer-se a obra, superficial em momentos culminantes, pouco expressiva sobre a essência do heroísmo, em que até o próprio medo sai mal tratado. Todas as guerras têm heróis, medos, desabafos, perdas e redenções. A notabilidade é tratar estes sentimentos e emoções numa atmosfera plausível e na inteireza da condição humana. É o que se espera da revisão ou da sequência deste “Os heróis e o medo”
Este livro fica a património do blogue.
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Nota de CV:
Vd. poste de 5 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5052: Notas de leitura (26): Os Heróis e o Medo, de Magalhães Pinto (Beja Santos)
1 comentário:
Diz o Mário Beja Santos que "é mesmo de supor que se trata de autobiografia com laivos de pura ficção. Haverá tudo a ganhar em refazer-se a obra, superficial em momentos culminantes, pouco expressiva sobre a essência do heroísmo, em que até o próprio medo sai mal tratado".
Quer dizer, o livro é mesmo muito mau.
Assim se vai fazendo a nossa História, daqui a 50 anos fomos todos nós, todos nós, repito, um bando de criminosos.
Um abraço,
António Graça de Abreu
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