terça-feira, 6 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5063: (Ex)citações (50): Vozes de burro não chegam ao Céu? (António Matos)

1. O nosso camarada António Matos, ex-Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, enviou-nos em 29 de Setembro de 2009 a seguinte mensagem:

Camaradas,

Hoje reflicto sobre um pesadelo guineense.
Vozes de burro não chegam ao Céu?
Tentemos, então, o coice!

Esta propensão para testemunhar a vida sob um ponto de vista realista pode dar de nós, a quem nos lê, uma imagem desfocada e, como tal, pouco correcta.

A temática da guerra (com a particularidade da minha guerra, a da Guiné, em seu tempo) é por excelência uma daquelas pródigas ocasiões onde a capacidade (ou a falta dela) de traduzir por escrito as suas conexões físicas e/ou psicológicas, sociais, morais, éticas, políticas, etc., implica algum cuidado no discurso sob pena de permitirmos a formação de um qualquer monstro no ideário dos outros.

Percebo, pois, o comentário do Hélder Valério quando arquitectou o derrotista que seria o António Matos pese embora algumas expressões por mim usadas que o aliviaram (vide comentário ao poste P5042).
Ainda bem, caro Hélder.

Não vou, evidentemente, dissertar sobre a minha personalidade sob pena de cair nos lugares comuns que apontam para que a presunção e água benta, cada qual toma a que quer, e isso, recuso, liminarmente.

O dia-a-dia, contudo, dá-nos largas para apontarmos o dedo ao que vai mal ( no nosso entender, claro ) e os exemplos, infelizmente, são imensos !

Permito-me recordar um pequeno texto que inseri em Março de 2008 no meu blogue, sobre a mutilação genital feminina na Guiné.

Comité Inter Africano de Práticas Tradicionais?

Confesso a minha dificuldade em começar a alinhavar as ideias para expressar o que me vai na alma ao escrever estas linhas.

Após consulta de fim de dia ao Expresso online, páro na notícia com o título: Guiné-Bissau - Parlamento debate fim da mutilação genital feminina.

Depois da sua leitura, ficou-me um asco imenso pela magnânime disponibilidade do parlamento em iniciar uma campanha para esse fim.

Perante os dois milhões de crianças sujeitas anualmente a esta barbárie, o Comité Inter Africano de Práticas Tradicionais, elaborou um plano, imagine-se!, em 2003 para a eliminação da mutilação genital feminina a ter lugar até 2010 !!! Isto é, permite-se que mais 18.000.000 de meninas ainda sejam sujeitas a esta enormidade em nome das práticas tradicionais!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Perguntar-se-á a que propósito vem isto agora?

Pois quem ler a imprensa diária de hoje, 06 de Outubro de 2009, vê, em letras garrafais, um artigo sobre esta mesma temática e dizendo o quê?

Incrivelmente, a APF (Associação para o Planeamento da Família) vai lançar uma campanha de sensibilização sobre o assunto a decorrer até Dezembro de 2011!!

Eu pergunto: só agora? O que fizeram estes organismos no entretanto? De que vale vir agora Alice Frade (membro da APF) "exigir" medidas contra os países que utilizam tais práticas?

Será que amanhã virão reivindicar sem qualquer pudor os louros pelo apoio ao fim dessa barbárie?

É preciso muita lata!

A título de curiosidade, é na comunidade guineense muçulmana que mais casos existem embora haja relatos que o mesmo ocorre em Moçambique e no norte de Angola

Hélder Valério, vês como não é fácil ser-se demasiado optimista?

Seja-me permitido, uma vez mais o desplante de, mesmo assim, evidenciar o grande pecador que sou que, não obstante o que relato, continue a tentar saborear a vida no que de melhor me oferece na expectativa que estes gritos abafados que vou dando possam provocar um eco suficiente para incomodar quem de direito.

Abraços à tertúlia,
António Matos
Alf Mil Minas Arm da CCAÇ 2790

Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

7 comentários:

Luís Graça disse...

António:

Referes-te à Associação para o Planeamento da Família (APF), de que o presidente executivo é o Doutor Duarte Vilar, meu colega de curso e irmão do malogrado Cap Cav Luis Rei Vilar, morto na Guiné.

Sobre a MGF - Mutilação Genital Feminina há diversos postes no nosso blogue.

Segundo o respectivo "site", a Associação para o Planeamento da Família (APF), juntamente com a Amnistia Internacional Portugal, integra por Portugal o Grupo de ONG parceiras da iniciativa da Amnistia Internacional –Irlanda “ FIM à MGF – Campanha Europeia”.

Destaque:

“ FIM à MGF – Campanha Europeia” constitui uma estratégia coordenada entre as parcerias e em articulação directa com os compromissos assumidos nos Planos nacionais em cada país.

“ FIM à MGF – Campanha Europeia” reclama uma maior atenção dos sectores de decisão técnica e política a este tema de Direitos Humanos, de Saúde, de Migrações, Cooperação e Desenvolvimento, Educação, Igualdade de Oportunidades e Discriminação com base no Género.

“ FIM à MGF – Campanha Europeia” decorrerá até ao final do ano de 2011 e visa a elaboração e adopção de uma estratégia europeia para o fim definitivo da prática de MGF, procurando também garantir a existência de programas de apoio para mulheres e raparigas que tenham sido vítimas de MGF e/ ou em risco de serem mutiladas.

“ FIM à MGF – Campanha Europeia” procura ainda assegurar participações activas e significativas por parte das pessoas e comunidades directamente afectadas por esta prática através da colaboração com os parceiros dos vários Estados europeus e dos países onde a MGF existe. Pretende, também e através do reforço das capacidades pessoais e institucionais das várias parcerias, desenvolver ao nível nacional e europeu iniciativas de informação e reforço de compromisso, bem como assegurar a sustentabilidade das iniciativas.

A mutilação genital feminina constitui uma violação dos direitos humanos das mulheres de todas as idades, religiões e culturas bem como do princípio da não-discriminação.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, UNICEF e UNFPA, estima-se que cerca de 3 milhões de mulheres e crianças correm risco de mutilação todos os anos.

A MGF foi documentada em cerca de 28 países do continente africano, bem como em países asiáticos e do médio oriente. No entanto, e devido aos crescentes movimentos migratórios, a prática da MGF tem vindo a ser alargada também a outras regiões e países , incluindo europeus.

Fonte: Excerto de http://www.apf.pt/

António Matos disse...

Olá Luís Graça.
Li o teu comentário como um apport útil àqueles que por ventura desconhecessem a associação pelo que te agradeço.
Retomando, no entanto, o assunto, volto a denunciar o que me confrange que é a necessidade dum parlamento pôr em apreciação a eventual eliminação duma barbárie perpetrada em crianças e de se estabelecer um período de 7 anos para a implementar.
Por outro lado, a difusão dos planos da associação portuguesa numa altura em que se aproxima o final daquele período, faz passar a ideia de que só agora se lembrou do desiderato pelo que vai, então, lançar uma campanha de sensibilização. Volto a perguntar : só agora ?
Entretanto amputaram-se mais uns milhões de meninas !

O blog é grande e calcularás que não o li todo e desconhecia se o tema já tinha sido tratado ou não neste espaço.
Mesmo que o soubesse, não deixaria de colocar a questão que me parece pertinente.
Desculpa-me o mau feitio mas há coisas que me horrorizam tanto quanto a guerra...
António Matos

Anónimo disse...

Bravo ! E mais... nao fosse o eleitorado guineense, de origem islamica determinante no desfecho de processos eleitorais na Guine Bissau, a nivel nacional de ha muito a problematica teria ja sido alvo de uma abordagem bem mais ousada e descomplexada...Ha anos que o debate de um pacote legislativo visando a penalizacao de uma tal pratica na nossa Guine,vem sendo adiada pelos parlamentares guineenses.

A titulo de curiosidade, anexo um link-a transcricao de uma debate em tempos promovido pela VOA, a proposito !

http://www.voanews.com/portuguese/archive/2006-04/2006-04-21-voa2.cfm

Mantenhas~
Nelson Herbert
USA

herbertlopes@yahoo.com

Anónimo disse...

Levantas problema muito interessante,premente e grave,que inexplicàvelmente continua a ser encarado com criminal distanciamento.Na tao feminista Suécia,com o mais elevado número de mulheres em posicoes ministriais de governo,nos grupos parlamentares,nas presidencias de bancos e empresas internacionais,o assunto tem sido debatido á exaustao,no parlamento,em conferencias universitárias,programas televisivos de grandes audiencias,e até nos sectores sindicais.Como é sabido,a contribuicao económica,educacional e sanitária para com África é a mais elevada a nivel mundial tendo em conta o número da populacao sueca e a dimensao da sua economia.Apesar de tudo o referido, e de existirem mais do que suficientes mecanismos de pressao,pouco vai acontecendo. E mesmo,literalmente "no outro lado da rua",é vulgar entre alguns grupos de emigrantes muculmanos de origem africana.Proibido por lei,o recurso a hospitais(!)para tal efeito,a intervencao "cirurgica" é efectuada por membros das comunidades.Procura-se através de intensivos programas nas escolas primárias mais frequentadas por raparigas destes grupos étnicos um esclarecimento factual.E é mesmo apontada a possibilidade das mesmas participarem ás autoridades escolar-sanitárias casos de violencias familiares quanto ao assunto,sendo as meswmas totalmente apoiadas pelas autoridades.Tendo em consideracao as idades das implicadas,os traumas resultantes destes afastamentos familiares,e da comunidade próxima nao sao de menor importancia.Estamos em 2009,na tal Suécia feminista e de todos os indiscutiveis avancos sociais. (P.S.-Caro António Matos! Quanto ao teu,por vezes apontado,"pessimismo/melancólico",aqui me atrevo a enviar-te,com um grande abraco,mais um pensamento de Ruy Belo quando diz referindo-se a si próprio:-Esta é na verdade a maneira mais triste de estar contente!)

Anónimo disse...

Desculpa,mas de tao "assuecado" esqueci a assinatura! José Belo

Antonio Graça de Abreu disse...

No meu Diário da Guine, a 26 de Julho de 1973, escrevi, em Cufar:


(...) Há etnias, sobretudo as voltadas para o Islão, em que a mulher faz tudo, os homens sentam-se à porta da tabanca na gestão do labor das suas muitas esposas. Como infelizmente sucede um pouco por todo o mundo, estas sociedades consideram que as mulheres valem menos que os homens. Algumas etnias da Guiné ainda sujeitam as mulheres à excisão do clitóris, uma crueldade levada a cabo para lhes limitar ou destruir o prazer sexual, o que frequentemente provoca graves infecções e a morte. Quantos anos, ou séculos serão ainda precisos para se começar a cumprir o parágrafo um da Declaração Universal dos Direitos do Homem que diz que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”?

Um abraço,
Amntónio Graça de Abreu

Cufar, 27 de Julho de 1973

Hélder Valério disse...

Caro António Matos

Acho que te comprendo.
Sei, também, o que é sabor amargo do desgosto, do desconforto, da sensação de se estar sempre a "remar contra a corrente", de algumas vezes estar à beira de dizer "puta que pariu isto tudo! querem assim? então danem-se!", mas depois "recarrego baterias" relembrando aquelo poema que diz "...ouvimos dizer que estás consado..." ou então ouvindo com atenção (e de preferência bem alto) a canção "The Boxer" do Simon & Garfunkel...
É uma receita minha. Ofereço-te.
Um abraço
Hélder S.