1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 17ª história, com data de 8 de Outubro de 2009:
Mina antipessoal
Tinha amanhecido há pouco.
A patrulha estava marcada para as 06h00.
Os militares do 3º.Pelotão «aprontavam-se» para mais uma saída.
Iam «pró mato» sem o seu Alferes (Belmiro Tavares) que estava em Bissau.
O Furriel Figueiredo (de Monção) apareceu na «caserna» para «apressar» a malta.
O Soldado Nascimento (da região de Sarzedas) estava um pouco atrasado. Arrumou as cartas que tinha recebido no dia anterior e juntou-se à sua Secção .
Alguém dizia: «Porque é que esta porra desta patrulha há-de ser tão cedo. Ainda por cima está cá uma merda de um tempo!». 06h00 da manhã. Toca a subir para as viaturas.
O Alferes Mendonça deu ordem de partida e a coluna pôs-se em marcha.
Quem ficava no aquartelamento acenava aos que partiam e desejava «boa sorte».
Binta ficava para trás e havia que «pôr a bala na câmara».
Toda a gente o fazia automaticamente.
Ia-se «bater» a região de Banhima-Santacoto-Jongo com um grupo de combate (30 homens).
O dia estava muito nublado e de vez em quando chovia torrencialmente.
A coluna de viaturas avançava com dificuldade por causa da lama.
Alguém com piada dizia que já era de tempo de alcatroar aqueles caminhos...
Como fazer boas médias com as viaturas a atascarem-se a todo o momento...
Atingimos Genicó Mandinga e os homens do 3º Grupo de Combate apearam-se.
A coluna ficou-se por ali com os condutores e mais alguns homens para fazer a segurança.
Os militares apeados seguiram em fila indiana (bicha de pirilau) e, tocados pela chuva, atingiram com rapidez Banhima. Fez-se uma pequena paragem para retemperar forças.
Bebeu-se uns goles do cantil, quem tinha trazido farnel comeu alguma coisa, ajustaram-se as cartucheiras e ala para a frente que se faz tarde. Manteve-se o dispositivo – «bicha de pirilau» – e avançou-se em direcção ao objectivo. Próximo de Santacoto os homens da frente – os da Secção do Furriel Rodrigues Figueiredo – seguiram um trilho (que parecia recente) na beira esquerda do caminho.
A chuva fustigava sem piedade os militares.
Caminhava-se com esforço e em silêncio. Um estoiro inesperado surpreendeu toda a gente.
Houve reacção de alguns dos nossos que se deitaram para o chão e dispararam para a frente e para os lados. Quando se restabeleceu alguma calma deu para perceber que o militar que caminhava na frente estava caído. Junto a ele, no chão, parecia sair fumo de um buraco.
Rapidamente se percebeu que o soldado estava ferido e que tinha pisado uma mina anti pessoal.
O seu pé direito tinha desaparecido! O coto da sua perna mutilada era horrível de se ver.
Tinha calhado «a má sorte» ao soldado João Nunes Nascimento. O Cabo-Enfermeiro Pereira fez os primeiros socorros ao Nascimento e entrou-se em contacto, via rádio, com a coluna para se deslocar ao local o Furriel Enfermeiro Oliveira.
Fez-se um dispositivo de segurança à volta do ferido, cujo estado preocupava toda a gente.
O Furriel Enfermeiro chegou e conseguiu estancar a hemorragia com a aplicação de um garrote.
O soldado Nascimento estava em estado de choque. Não falava e estava muito agitado. As cores da sua cara eram difíceis de descrever. Estava lívido, cinzento e naquele local (e naquelas condições) dificilmente se conseguia fazer alguma coisa que aliviasse o seu sofrimento.
Pela primeira vez enfrentávamos as terríveis consequências de uma mina antipessoal.
Havia que evacuar o Nascimento com a maior urgência.
Contactou-se Binta para pedir um helicóptero.
A resposta que nos chegou passado algum tempo não foi nada animadora. Com o tempo nublado e chuvoso que se fazia sentir não poderíamos contar com o «heli» para a evacuação.
Embora o estado do ferido o desaconselhasse foi resolvido transportá-lo de viatura até Binta. Teríamos que fazer alguma coisa.
O caminho de regresso ao aquartelamento foi demorado e penoso. Cada solavanco da viatura que transportava o Nascimento era terrível para o ferido.
Fiz a viagem junto dele. Agarrava-lhe as mãos, limpava-lhe a cara e falava sem parar para o animar. O Nascimento piorava e a sua lividez era impressionante.
De vez em quando era preciso aliviar o garrote, o que parecia dar-lhe algum alívio, mas o seu tormento recomeçava quando este lhe era novamente colocado.
O tempo passava e nunca mais chegávamos a Binta.
Como é que iríamos conseguir a sua evacuação para Bissau?
Finalmente... o aquartelamento e... a boa nova que vinha a caminho uma avioneta para proceder à evacuação do Nascimento.
Ficámos logo na zona da nossa pista à espera do avião.
O Médico Dr. Barata tomou conta do Nascimento e todos que tinham lutado para o trazer até ali respirámos de alívio na esperança de que finalmente se conseguisse inverter a marcha dos acontecimentos.
Mas... tudo estava muito complicado.
Tinham passado mais de 3 horas e as bolandas em que tinha andado o Nascimento no transporte de Santacoto até Binta tinham deixado marcas. As artérias estavam colapsadas e não se conseguia aplicar soro, já que plasma nem pensar. Não o tínhamos no Posto de Socorros da Companhia.
Tentou-se um “desbridamento” junto ao pé esquerdo mas também não resultou. Em desespero de causa tentou-se a aplicação de soro por via intramuscular.
Chegou a «DO» a Binta.
Mais uma vez era o Sargento-Piloto Honório.
O que esse homem não conseguisse ninguém conseguia!!! Praticamente sem «tecto» tinha voado de Bissau até Binta em voo rasante, orientando-se pelo curso do Rio Cacheu.
Tinham passado 3 horas e meia desde que o Nascimento tinha ficado sem um pé ao pisar a mina A/P no trilho próximo de Santacoto.
Tinha-se utilizado no pedido de evacuação o código «Y», que corresponde a um ferido grave. Devia ter vindo com o piloto um enfermeiro. Veio um Cabo-Mecânico! Porquê?
Ninguém na altura o conseguiu explicar.
Transmissão errada de código ou, por o voo ter sido decidido pelo voluntarismo do piloto em cima da hora, tinha-se improvisado!? Não estaria por perto nenhum enfermeiro?
Junto ao avião o que se pretendia acima de tudo era evacuar com a maior urgência o Nascimento.
Foi-lhe aplicado um garrote dos «Fuzileiros», que o Furriel Enfermeiro tinha em seu poder. Era mais seguro e menos doloroso dos que os do Exército.
Sempre com o motor a trabalhar o piloto preparou-se para levantar e foi explicado ao Cabo-Mecânico, que o acompanhava, que deveria aliviar o garrote de 20 em 20 minutos ao ferido.
O Nascimento estava mal, muito mal, mas se chegasse vivo ao Hospital havia de escapar. No HM-241 faziam-se milagres!
Caramba depois de tanto esforço o Nascimento havia de safar-se.
Ficaria aleijado mas com uma prótese... tinha toda uma vida à sua frente.
Foi com estes pensamento que recolhemos «a quartéis».
Que sacana de dia 30...
Depois de uma noite agitada, onde a todo o momento me parecia ver a cara do desgraçado do Nascimento, fui ter com Médico na manhã do dia seguinte.
Fomos para o Posto de rádio para saber notícias do Hospital de Bissau.
Como estava o Nascimento!? A resposta foi brutal:
«O Nascimento morreu. Morreu com o Hospital à vista!»
Lembro-me de me ter agarrado ao Dr. Barata. Chorámos juntos, amargamente, a morte do Nascimento.
Daqui a uns dias seria a vez da família receber a notícia. E chorar!
Nunca mais esquecerei a morada do Nascimento que escrevi nos meus «apontamentos de guerra»: Casal Águas de Verão – Sarzedas – Castelo Branco.
Casal Águas de Verão. Um nome poético, bucólico, correspondente a um lugar, que nada tinha a ver com a guerra.
Mais uma vez nos tinha calhado «em sorte» ver um camarada de armas ceifado pela morte.
E... numa guerra todos os mortos são sempre demais!
NOTAS: A páginas 135 da RESENHA HISTÓRICO-MILITAR DAS CAMPANHAS DE ÁFRICA (1961-1974), 8º Volume –Mortos em Campanha, Tomo II Guiné -Livro I, 1ª. Edição, LISBOA 2001 está referido, em “linguagem oficial”, o seguinte:
João Nunes Nascimento
Soldado-Atirador número 2169/63
Companhia de Caçadores Nº 675
Unidade Mobilizadora: Regimento de Infantaria nº. 16 – Évora
Solteiro
Filho de João Nascimento e Augusto Nunes
Natural de Casal Água do Verão, freguesia de Sarzedas, concelho de Castelo Branco
Local de operações: Na mata entre Banhima e Santacoto
Data do Falecimento: 30 de Julho de 1965, no HM 241-Bissau
Causas da morte: Ferimentos em combate
Local da sepultura: Cemitério de Sarzedas
Legendas das fotografias:
1 - Saída de viaturas para o mato.Binta, 1965. Fotografia do autor.
2 - Militar ferido por mina anti pessoal “in Aniceto Afonso, Carlos de Matos Gomes, Guerra Colonial, Lisboa, Editorial Notícias, 2000, p.322”
3 - Evacuação em Dornier, in ibidem, p.322
Foto 1: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
Foto 2 e 3: Autorias indicadas (2009). Direitos reservados.
Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
3 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 – P5048: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (16): Leões na Guiné em 1966!
1 comentário:
Caro JERO
Esta tua história, infelizmente, não tem um final feliz.
Foi muito tempo, muitas circunstâncias adversas e quando assim é torna-se muito mais difícil ocorrerem os milagres.
Mas é como dizes, pelo menos era o sentimento generalizado, se chegasse com vida ao HM-241 o milagre acontecia muito frequentemente.
Aliás já aqui tem sido referido com muita ênfase.
Enfim, uma história dramática, como muitas que conhecemos, que nos marcaram de forma indelével.
Um abraço
Hélder S.
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