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domingo, 3 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26111: Notas de leitura (1740): "Poemas de Han Shan" (China, séc. VIII), organização, tradução e apresentação de António Graça de Abreu, no Centro Científico e Cultural de Macau, Lisboa, 26/9/2024

 


1.  Para aqueles que não puderam estar presentes na sessão de apresentação do livro "Poemas de Han Shan", organizado e traduzido por António Graça de Abreu, no passado dia 26 de setembro, no Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM) (*),  o nosso amigo e camarada disponiblizou-nos os "slides" que elaborou para a ocasião.  

Perdemos a sua conversa ao vivo, mas temos ao menos o privilégio de poder aceder ao essencial daquilo que ele quis transmitir ao público sobre o lendário poeta e monge ligado ao Budismo chan (ou zen, como é conhecido no Japão), Han Shan, do séc. VIII (em chinês, quer dizer "Montanha Fria"),


Já agora esclarecemos os nossos leitores sobre o que é o CCCM e a sua missão:

(i) tem por missão produzir, promover e divulgar conhecimento sobre Macau enquanto plataforma entre Portugal e a República Popular da China, assim como entre a Europa e a Ásia;

(ii) é, também, um espaço dedicado ao estudo e ensino da língua, cultura e história chinesas, e um centro de investigação científica e de formação contínua e avançada sobre as relações entre Portugal e a China, assim como entre a Europa e a Ásia;

(iii) dotado de autonomia administrativa e património próprio, é um instituto público integrado na administração indireta do Estado e sob tutela do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.

O António Graça de Abreu não precisa de apresentações. Honra-nos com a sua presença na Tabanca Grande desde 5/2/2007, e tem 354 referências no nosso blogue.


Templo de Han Shan, Suzhou, China (Suzhou é uma cidade a oeste de Xangai, no delta do rio Yangtzé, famosa pelos seus cnais,, pontes e jardins clássicos, classificados pela UNESCO com o património  material da humanidadfe em 1997 e 2000).


O António Graça de Abru no templo de Han Shan


Templo de Han Shan


A ponte de Fenqiao (séc. VIII), Suzhou


Famoso poema do poeta ZhangJi (766?-830?), "À noite, ancorando em Fengqiao"...





O poeta 寒 山 Han Shan (700?-780?)


Han Shan e Shi De no Japão, ou seja, Kan Zane Jitttoku. 
O budismo Chan ou Zen que só chega ao Japão em 1191.


Matsuo Bashô (1644-1694), o grande mestre dos haikus japoneses, adorava Han Shan









No meu prefácio aos poemas de Li Bai (1990) tentei explicar,  de forma exaustiva,  os processos que por norma utilizo na tradução e reinvenção de um poema chinês em língua portuguesa. 

Referi também, em detalhe, muitas das características da língua chinesa, talvez a mais depurada de todas as falas e escritas existentes debaixo do céu. 

Os anos passam e um continuado contacto com os grandes poetas da China confirma, convence-me de que, se já é muito difícil traduzir poesia em qualquer língua, no que ao chinês diz respeito a tarefa é impossível. E porque é impossível, as traduções avançam. Trata-se de caminhar pela impossibilidade, é necessário transformar o impossível em possível.

Ao traduzir poesia chinesa sei que trabalho na sombra, iluminado sobretudo pelo silêncio da sombra.

Camilo Pessanha, no prefácio à sua tradução das oito elegias chinesas, escrevia por volta de 1910, referindo uma expressão de Herbert Giles, um dos primeiros tradutores de poesia chinesa para língua inglesa, que escreveu “a chinese poem is at best a hard nut to crack”,  que Pessanha traduziu como “toda a composição poética chinesa é para o tradutor uma noz de casca dura”.

Trata-se de caminhar pela impossibilidade e de transformar o impossível em possível. O resultado é sempre um poema em língua portuguesa que procura ser fiel ao significado dos caracteres e à sensibilidade do poeta chinês, tão próximo do verso original quanto o rigor exige mas reinventado numa outra língua. 

É já um outro poema, quase sempre distante da estrutura poética do chinês porque o poema passa a ser português. Falamos de traduções, do comboio de caracteres que precisamos de identificar, de versões possíveis, da natureza do trabalho do tradutor, enfim, de questões fundamentais amplamente analisadas e debatidas nos estudos e cursos de tradução um pouco por todo o mundo.

Gil de Carvalho, um dos raríssimos críticos portugueses que, com alguns laivos de conhecimento da língua chinesa, se referiu às minhas traduções, considerou “ a vocação missionária e estética de Graça de Abreu” e o “querer fazer poesia sua através do poema ou do poeta chinês”.

Em carta pessoal, Eugénio de Andrade escrevia-me em novembro de 1993: 

Num parecer sobre as minha traduções, que guardo comigo, escrevia Óscar Lopes, em 28 de Janeiro de 1993:

 “Conheço a obra de tradução do Chinês para Português da autoria de António Graça de Abreu, nomeadamente Poemas de Li Bai e Poemas de Bai Juyi, publicados ambos com excelentes introduções históricas e literárias. 

"Não leio directamente textos chineses, mas tive a oportunidade de, num seminário do Curso de Mestrado da Universidade do Minho, apresentar o primeiro deste livros à discussão de duas alunas chinesas (Drªs. Wang Ting e Sun Lin) com boa preparação cultural, quer sinológica, quer ocidental e verifiquei que o tradutor conseguiu equivalências extremamente difíceis de encontrar e de condensar, de um poeta clássico oriental do século VIII.”

Até há poucos anos, o poeta Han Shan era completamente desconhecido em Portugal, o que de resto acontecia com quase todos os grandes poetas chineses. 

Isto apesar de Macau e de uma continuada presença portuguesa de quatrocentos e cinquenta anos nas terras da China. Mas, mesmo na cidade do Nome de Deus na China, a poesia chinesa também já desceu do grande Império do Meio, a norte, atravessou as Portas do Cerco e entrou mui de leve na sensibilidade de alguns dos seus melhores habitantes lusitanos.

Existe o caso singular de Camilo Pessanha que em Macau traduziu, deu forma a poemas a que chamou “oito elegias chinesas”,  oriundas de um álbum de poetas menores da dinastia Mingque, e que  o autor da Clepsidra nos diz ter comprado “pelo preço vil de duas patacas numa casa de prego” .

É pena o genial Pessanha não ter descoberto os grandes poetas da China, Li Bai, DuFu, Wang Wei, Han Shan. Somos o que somos e, apesar de Macau, a Sinologia portuguesa, o estudo sério e rigoroso das coisas do mundo chinês, também o depurar das sensibilidades com o Império do Meio por horizonte, quase não consegue crescer.

Em 1997, o PenClub Português nas suas pequenas “Folhas Soltas” publicou Nove Poemas de Han Shan, a minha primeira tentativa de tradução da poesia do mestre da Montanha Fria.

Em 2003, Ana Hatherly que tão bem conhece o ofício do poeta, companheira de entusiasmantes conversas sobre poesia chinesa e de jantares do PenClub, deu ao prelo as suas originais versões poéticas elaboradas a partir das traduções francesas de Jacques Pimpaneau com o título "O Vagabundo do Dharma, 25 Poemas de Han Shan".

Quem gosta de poesia, quem deseja abrir a mente para as mil subtilezas –chamemos-lhe outra vez assim –, do budismo chan m ou zen, quem procura a simples inteligência do saber encontrará em Han Shan um mestre, um confrade, um amigo. O poeta da Montanha Fria « nous révèle cette esprit de la Chine qui dort aussi en notre tête et attend, telle la Belle au Bois Dormant, qu’un prince comme Han Shan vienne l’y éveiller»,  disse Jacques Pimpaneau .[ Tradução do francês parea português: "revela-nos esse espírito da China que também dorme nas nossas cabeças, à espera, como a Bela Adormecida, que um príncipe como Han Shan venha despertá-lo". (LG)]




Flores no templo de Han Shan, Suzhou, minha foto 2011




"Slides" (incluindo texto): © António Graça de Abreu (2024). Todos os direitos reservados. [Edição, revisão / fixação de texto, links: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

22 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25968: Agenda cultural (860): Convite para o lançamento do livro "Poemas de Han San", organizado e traduzido por António Graça de Abreu, dia 26 de Setembro de 2024, pelas 18h30, no Auditório CCCM, Rua Guerra Junqueira, 30 - Lisboa

17 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26054: Agenda cultural (862): Lançamento do livro Poemas de Han Shan (edição bilingue, seleção, tradução, prefácio e notas de António Graça de Abreu): 19 de outubro, sábado, 17h00 | Casa do Comum, Bairro Alto, Lisboa

Guiné 61/74 - P26110: Parabéns a você (2324): Tenente-General PilAv Ref António Martins de Matos, ex-Tenente PilAv da BA 12 (Bissau, 1972/74)

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Nota do editor

Último post da série de 2 de Novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26105: Parabéns a você (2323): Abílio Magro, ex-Fur Mil Amanuense do CSJD/QG/CTIG (Bissau, 1973/74)

sábado, 2 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26109: Manuscrito(s) (Luís Graça) (260): Ao fim da tarde, ao pôr do sol no Atlântico, lembramos neste dia todos os nossos mortos queridos







Lourinhã > Praia do Areal Sul >2 de novembro de 2024 > Pôr do sol

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2024). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Hoje é Dia dos Fiéis Defuntos, Dia de Finados ou Dia dos Mortos, segundo o calendário litúrgico da Igreja Católica. Mas outras igrejas cristãs também celebram o dia dos mortos: além dos católicos,os anglicanos, os ortodosos, os metodistas...


Em todas as comunidades humanas, há rituais de celebração da morte e dos mortos... Sem quaisquer preocupações metafísicas, acabo de tirar essas fotos do pôr do sol  na minha terra, banhada pelo Atlântico.  Num fim de tarde, magnífico, e com um mar sereno... e tentando abstrair-me do facto de há 150 milhões de anos a duna onde me sento,  não existir, nem esta praia, nem este mar, nem a terra que me viu nascer, nem as Berlengas aqui à minha direita... 

É impossível, contudo,  neste sábado, dia 2 de novembro de 2024, e a esta hora mágica do fim de tarde, até por força das nossas tradições e da nossa cultura, não nos lembrarmos de todos os nossos entes queridos, que conhecemos em vida,  da família aos vizinhos, dos colegas de escola e de trabalho aos camaradas de armas, dos amigos aos compatriotas mais ilustres, enfim, de todos aqueles que da lei da morte já se libertaram (citando o maior de todos os nossos vates, o Luís Vaz de Camões, cujo quinto centenário de nascimento começámos a celebrar este ano)... 

Estão também no nosso pensamento  os membros da Tabanca Grande que já se despediram da Terra da Alegria... São já 150, nestes últimos 20 anos da nossa existência.  O último dos quais,  a nossa querida Regina Gouveia (1945-2024).

À boa maneira romana, rogamos a todos os deuses de todos os panteões, criados por todas as culturas humanas, para que os nossos queridos mortos possam descansar em paz, e que o sol continue a iluminar e a aquecer o nosso planeta, a nossa frágil casa comum... (LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26092: Manuscrito(s) (Luís Graça) (259): Porto Santo, e a África aqui tão perto - Parte IV

Guiné 61/74 - P26108: In Memoriam (516): Regina Gouveia (1945-†2024), Amiga Grã Tabanqueira, esposa do nosso camarada Fernando Gouveia

IN MEMORIAM

Regina Gouveia (1945 - †2024)

A notícia do falecimento da nossa amiga Regina Gouveia, esposa do nosso camarada Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec Inf do CMD AGR 2957 - Bafatá, 1968/1970), ocorrida há cerca de três semanas, apanhou de surpresa os editores do blogue. A infausta notícia foi confirmada pelo José Teixeira e pelo António Pimentel, amigos próximos do casal Gouveia. 

Regina Gouveia, formada em Fisico-Químicas e Mestre em Supervisão, era professora aposentada do ensino secundário e autora de diversas obras literárias, algumas delas dedicadas aos mais pequenos.

Tem 15 referências no nosso blogue onde começou a colaborar no já longínquo ano de 2009. Acompanhando o seu marido, esteve presente nesse mesmo ano no IV Encontro Nacional da Tertúlia em Ortigosa.

Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real > 20 de Junho de 2009 > IV Encontro Nacional do nosso blogue > Regina e Fernando Gouveia. 

O nosso editor Luís Graça publicou no P4615 um pequeno resumo sobre Regina Gouveia que abaixo se reproduz:

(i) Nasceu em 1945 (em Santo André, Estado de S. Paulo, Brasil, onde vivei até aos dois anos de idade);

(ii) Passou a sua infância e adolescência no Nordeste Transmontano, em Portugal, de onde tem raízes pelo lado paterno;

(iii) casada com Fernando Gouveia, arquitecto, aposentado da CM Porto; acompanhou o marido, em Bafatá, durante a sua comissão militar (1968/70);

(iv) É Licenciada em Físico-Químicas (Universidade do Porto) e Mestre em Supervisão (Universidade de Aveiro).

(v) Professora do Ensino Secundário, aposentada, dedicou muito do seu tempo à formação de professores (foi orientadora de estágios durante 22 anos);

(vi) Colaborou com o Ensino Superior, nomeadamente com o Departamento de Física da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

(vii) Actualmente lecciona na Universidade Popular do Porto e colabora, a título voluntário, com a Biblioteca Almeida Garrett no Porto, divulgando a ciência e a poesia, junto dos mais pequenos.

(viii) Em 2005, no âmbito do Ano Internacional da Física, foi agraciada com a comenda da Ordem da Instrução Pública e premiada com o prémio Rómulo de Carvalho.

(ix) É autora do livro de didáctica Se eu não fosse professora de Física. Algumas reflexões sobre práticas lectivas e do livro de ficção Estórias com sabor a Nordeste.

(x) No âmbito da poesia, tem poemas dispersos em algumas publicações,além de prémios; é autora de dois livros de poesia Reflexões e Interferências e Magnetismo Terrestre;

(xi) António Gedeão (pseudónimo lietrário de Rómulo de Carvalho) é um dos seus poetas favoritos. Recorde-se que é o autor do célebre poema Pedra Filosofial (Eles não sabem que o sonho /é uma constante da vida...), transformado em canção de contestação, na voz de Manuel Freire, e nas vozes de alguns de nós,em Bambadinca (1969/71)...

(xii) Em 2006, publicou o seu primeiro livro para crianças: Era uma vez… ciência e poesia no reino da fantasia...

Duas fotos da jovem Regina Gouveia em Bafatá durante a sua permanência naquela localidade guineense onde o marido cumpria a sua comissão de serviço.


Em jeito de homenagem, aqui deixamos três poemas, ao acaso, de Regina Gouveia, o primeiro, uma memória da Guiné e das pessoas de quem ainda se lembrava; o segundo, talvez um grito de protesto pelas desigualdades de uma sociedade de consumo onde alguns têm tudo e outros não têm nada; o terceiro, dedicado ao cais, aquele muro que desde tempos imemoriais viu partir portugueses para a guerra e para a emigração. Todo o cais é uma saudade de pedra, na palavra de Fernando Pessoa.


Telejornal

Vejo o Telejornal no canal dois.
A apresentadora fala da BSE, de clonagem, do Kosovo
e, logo depois, de um acidente no Cais do Sodré e da instabilidade na Guiné.
E eu empreendo no tempo uma viagem...
O Braima, a Binta, o Adrião, onde andarão neste momento?
Conheci-os em Bafatá, há muito tempo, iam buscar o cume no fim da refeição.
Recordo os seus olhos vivos de crianças, pele negra, dentes alvos, sem igual,
os passos apressados quando o vento anunciava em breve um temporal.
Eu era aluna e eles mestres do crioulo de que mal guardo lembranças.
Das mulheres, recordo as suas vestes, fossem mulheres grandes ou bajudas
no tronco, eram em geral desnudas,
presos na cinta panos coloridos que, de compridos, chegavam quase ao chão.
Algumas eram de tal modo belas que pareciam extraídas de telas.
Recordo, servindo-me o café, o Infali com aquele seu olhar tão doce e triste,
talvez o ar mais triste que eu já vi. Será que o café ainda existe?
Recordo aquele condutor, o Mamadu, mostrando com orgulho o seu menino.
Que terá feito deles o destino?
Recordo os passeios na estrada do Gabu, os mangueiros, os troncos de poilão,
a mesquita, o mercado, a sensação de paz que tudo irradiava,
apesar do obus de Piche que atroava, apesar da maldição da guerra
cujo espectro por cima pairava.
Recordo ainda o cheiro e a cor da terra,
o Colufe e o Geba sinuosos onde canoas esguias deslizavam,
recordo macaquitos numerosos que entre os ramos das árvores saltavam
enquanto que lagartos, preguiçosos, ao sol, pelos caminhos se espraiavam
e uma miríade de insectos buliçosos ao nosso redor sempre volteavam.
Recordo o batuque daquele casamento.
Na foto ficou bem impresso o momento em que o dançarino fazia um mortal
numa fantástica expressão corporal.
Foi lá na Ponte Nova, naquela tabanca onde de azul se coloriam panos
que as mulheres usavam em volta da anca e que desciam quase até ao chão.
Tudo isto se passou há muitos anos.
A apresentadora fala agora em danos causados por uma longa estiagem
e mostra uma desértica paisagem.
Eu regresso da minha viagem e tento organizar o pensamento.
O telejornal está quase no final. Deve seguir-se a previsão do tempo.




Pai Natal

Pai Natal, acabo de perceber que não és imparcial
A alguns meninos deste tudo e a outros não deste nada
Será que perdeste a morada, não estava a tundra gelada,
ou estava a rena cansada?
No Natal que logo vem, pensa bem pois não pode ser assim.
Ou dás presentes a todos ou não os dás a ninguém. Nem a mim.


Regina Gouveia em Ciência para meninos em poemas pequeninos



Cais

Na janela, a cortina rendada.
Através dela, navios que demandam o cais,
outros que partem.
Lenços brancos acenam da amurada
outros respondem acenando de terra.
Entre uns e outros, oceano e guerra.
Navego no navio da memória
delida pelo tempo, esse cavalo alado.
Na janela, cada dia mais puída a cortina rendada.
Através dela já não vislumbro
o inexistente cais, outrora imaginado.

Do livro “Entre margens", editado em 2013


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E assim nos despedimos da nossa amiga Regina Gouveia.

Ao Fernando Gouveia, seus filhos, netos e demais família, deixamos o nosso mais profundo pesar.

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Nota do editor

Último post da série de 24 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26075: In Memoriam (515): Marco Paulo (1945-2024): "Nosso cabo, não, meu Alferes, sou o Marco Paulo" (.... nome artístico de João Simão da Silva, nascido em Mourão, ex-1º cabo escriturário, QG/CCFAG, Amura, Bissau, 1967/69)

Guiné 61/74 - P26107: Os nossos seres, saberes e lazeres (652): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (177): Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Julho de 2024:

Queridos amigos,
Conhecer, em tempos idos, e de raspão, algumas das belezas que a vila e o concelho oferecem; jamais esqueci a igreja matriz, um belo pórtico tardo-gótico, a praia de água d'alto, a ermida de Nossa Senhora da Paz e a sua sumptuosa escadaria, contemplei à distância o ilhéu, tema de fundo deste último texto que reservo a Vila Franca do Campo. As surpresas vieram da estadia, logo o Museu Municipal, os templos religioso, as vistas que permitem os passeios pedestres circulando à beira-mar, a boa comida que aqui se desfruta, e já não falo da queijada da vila, uma obra-prima de doçaria; e há as olarias, tratadas lindamente como um património incontornável; e há o espetáculo do ilhéu, o tal que mereceu a Gaspar Frutuoso que é mais formoso ilhéu que há nas ilhas. Sigo agora para o último destino, Sta. Maria, uma ilha que pode ser avistada de Vila Franca em certos dias e não me passa ainda pela cabeça as maravilhas que me estão reservadas e sobretudo o encontro que um amigo mariense a quem dei recruta, no último trimestre de 1967, nos Arrifes, a escassos quilómetros de Ponta Delgada.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (177):
Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental – 6


Mário Beja Santos

Cheguei a Vila Franca do Campo com uma curiosidade histórica que gostava de ver resolvida, prende-se com a batalha que houve nestes mares aqui em frente entre a armada espanhola, comandada pelo marquês de Santa Cruz, e a armada luso-francesa comandada por Filippo Strozzi. Tudo acabou mal para este último, deu origem ao maior massacre que alguma vez aconteceu nos Açores. Bati à porta da biblioteca municipal à procura de elementos esclarecedores, e a sua diretora, muito gentilmente, enviou-me mais tarde um mail com algumas ilustrações indicando aquele livro ser a leitura mais importante, do ponto de vista espanhol. Retive as seguintes informações que passo ao leitor interessado.

Aqui vão as informações sobre a batalha naval de Vila Franca do Campo em 1582. Peço desculpa, mas a informação que lhe dei sobre o Gaspar Frutuoso foi confusão minha. Onde se encontram as informações sobre a batalha é no Arquivo dos Açores, nomeadamente no volume III, que certamente poderá ser encontrado nas bibliotecas públicas.
O livro espanhol de que envio o link, é o mais completo que conheço sobre o assunto. Além da batalha frente a Vila Franca do Campo, tem também a outra, na ilha Terceira, onde D. António se refugiou com as naus que escaparam e que foi depois palco de mais uma batalha naval, em 1583.
• A descrição da batalha naval frente a Vila Franca do Campo, em 1582, está no volume III do Arquivo dos Açores, de que lhe envio aqui as gravuras publicadas no mesmo volume.
• Cesáreo Fernández Duro - La Conquista de las Azores em 1583,
Este link permite o download do livro:
https://bibliotecadigital.jcyl.es/es/catalogo_imagenes/grupo.cmd?path=10065159


Gravura antiga alusiva à batalha naval de Vila Franca do Campo, 1582
A etapa seguinte é um passeio à Lagoa do Congro, não podendo competir com a Lagoa das Sete Cidades nem com a Lagoa do Fogo é uma visita obrigatória para quem pretenda conhecer um mundo dominado pelo verde, terra e água. O táxi larga-nos antes de percorrermos um bom caminho em terra batida e acidentada, a vegetação vai-se fechando, há o sentimento de uma floresta mágica, uma natureza que fenece e renasce, arvoredo de porte gigantesco, declives arborizados e súbito aquela imensidão de verde líquido, tudo numa atmosfera de profundo silêncio.
Lagoa do Fogo
Regresso a Vila Franca do Campo, hoje é dia de agenda turística forte. Peço ao motorista em dado momento para parar, interrogo-me sobre o que estou a ver, acreditem ou não é uma variedade de hortênsias, a hidrângea serrata, que beleza.
Hoje é um dia especial, abriram os passeios até ao ilhéu de Vila Franca. Tinha adquirido um livro de cariz científico e na legenda da fotografia aérea do ilhéu citava-se uma passagem do livro Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso: “(…) De fronte desta ponta de S. Pedro, pouco mais de um tiro de besta ou de berço, dentro do mar, está o mais formoso ilhéu que há nas ilhas.” É território da Região Autónoma, Reserva Natural Regional. O ilhéu subdivide-se em dois montes – o Ilhéu Grande e o Ilhéu Pequenino, encontram-se unidos num só, onde a entrada de água na cratera circular se faz através de fraturas geológicas; a maior alimentação de águas oceânicas (que permitem a fabulosa convivência de seres marinhos) executa-se através de um canal navegável. Sofreu as consequências do sismo de 22 de outubro de 1522.
Um dos autores desta obra, A. Frias Martins, perito altamente conceituado na conservação da biodiversidade escreve numa página lindíssima intitulada Terra Inclemente:
“Pedaço de rocha esquecido da terra mãe, seu cordão umbilical há muito carcomido pela fúria das ondas, o ilhéu de Vila Franca, como qualquer recém-nascido vulcânico, começou por viver das sobras biológicas que na ilha abundavam. Para lá chegarem naturalmente, as plantas do ilhéu contaram com os ventos fortes do Norte cujos redemoinhos arrastaram frutos e sementes, folhas e ramos e, agarrados a eles, um sem número de pequenos animais que a sorte ditou que encontrassem terra firme.
Neste rochedo inclemente, o Sol e o sal decidiam quem permaneceria agarrado ao tufo quase friável. O marmaço ardente do Sol secava as raízes pouco profundas e o Sol caustico da babugem das ondas queimava as folhas tenras; mas os cadáveres de tal sacrifício, acumulando-se, criavam um filme de solo fértil que melhorava as hipóteses de sobrevivência para os colonos que lhes seguiriam. As plantas traziam consigo os costumes da terra: o crescimento lento e a partilha do espaço, resultantes de uma convivência milenar que o processo evolutivo obrigara. Como resultado, um manto protetor cobria o solo, das ervas às árvores, retendo o escasso tufo pulverizado e guardando a preciosa humidade da chuva. E assim, pouco a pouco, à sombra do acaso pela persistência das probabilidades se estabeleceu no ilhéu uma escassa amostra da flora que outrora bordava a densa floresta de Laurissilva que cobria as ilhas e, com ela, o séquito animal que a caracteriza. E as aves vieram e declararam seu o seu rochedo.”

Um dos mais belos passeios da minha vida, os contrastes de paisagem, os metrosideros, a lantana, a figueira da Índia, os juncos, todas estas carpas dominadas pela vegetação, os autores da obra falam depois da sauna, não falta o cagarro, por ali passam golfinhos, nas águas há garoupas e muito mais peixe. Fica uma enorme vontade de voltar, finda a permanência em Vila Franca do Campo, tem belas praias à volta, tive a felicidade de em visitas passadas percorrer um pouco das terras do concelho, falo da Lagoa do Fogo, do Pico da Barrosa, de Ponta Garça, deu-me enorme prazer voltar à Lagoa do Congro. Está prometido, em espírito, o viajante voltará. Amanhã de manhã, num avião a hélice, que me lembrou o Dakota onde viajei na Guiné, aterrarei no último destino, Vila do Porto, não esperava tanta surpresa e encontrar um amigo que foi meu soldado nos Arrifes, em 1967. Tenho, pois, muito para contar.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 26 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26079: Os nossos seres, saberes e lazeres (651): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (176): Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental (5) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26106: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (15): Uma ida, algo dramático-burlesca, da CCAÇ 3, ao Senegal



Guiné > Região do Cacheu > Barro > CCAÇ 3 (1968/69) > Os temíveis "Jagudis",  de etnia balanta, nome de guerra do 3º Gr Comb, comandado pelo alf mil  A. Marques Lopes.

Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edução e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Do livro de memórias do A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015), reproduzimos as pp. 532/546) (que também constam parcialmente da sua página do Facebook, em postagem de  12 de setembro de 2019). É uma homenagem a um dos nossos, recentemente falecido, um histórico do nosso blogue, e um grande operacional (que passou por duas subunidades, a CART 1690 e a CCAÇ3, entre 1967 e 1969)... DFA, foi reintegrado no exército. Faleceu com o posto de coronel de infantaria, na situação de reforma.


 

Uma ida, algo dramático-burlesca, ao  Senegal

por A. Marques Lopes (1944 - 2024)



(..) Como eu era o alferes mais antigo,  fiquei a comandar a companhia na ausência do capitão, que tinha ido de férias. Houve um dia em que fui chamado a Bigene, ao COP3. O cabo cripto viera com uma mensagem na mão a dizer-me que era para ir falar com o major.

No dia seguinte peguei no meu grupo de combate e numas viaturas e fui para o COP3. No gabinete do major estava também um tipo à civil. Não o conhecia mas tinha um ar que dizia logo quem era. Do alto das suas botas de cavaleiro, o comandante do COP3 apontou com o pingalim para um mapa que tinha cheio de sinais coloridos. Falou sem rodeios:

– O agente Guerra…


Sou bruxo, pensei, é da PIDE e tem ar de fuinha como o pide Alberto que vi em Bafatá. O major continuava.

–  …tem informações que a população de Sano, da parte do Senegal, anda a fazer plantações de arroz e outros produtos na bolanha que está do nosso lado. Eu quero que você vá lá amanhã confirmar isso.

Apontara para o local que o capitão Olavo já lhe tinha indicado como tendo lá uma base do PAIGC. A conversa do major vinha confirmar que a fronteira era apenas uma linha no papel.

 
–  É natural que façam isso, meu major. Antes da guerra aquilo era tudo terra deles, dum lado ou doutro, viviam em conjunto e exploravam as terras em conjunto. Após começar a guerra é que passaram todos para o outro lado mas continuaram a trabalhar aquelas terras que tinham antes. Além disso, meu major, eu acho que uns reconhecimentos aéreos podiam confirmar isso.

De facto, não percebia porque é que era preciso ir lá para ver se era assim como o pide dizia. Pareceu-me e confirmei depois que o major não tinha gostado desta parte final. O pide sorria.

–  Ó nosso alferes, eu sei que você andou no seminário e, portanto, sabe o que quer dizer estar a ensinar o padre nosso ao vigário. Você é um miliciano quase imberbe e acha que me pode estar a dar conselhos a mim? E não sabe que o arroz que eles cultivam é para alimentar os terroristas?

Ele não falara em tom acintoso mas deixou-me enrascado. Não era pelo que ele tinha dito, era um homem corajoso e sensato, já mo tinha demonstrado, até gostava dele. Era mais pelo cabrão do pide que olhava para mim com ar zombeteiro. Não tinha dito a ninguém que tinha estado no seminário e só podia ser ele que tinha essa informação. Tinha cá uma vontade de lhe ir ao focinho…

– Peço desculpa, meu major. Não era minha intenção, de maneira nenhuma.

– Há mais  
– não me deixou acabar – diga lá, ó Guerra.

O pide endireitou-se na cadeira.

– Tenho também uma informação que estará lá um bigrupo reforçado. Consta que prepara um ataque ao seu quartel, alferes, e aqui ao COP. Mas esta não é uma informação muito segura, precisa de confirmação.

– Este é o outro objectivo da sua ida lá
–  disse o major.-–  É o mais importante. Quero que confirme se está lá, de facto, um bigrupo reforçado.

–  Mas, meu major, um bigrupo reforçado é muita gente e, se se preparam para nos atacar, hão-de estar bem armados, com armas melhores e mais poderosas que as nossas. Só tenho três grupos de combate na companhia, tenho de deixar um no quartel e ir lá só com dois.

–  Que porra! Lá está você outra vez, homem! Eu sei bem isso.

Continuou a falar. Eu ouvia-o mas ia também pensando que fizera bem em levantar dúvidas desde o princípio. Palpitava-me que ele lhe estava a fazer o mesmo que o coronel do Agrupamento de Bafatá quando o mandara para levar porrada e ficar na bolanha em Sinchã Jobel. Este só não me tinha ainda dito para levar uma corda. O major acabou por me dizer que, pelo menos, conseguisse um prisioneiro para interrogar e que andaria lá num PCV para me orientar.

–  Percebeu?

–  Percebi, meu major.

Percebia e estava a ver que era pior do que daquela vez em que pusera reticências ao capitão para ir ao corredor perto do Senegal. Estava feito

– Então venha aqui  
– levou-me para mais perto do mapa. -–  Um grupo vai até à bolanha e outro, quero que seja o seu, entra no Senegal e apanha esta picada aqui, está a ver? – Eu disse-lhe que sim senhor - Podem apanhar alguém na bolanha, porque eles vão lá, ou na picada, que é o caminho que fazem. É assim, mais nada.

Despediu-me e cumprimentei o major. Ao pide não liguei.

Uma vez no quartel juntei-me com o Salgado e o Rodolfo e expliquei-lhes a ideia do major do COP.

–  Eu tenho de ir porque o major decidiu que sim. Qual de vocês quer ir?

Eles olharam um para o outro e o Salgado decidiu-se primeiro.

–  Vou eu.

Preferia que fosse o Rodolfo, mas este não disse nada, ficou calado. Procurei não fazer como o Lindolfo e o Mendonça.

–  Então, ó Rodolfo, és tu que ficas a tomar conta disto. Porta-te bem. Salgado, vai falar com os teus furriéis e diz-lhes que têm de ter os homens prontos para sair amanhã logo de manhãzinha, às cinco horas. Eu vou fazer o mesmo com os meus. Diz-lhes o que é que vamos fazer e que tenham cuidadinho com a língua. Os gajos que não falem disto com os soldados, senão toda a tabanca fica a saber e estamos feitos. Quando sairmos, e já fora do quartel, ou vou dizer a todos qual é a missão. Agora vamos aqui ao mapa.

Chegaram-se lá e eu foi apontando.

– Vamos juntos até à ponta da bolanha, esta aqui ao pé do Senegal. Aí separamo-nos, eu vou para o Senegal, por aqui, até esta picada, e tu vais para o corpo principal da bolanha, ficas lá e esperas por mim, até eu regressar - o Salgado percebeu a ideia - Vou ter de levar o Bailo comigo para me indicar o caminho para aquela picada do Senegal. Tu chegas facilmente ao teu local, não é?

 Claro, vou chegar lá nas calmas.

Fomos, então, logo às cinco da manhã..

Às vezes dava-me, esta foi uma das vezes. Ia calmo. Era como assistir ao nascer da vida. Os ainda ténues raios de sol que furavam por entre as folhas da floresta levaram-me a pensar na centelha da vida que Michelangelo representou nos tectos da Capela Sistina. Resquícios da formação religiosa. O pipilar ainda suave dos inúmeros pássaros que habitavam as árvores maravilharam-me como lembranças do despertar dolente e suspiroso da Júlia à minha beira. Mas os grunhidos ruidosos e agudos do macaco-cão eram um despertar, alertavam-me para as passadas que devia dar e o caminho a seguir. Mantinham-me atento no meio das divagações.

Chegámos ao local da separação.

–  Tens o mapa da zona?  
– perguntei ao Salgado.

–  Tenho, claro.

–  Fica aqui, então, que eu vou atravessar a bolanha um pouco mais abaixo e, se tiver problemas, podes apoiar-me com fogo desse lado. Parece-me que é melhor para eu não ser apanhado entre dois fogos. O que achas?

Era uma precaução para não cair novamente nessa situação. Os meus furriéis e os do Salgado comentaram entre eles e pareciam de acordo.

–  Está bem, pá
–  disse também o Salgado.

–  Olha, mantém o teu “banana” sempre atento, eu vou estar com o meu também. É para nos mantermos em contacto e para nos irmos informando do que se passa dum lado e doutro. Além disso, o PCV do major do COP deve estar a aparecer e ele também vai querer conversa.

Separei-me levando o Bailo à frente para me indicar o caminho até à tal picada dentro do Senegal. Vira no mapa que a fronteira ali era uma linha recta entre os marcos 132 e 133. Nem sabia se os marcos ainda existiam, mas, mesmo que existissem, deviam estar totalmente cobertos de vegetação e não adiantavam nada para saber onde acabava a Guiné e começava o Senegal. Em certo momento tanto podíamos estar dum lado como do outro. Por isso é que aquela gente não tinha fronteiras. Era tudo o mesmo.

Estávamos há quase meia hora no meio da mata. O Bailo, por indicação minha, não escolhera carreiros e a progressão não era fácil. Quando se começou a ouvir o ronronar da DO, diz o radiotelegrafista:

–  Meu alferes, está aqui o PCV.

Peguei no “banana”.

–  É pa, já vi que o Salgado está no local indicado 
–  disse o major.  – Mas você ainda não chegou, pá!. Estou a ver daqui o sítio onde devia estar.

O engraçado queria festa. Ia levar.

– Meu major, aqui no meio desta mata cerrada não é tão fácil descortinar o objectivo como aí de cima. Tenho tido dificuldades na progressão, mas o meu guia diz-me que estamos quase a chegar.

Uns segundos de silêncio. Devia ter acusado o toque, mas não se descoseu.

–  Quando chegar avise-me que eu vou andando por aqui.
Desligou.

Acabámos por chegar e emboscámo-nos na berma da picada.

– Ninguém dispara nem se mexe, só à minha ordem 
– disse.

Avisei o major da chegada e liguei ao Salgado para saber como estava. Este disse-me que não via vivalma. O PCV deu mais umas voltas e afastou-se. Ainda bem, pensei, senão os tipos começavam a desconfiar que havia ali qualquer coisa.

A certa altura, o Bailo, que estava perto a espreitar por entre uns ramos, segreda-me:

Alfero, um djipi.

Espreitei também.

– São turras?

O Bailo observou melhor.

 – Polícia Senegal  – disse.

Bonito, só faltava isto. Tinha de os tirar dali. O Bailo não usava camuflado, era guia civil, ia ver o que é que dava.

 Bailo, levanta-te e fala com eles.

Sabia que era um tipo expedito, embora às vezes até demais. Ele levantou-se logo e foi para o meio da picada. O jipe aproximou-se e parou. Os seus ocupantes sorriram.

 
 Bonjour, camarade  –  disse um deles.

Pensaram que era um do PAIGC. Era o que eu queria, que parassem confiantes. Fiz sinal para todos se levantarem e fui o primeiro a saltar. Assim que me viram, era um branco!, ficaram de olhos esbugalhados e levaram instintivamente as mãos às armas.

 Quietos! 
 gritei, apontando-lhes a G3.

Foram cercados pelo grupo e ficaram quietos. Viram logo que o branco era o comandante e um virou-se para mim.

 Banderra de Senegal amie de banderra de Portugal.

Disse isto com voz arrastada enquanto o outro abanava a cabeça de assentimento. Achei-lhes piada.

– 
Deixem-se de merdas! O que é que fazem aqui?

–  Nous avons des femmes amies au village.

Os sacanas até percebiam português. Ou não, se calhar apenas se apressaram com uma desculpa. Houve uma agitação e vi o Blétche e o Falcão de armas apontadas para a picada do lado da tabanca.

 Ninguém dispara!

Ao meu grito abaixaram as G3.

Um miúdo de sete ou oito anos arrastava apressadamente pela mão um velho. Vinham pela picada, depois de ter visto o grupo o miúdo tentava fugir.

 – Aguinaldo, vá lá buscá-los  – e disse aos outros para vigiarem os gendarmes.

A secção do Aguinaldo agarrou-os facilmente. Antes de chegarem, reparei que o velho era cego. O miúdo era o guia dele.
O velho, agitado, dizia algumas palavras que não entendia mas que me pareceram crioulo. Disse ao Otcha para saber o que andavam a fazer e para onde iam. O rapazito estava cheio de medo. O cego abria os olhos baços e franzia a boca receosa. Apercebera-se do mal invisível.

– Iam para uma tabanca aqui perto onde têm família. O velho é avô do rapaz e é cego.

Foi a informação do Otcha depois de falar com eles. A DO estava agora por cima de nós. O radiotelegrafista trouxe-me o “banana”.

 O que é que se passa aí em baixo, nosso alferes?

– Meu major, é um jipe com dois gendarmes do Senegal, apareceram aqui. Parece-me que é melhor irmos embora, já não dá para o que viemos fazer.

 
–  Eh, pá! Mande os gajos embora, e sem uma beliscadura. Não podemos arranjar problemas desses. Depois pode retirar.

Virei-me, depois, para os gendarmes.

– Allez-vous en! Levem o cego e o miúdo!

Ficaram encantados, nem se lhes notou qualquer contrariedade por não irem ter com as “femmes amies”. Elas lá estariam à espera para outra altura, certamente.

 
Agarrem nos dois e metam-nos no jipe  disse para os que cercavam o avô e o neto.

Quando os gendarmes partiram dei ordem de abandono da posição. Não era bom continuar ali pois tinha a certeza que eles iam avisar o PAIGC. Disse ao Bailo para ir por caminho mais fácil, não queria demorar muito com receio de sermos perseguidos. Metemos pela mata em direcção à Guiné e demos com uma tabanca. Estava abandonada, com alguns restos de moranças ainda, muito mato rasteiro, mas havia um grupo de bananeiras ao pé da mata. Devia ser Sarancototo, pelo que vira no mapa.

 
– Está ali uma mulher!  – gritou o Otcha.

Todos viraram a cara para lá. Ela tinha-os ouvido e virou também a cara para nós. Viu-nos e desatou a correr. Levava uma criança no bambaran, o pano para segurar as crianças às costas. Logo alguns levantaram a G3.

– Quietos!  – gritei saltando para a frente deles. – Fodo o primeiro que disparar! Clode, Falcão, vão atrás dela!

A morte de Abess nunca mais me saíra da cabeça e não queria outra situação idêntica.

Vi que o bambaran se soltara e a criança caíra no chão. A mulher virou-se angustiada a ver a criança a chorar mas olhou com terror para o Clode e o Falcão que corriam para ela e continuou a fugir internando-se na mata.

De repente o silvo de um rocket. Atiráramo-nos todos para o chão. O rocket rebentou perto das palmeiras.

– Clode, Falcão, tragam a criança! Todos para a mata!

O Clode corria com a criança nos braços. Começou o fogachal do lado do Senegal. Já abrigados na orla da clareira, disse para o Bailo:

– 
Estamos longe do alferes Salgado?

– Não tá, nossalfero. Tá perto à direita.

Mandei, depois, o furriel Fernandes ir com a secção dez metros para trás, recomendando-lhe que só disparassem morteiradas. O Lindolfo foi dez metros para a direita. Fiquei com o Aguinaldo Baldé, que tinha o Benhanté com a bazuca. Disse também a três homens da secção dele para irem dez metros para a esquerda. Era uma precaução porque tinha a ideia que eles podiam cercar-nos. Com a bazuca ali podia retê-los até decidir recuar.


– Polícias foram avisar os turras  – disse o Aguinaldo por entre as rajadas.

–  Claro.

 
– Devíamos ter matado eles.

–  E arranjávamos um trinta e um do caraças, era?.

As bazucadas do Benhanté e os dilagramas do Otcha mantinham-nos em respeito. Disse ao radiotelegrafista para ligar ao alferes Salgado. Quando o fez deu-me o “banana”.


–  Ó Salgado, estás a ver o que está a suceder?

–  Estou, pá, bem as oiço. Estou a ver que tens festa.

–  Tu daí podes dar-nos uma ajudinha. Nós estamos na tabanca que está à tua esquerda. Tens o mapa, faz os cálculos e manda-lhes umas morteiradas para a mata do lado do Senegal.

 
–  É, pá, eu já não estou no mesmo sítio. Vou a caminho do quartel.

 –  O quê!? Foda-se! Tínhamos combinado que ficavas lá à minha espera!

 –  É pá, vi que não estava lá a fazer nada.

– Vai pró caralho!  –  e desliguei.

O Aguinaldo, mesmo no meio do tiroteio, apercebera-se da conversa.

– O que foi, meu alferes?

– 
O alferes Salgado deixou-nos, foi-se embora.

– 
O alferes Salgado não é bom.

– 
É mas é um grande filho da puta  
– estava mais que furioso.

Passados mais uns minutos, disse ao Benhanté para mandar mais uma bazucada e ao Otcha um dilagrama e mandei recuar. Verifiquei que do lado esquerdo e do direito também o faziam. 

Enquanto isso o Fernandes continuava com as morteiradas. Quando nos juntámos todos ouvi a DO. Foi eu que ligou logo.

 
–  Estamos aqui com um problema, meu major.

–  Já sei. Estava na pista do quartel e ouvi. É o tal bigrupo?

–  Parece-me que não há nenhum bigrupo, meu major. Os que nos atacaram não têm esse poder de fogo, além de que não tiveram capacidade para uma manobra de envolvimento que nos lixasse.

- Podem não ter querido mostrar. Mas agora não interessa.

 Retire-se que eu vou pedir uns T6 para despejarem aí umas bujardas.

 
–  É ótimo, para ver se não vêm atrás de nós. Além disso podem dar cabo de umas plantações de arroz que eles têm na bolanha. Mas isso o meu major já sabe.

Uns segundos para engolir, como era hábito.

–  Toca a andar, homem. Eu vou para o quartel e falamos lá.

Não explodia facilmente, era verdade.

Não íamos muito longe quando os T6 apareceram. Despejaram umas tantas e foram-se embora. Mas deu para que os do PAIGC não nos fossem no encalço. Durante o caminho cheguei-me à secção do Fernandes, onde o Clode continuava com a criança ao colo.

 Nomi di bó? 
–  perguntei-lhe.

– 
 É badjudinha 
–  disse o Clode.

Ela não disse nada e chorou.

-
–  Tá bem, é rapariga. Ó Fernandes, que dia é hoje?

–  É dia 20 de Agosto, meu alferes.

–  Não. O dia da semana.

– 
 É terça-feira.

–  Então, como a miúda não quer ou não sabe ainda dizer o nome, vamos chamar-lhe Terça.

O pessoal ouviu, cochicharam entre eles e acharam piada. Era normal para eles, havia muitas Sábado e Segunda, conforme o dia da semana em que tinham nascido. Não era novidade. 

Quando  chegaram ao quartel, o primeiro que viu foi o Salgado. Foi o o primeiro proque era quem queria ver. Estva com o Rudolfo.  Dirigiu-se a ele, deG3 em riste.

–  Se me fazes aquilo outra vez, fodo-te o coiro! 

(...)

(Revisão / fixação de texto, título: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26089: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (14): assim nasceram os Jagudis, nome de guerra do meu grupo de combate, na CCAÇ 3 (Barro, 1968/69)

Guiné 61/74 - P26105: Parabéns a você (2323): Abílio Magro, ex-Fur Mil Amanuense do CSJD/QG/CTIG (Bissau, 1973/74)

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Nota do editor

Último post da série de 1 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26101: Parabéns a você (2322): José Carlos Gabriel, ex-1.º Cabo Operador Cripto da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513/72 (Aldeia Formosa, Cumbijã e Nhala, 1973/74)

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26104: Notas de leitura (1739): João Barreto, o que ainda falta saber da sua vida intelectual e científica (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Nunca imaginei que me iria dar a esta investigação sobre a vida e obra de João Barreto. O Dr. Google, sempre tão prazenteiro, fechou-me todas as portas, mas foi ali, depois de muita divagação, que cheguei ao Arquivo Histórico da Presidência da República onde, pasme-se, estava o nome de João Vicente Sant'Ana Barreto, que tivera uma proposta de condecoração para Cavaleiro da Ordem de Avis. Felizmente que havia um dossiê e nele fiz a primeira descoberta de que João Barreto fora promovido a tenente-médico em 1916 e enviado para Cabo Verde. Depois houve que folhear o Boletim Oficial da Colónia e descobrir a sua chegada, o seu estágio na cidade da Praia e os anos que passou na ilha do Fogo.Há ainda que vasculhar na imprensa cabo-verdiana da época se escreveu textos sobre a sua arte, a epidemiologia. No início de 1919 chega à Guiné, percorrerá vários lugares e localidades até assentar em Bolama e dirigir o laboratório central de análises do Hospital Civil e Militar, foi aí que começou a sua vida de autor, um cientista muito comunicativo, capaz de escrever artigos de divulgação, de comprovado rigor. Reformou-se por razões de saúde em outubro de 1931, vou agora começar à procura do que é que ele fez de 1932 a 1940, ano em que faleceu, com 52 anos.

Um abraço do
Mário



João Barreto, o que ainda falta saber da sua vida intelectual e científica

Mário Beja Santos

Quando apresentei na Sociedade de Geografia de Lisboa, no passado dia 10 de outubro, o meu estudo sobre João Barreto adverti quem me escutava que já sabia um pouco mais sobre a sua vida e obra, mas persistiam lacunas e um ambiente de nevoeiro à volta dos seus últimos anos de vida.

Permitam-me que vos conte os primórdios desta investigação. O editor e nosso confrade Daniel Gouveia telefonou-me um dia a perguntar se eu ia ao lançamento de um estudo sobre a História da Guiné de João Barreto, respondi que nada sabia, senti a curiosidade acicatada, perguntei-lhe a quem me devia dirigir, que eu contatasse a Casa de Goa, local do lançamento do trabalho. Dado o consentimento, lá fui para os lados de Alcântara, nem pressentia que iria conhecer um edifício em vias de demolição devido às obras do metro. Tocou-me a explanação do neto de João Barreto que só soubera da existência da História da Guiné há muito pouco tempo, adquirira um dos exemplares num alfarrabista que mandara fazer uma edição fac-similada para distribuir por familiares e amigos. Vi-me de repente instigado a perorar sobre o conteúdo da História da Guiné, aliás a única História até hoje existente, edição de 1938, obviamente a sofrer as rugas do tempo, poucos anos depois da edição de autor começavam os trabalhos de Vitorino Magalhães Godinho, Duarte Leite, Fontoura da Costa, Teixeira da Mota e Damião Peres, entre outros, que alteraram profundamente os conhecimentos sobre a nossa presença, o acervo literário, mexeram-se nos arquivos, sabe-se hoje muito mais, embora quem quer que se venha a acometer ao estudo da História da Guiné deverá futuramente que fazê-lo em equipa multidisciplinar envolvendo a Guiné-Bissau, Cabo Verde, Portugal, Senegal, Guiné Conacri, todos estes países deixaram rasto na chamada Senegâmbia.

Foi então que o neto de João Barreto, Aires Barreto me perguntou se eu tinha disponibilidade para investigar o que este médico epidemiologista, licenciado em 1913 na Escola Médico-Cirúrgica de Nova Goa, com altíssima classificação, fizera na Guiné e, se possível, qual a sua atividade em Portugal, depois de reformado. Aceitei o desafio e estou agora em condições de dizer que este médico nascido em Margão foi professor universitário em Nova Goa, aí apresentou, com recurso a moderníssimas técnicas de investigação, um estudo sobre a peste na Índia Portuguesa, fez estudos complementares em Lisboa, onde obteve boa classificação (área em que ainda há lacunas), foi nomeado tenente-médico para o Quadro de Saúde de Cabo Verde em Guiné, em junho de 1916, trabalhou em Cabo Verde de 1916 a início de 1919, na cidade da Praia e na ilha do Fogo, não se lhe conhece obra científica, a não ser os relatos mensais exigidos por lei sobre o estado da saúde pública na ilha onde passou tanto tempo. Na Guiné exerceu vários mistérios, em Bafatá, Cacheu, Farim, Bissau e Bolama. Enquanto delegado de saúde em Cacheu, foi louvado por ter coordenado com êxito uma campanha contra a peste. Dirigiu o laboratório central de análises de Bolama, encontram-se as suas apreciações em vários Boletins Oficiais da província da Guiné. Por volta de 1926 começa a publicar relatórios e artigos, é submetido a uma Junta de Saúde em 1931, e reformado.

Há passos da sua vida que me parecem inexplicáveis. O antigo governador da Guiné, Leite Magalhães, a quem prefacia a sua história e refere somente 12 anos de Guiné; em vários currículos também só se fala da sua presença na Guiné, parece que o autor pretendeu um manto de silencia sobre a sua estadia em Cabo Verde. Só conhecia uma fotografia dele, já na maturidade, era então para os seus familiares a única fotografia conhecida, veio publicada num conceituado jornal goês, Diário da Noite, no início de 1941, o seu falecimento (faleceu em Lisboa em 1 de dezembro de 1940, com 52 anos).

Há tempos, a bibliotecária da Biblioteca da Sociedade de Geografia trouxe uma história da Escola Médico-Cirúrgica de Goa sobre os seus vultos mais relevantes. Foi com enorme satisfação que encontrei um jovem médico, indumentado com bata profissional, já a enviei ao neto, que rejubilou. Prometo dar mais informações sobre o que se vier a descobrir quer quanto ao que se escreveu e não vier mencionado, e sobretudo, saber se este médico e investigador amador, difundiu nos anos que viveu em Lisboa entre 1932 a 1940, mais informações sobre a Guiné que seguramente muito amou – 12 anos ali não é amor impune.

A cidade de Bolama dos tempos de João Barreto
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Nota do editor

Último post da série de 28 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26088: Notas de leitura (1738): Quando se ensinava a literatura da Guiné-Bissau nas escolas portuguesas (Mário Beja Santos)