quinta-feira, 29 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6803: Contraponto (Alberto Branquinho) (13): Cambança com Caronte, ou A última viagem do soldado


CONTRAPONTO (13)

CAMBANÇA COM CARONTE
OU A ÚLTIMA VIAGEM DO SOLDADO


No meio de toda aquela confusão – tiroteio, gritos, bazucadas, roquetadas… – ouviu um grande estouro. Depois foi o silêncio.

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Agora navegava. O rio era escuro, fundo, espesso. A canoa avançava, a impulsos do remador. O remo à ré. Água sempre escura. Céu não havia. Uma luz ténue a afastar-se, longe.

A canoa penetrava no escuro, aos solavancos. O homem, deitado, adivinhava o vulto do remador, os oscilar das vestes, o capuz que lhe cobria o rosto, os braços que repetiam os gestos.

Havia um grito agudo e angustiante, que não sabia se estava dentro da cabeça ou se o ouvia ao longe.

Não havia tempo. Ou o tempo não estava ali.
Por entre o grito, ouvia vozes graves, profundas. Ora próximas, ora distantes. Talvez, também, murmúrios de quem reza.

Assim ficou. A canoa suspensa sobre a água. Vozes. E o grito. Vozes, vozes. Perto. Perto. Durante muito tempo.

Sentiu que abria os olhos. Por entre um manto vermelho, para além tudo era branco.

Porquê? Porquê? – perguntou-se. Sentiu uma grande angústia. Fechou os olhos.

A cabeça batia com força. Por dentro. E o grito aumentava, aumentava. Ouviu berrar. Chamar alguém. O remador empurrava-lhe o peito, ao ritmo de quem rema. Tentou gritar. Não conseguiu. O grito ficou encalhado na garganta.
Depois tudo foi ficando escuro, escuro e quedo. E acabou.
NUNCA MAIS.

Alberto Branquinho*
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Notas de CV:

(*) Alberto Branquinho foi Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69

Vd. último poste da série de 23 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6778: Contraponto (Alberto Branquinho) (12): Duas visões do Almirante Américo Thomaz

4 comentários:

Juvenal Amado disse...

Caro A. Branquinho

Falas de vida e de morte.
Naquele tempo qual a fronteira?
A morte passou e o horror ficou nos nossos olhos e corações, testemunhas das vidas que não cumpriram.
O silêncio está carregado de rezas, gritos, imprecauções.

Continua a fazer barulho nas nossas cabeças.

Parabéns pelo texto

Juvenal Amado

Anónimo disse...

Camarigo, escritor

Isto é um estilo literário, muitíssimo bem escrito.

Quem grita? é a pergunta sem resposta...

Como meia dúzia de linhas nos dá um retrato da guerra...

Obrigado, Calvo ESCRITOR

Vasco A.R. da Gama

Hélder Valério disse...

Caro Branquinho

É um daqueles textos que nos deixa a pensar e a arranjar personagens que se encaixem na história...

Enquadrável no estilo neo-realista, tipo 'Seara de Vento' do Manuel da Fonseca.
Abraço
Hélder

Anónimo disse...

Aos Juvenal Amado, ao Vasco da Gama e ao Helder Valério, cada um a seu modo.

Em especial para o Vasco da Gama: essa do "calvo escritor" não lembraria ao careca...
Alberto Branquinho