Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 29 de julho de 2010
Guiné 63/74 - P6803: Contraponto (Alberto Branquinho) (13): Cambança com Caronte, ou A última viagem do soldado
CONTRAPONTO (13)
CAMBANÇA COM CARONTE
OU A ÚLTIMA VIAGEM DO SOLDADO
No meio de toda aquela confusão – tiroteio, gritos, bazucadas, roquetadas… – ouviu um grande estouro. Depois foi o silêncio.
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Agora navegava. O rio era escuro, fundo, espesso. A canoa avançava, a impulsos do remador. O remo à ré. Água sempre escura. Céu não havia. Uma luz ténue a afastar-se, longe.
A canoa penetrava no escuro, aos solavancos. O homem, deitado, adivinhava o vulto do remador, os oscilar das vestes, o capuz que lhe cobria o rosto, os braços que repetiam os gestos.
Havia um grito agudo e angustiante, que não sabia se estava dentro da cabeça ou se o ouvia ao longe.
Não havia tempo. Ou o tempo não estava ali.
Por entre o grito, ouvia vozes graves, profundas. Ora próximas, ora distantes. Talvez, também, murmúrios de quem reza.
Assim ficou. A canoa suspensa sobre a água. Vozes. E o grito. Vozes, vozes. Perto. Perto. Durante muito tempo.
Sentiu que abria os olhos. Por entre um manto vermelho, para além tudo era branco.
Porquê? Porquê? – perguntou-se. Sentiu uma grande angústia. Fechou os olhos.
A cabeça batia com força. Por dentro. E o grito aumentava, aumentava. Ouviu berrar. Chamar alguém. O remador empurrava-lhe o peito, ao ritmo de quem rema. Tentou gritar. Não conseguiu. O grito ficou encalhado na garganta.
Depois tudo foi ficando escuro, escuro e quedo. E acabou.
NUNCA MAIS.
Alberto Branquinho*
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Notas de CV:
(*) Alberto Branquinho foi Alf Mil de Op Esp da CART 1689, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69
Vd. último poste da série de 23 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6778: Contraponto (Alberto Branquinho) (12): Duas visões do Almirante Américo Thomaz
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4 comentários:
Caro A. Branquinho
Falas de vida e de morte.
Naquele tempo qual a fronteira?
A morte passou e o horror ficou nos nossos olhos e corações, testemunhas das vidas que não cumpriram.
O silêncio está carregado de rezas, gritos, imprecauções.
Continua a fazer barulho nas nossas cabeças.
Parabéns pelo texto
Juvenal Amado
Camarigo, escritor
Isto é um estilo literário, muitíssimo bem escrito.
Quem grita? é a pergunta sem resposta...
Como meia dúzia de linhas nos dá um retrato da guerra...
Obrigado, Calvo ESCRITOR
Vasco A.R. da Gama
Caro Branquinho
É um daqueles textos que nos deixa a pensar e a arranjar personagens que se encaixem na história...
Enquadrável no estilo neo-realista, tipo 'Seara de Vento' do Manuel da Fonseca.
Abraço
Hélder
Aos Juvenal Amado, ao Vasco da Gama e ao Helder Valério, cada um a seu modo.
Em especial para o Vasco da Gama: essa do "calvo escritor" não lembraria ao careca...
Alberto Branquinho
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