1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Março de 2010:
Queridos amigos,
Para a semana “despeço-me” do José Martins Garcia*, tenho duas outras recensões em mãos. Venho novamente lançar um apelo a quem tem as obras do Álvaro Guerra e mas possa disponibilizar.
Faço o mesmo pedido para quem tem livros do Cristóvão de Aguiar, o grande nome da literatura da Guiné a partir dos anos 80. Agradeço antecipadamente a ajuda dos nossos tertulianos.
Um abraço do
Mário
José Martins Garcia, um contista fabuloso
Beja Santos
O crítico Álvaro Manuel Machado ao apreciar o grande livro que é “Lugar de Massacre” apõe-lhe os contos de “Morrer Devagar” como um prolongamento do romance. E são-no, de facto. O romance surgiu em 1975 (convém não esquecer “Katafaraum é uma nação”, publicado em 1974, é seguramente a primeira obra não visada pela censura onde se fala da guerra colonial), os contos “Morrer Devagar”surgem em 1979, tendo como chancela a Arcádia Editora. José Martins Garcia previne que o título tem a ver com o primeiro conto, a obra em si é miscelânea de diferentes intervenções onde uma parte significativa passa por histórias burlescas da Guiné.
Na nota biográfica, consta o seguinte: “José Martins Garcia nasceu na ilha do Pico e veio para Lisboa aos 15 anos de idade. Nesta cidade se licenciou em Filologia Românica. Andou na guerra, foi leitor de Português em Paris, ensinou na Faculdade de Letras de Lisboa, foi director-adjunto do Jornal Novo e até militante do Partido Socialista, do qual se demitiu por fastio invencível. Tem colaborado em vários jornais e revistas: República, A Capital, Jornal do Fundão, A Luta, Diário de Notícias, Colóquio Letras, Vida Mundial. Presentemente não pratica nenhuma religião, não adere a nenhum credo político, não perfilha qualquer sistema filosófico nem apoia qualquer imobilismo estético”. Foi depois professor nos Estados Unidos e ensinava na Universidade dos Açores em 2002, quando faleceu.
Atrevo-me a dizer, até prova em contrário, que o melhor conto escrito sobre a Guiné, por um combatente, se intitula “As suspeitas de um bravo capitão”. Antes de passarmos ao seu conteúdo e a outros contos deste ilustre escritor açoriano desaparecido em 2002, convém recordar que José Martins Garcia se movimenta agilmente entre o paranóico e o demencial, entre o burlesco e o corrosivo, entre a paródia e a pantomima. O chamado antigo combatente tem por vezes dificuldades em aceitar a derrisão, o pandemónio e as construções alucinantes em torno da descrição da guerra. Goste-se ou não, são os muitos os escritores que abrem mão da pilhéria e do grotesco para sulcar ainda mais fundo os enredos de
non sense. Martins Garcia é um artífice da escrita carregada de vitríolo e doidice metafórica. Como sobejamente comprovam estes contos.
“As suspeitas dum bravo capitão” abre e engana-nos pela atmosfera de normalidade: “Com a chegada do mês de Dezembro, a situação melhorara a olhos vistos. Os tornados rodopiantes e lamacentos haviam cedido o lugar a uma viração seca, quase apetitosa, que parecia limpar da planura guineense aquele fedor alagado onde se misturava à erosão um subtil, talvez moral, cheiro a cadáver.
Na vila de Catió, lá para o Sul, onde a mosquitagem crescia delirante na estação das chuvas, o batalhão de caçadores tinha agora um novo comandante, o tenente-coronel Galvão, um ser tratável, quase bondoso, um tanto sentimental, um tudo-nada neurasténico antes de se lançar nos uísques. O antigo comandante, o insuportável tenente-coronel Barradas, cuja paranóia crescera na proporção directa do entupimento dos tímpanos, havia sido afastado do activo, finalmente”.
Depois o escritor descreve a população de Catió, os comerciantes, o administrador, o enfermeiro e o agente da PIDE, bem como o técnico da central eléctrica. Os fulas vivendo em Priame, sob autoridade feudal de João Baker Jaló, alferes de segunda linha. Os nalus tinham desertado, ficaram os balantas. No início da guerra, a estratégia passara pela dispersão e fragmentação das tropas; tendo-se revelado desastrosa, o novo comando mandou recolher a Catió as tropas. O autor descreve a situação: “Para aboletar todo este pessoal belicoso, o quartel expandiu-se pelo povoado. Os militares ocuparam tudo o que possuísse tecto, desde casas meio arruinadas até às moradias de comerciantes que, alertados pelos primeiros rumores do invencível terrorismo, rapidamente se haviam transferido para regiões de mais densa população branca, nomeadamente Bissau e Bafatá”. Os ataques eram escassos em Catió, mais frequentes em Bedanda, Cachil e Ganjola. Sendo possível concentrar em Catió todo o batalhão, este voltou a dispersar. Foi de Catió que partiu a expedição sobre o Como, que o escritor açoriano assim averba:
“O ataque à ilha de Como, onde posteriormente se instalaria a chamada companhia do Cachil, nunca foi registado pelos cronistas, talvez porque estes, sempre tão eloquentes em casos de vitória, se desgostam das estrondosas derrocadas... a Força Aérea cumpriu o seu dever, descarregando sobre os objectivos o arsenal estipulado. Para nada! Os abrigos subterrâneos da ilha do Como, construídos, dizia-se pelos soldados do Hitler, em certa fase da Segunda Guerra Mundial, resistiam bem a qualquer bombardeamento, não só devido à cortina natural da vegetação como pela consistência do material, coisa alemã, coisa inexpugnável, ali mandada cavar pelo Hitler... Depois da Força Aérea, coube a vez à Artilharia, ali classicamente postada para cobrir o avanço da Cavalaria. A Artilharia cumpriu a sua missão, despejando sobre a ilha sinistra a quantidade estipulada de material ardente, sem grande precisão, aliás, pois o alvo flutuava nessa latitude onde as marés esticam e encurtam a terra em vários milhares de quilómetros quadrados. A Cavalaria entrou nas lanchas da Marinha e, sob a protecção da Artilharia, escorregou para o lamaçal desconhecido. A Infantaria, finalmente chamada a reconquistar com seu pé clássico o terreno rebelde, saltou no vazio, atolou-se, afundou-se, emaranhou-se e alguns dos nossos mais bravos soldados crucificaram-se a si mesmo no matagal.
E então o inimigo invisível foi abatendo misericordiosamente os feridos, enquanto a Marinha dava por cumprida a delicada missão, a Artilharia cessava a actuação segunda bem conhecidas regras e a Cavalaria jazia em veículos inoperantes. Havia muito que a Força Aérea despejara seus inócuos carregamentos, pois a noite caíra, repentina, e só os moribundos, sem cronista de serviço, se esvaiam sobre a lama que o tempo não guardou”. Dois anos depois, o exército instalou-se no Como, em Cachil, sem se perceber lá muito bem a função. O quartel passou a ser uma permanente ameaça de desterro. Martins Garcia prepara assim a sua trovoada pirotécnica:
“Foi quando chegou a Catió, em escala para Bissau o doente capitão Lourenço, ex-comandante efectivo do Cachil. As suas faces chupadas não excluíam de forma alguma a hipótese de doença ruim... o comandante Galvão apressou-se a enviar para Bissau o hóspede impertinente, “para ele se curar”. Do Cachil não vinham nem bons ventos nem bons hóspedes, nem sequer boas notícias. A última irregularidade cometida por essas bandas rezava da alquimia operada no interior de um barril, cujo conteúdo vínico se revelara água. O comandante Galvão abominava as pequenas trapaças tão frequentes na carreira que escolhera. E, por pensar em reabastecimentos, fez-lhe espécie, pela primeira vez, o facto de o capitão Clemente, oficial de Cavalaria, se ter enconchado na manutenção, superintendendo na batata, no vinho, no arroz, no bacalhau, como se fosse um desses da Administração, um “padeiro”. O capitão Clemente empalideceu quando soube da decisão do tenente-coronel Galvão: mandá-lo para o Cachil, na qualidade de comandante interino, encarregando-o, mui honrosamente, de apurar a verdade acerca da transformação do vinho em água, alquimia tanto mais escandalosa quanto invertia a regra dos Evangelhos.
– Mas, meu comandante – gaguejou o capitão Clemente – logo agora, que a minha mulher veio para cá...
– Mas você fica lá só uns dias, homem! Há meses que não se ouve um tiro para aquelas bandas... a situação melhorou é o que toda a gente diz.
O capitão Clemente partiu desmoralizado e começou a portar-se mal diante da escolta que o acompanhou ao cais, chegando ao ponto de gemer de voz embargada:
– Agora é que não torno a ver a minha mulher nem os meus filhos...
Ao cair brusco da noite, encontrava-se no seu novo e miserável posto de comando, enclausurado pelo arame farpado, remoendo angústias, ao centro do improvisado quartel: um abrigo subterrâneo com duas toscas divisões, uma saleta quase desmobilada, separada do quarto por uma vedação de bambu mal entrançado... Mais tarde quando deu as boas noites aos alferes e se fechou no quarto, voltaram-lhe à memória as fábulas incertas, tão incertas quanto divulgadas em terras da Guiné: dezenas de mortos e feridos: a Cavalaria a atolar-se, a Artilharia a esquivar-se, a Infantaria a imolar-se. Às duas da manhã, porque era preciso poupar combustível, as lâmpadas extinguiram-se e a geradora deixou de arquejar. O capitão Clemente chamou a sentinela e recomendou-lhe vigilância; que não abandonasse a porta da tabanca. A sentinela limitou-se a acenar afirmativamente. Que imbecis! E as latrinas haviam mergulhado no escuro, lá para o outro extremo. Que criminosos! Nem havia uma privada para uso privado do comandante.
O capitão Clemente começou a sentir dores de barriga. Tinha medo, é certo; mas a causa daquelas cólicas devia ser o mau estão do jantar: uns feijões embrulhados em farrapos de carne duvidosa... o capitão Clemente dormiu pessimamente, revolvendo-se na cama dura, sentir atolar na água negra do canal. Muito cedo, a passarada desatou a chilrear. O Sol, finalmente, viria trazer-lhe um pouco de alento, depois do horrível negrume daquela noite memorável.
O capitão espreitou por uma nesga da porta e avistou a sentinela. Com um berro indignado, onde perpassavam a aspereza e o peso do comando, mandou que o militar se aproximasse:
– Entra, que temos de conversar!
O soldado mal abria os olhos atordoados, pois acabara de render um camarada:
– Estás a ver aquilo, pá?
Hirto, solene, o capitão Clemente apontava um canto do quarto, onde alguns cagalhões se cavalgavam.
– Põe-te em sentido! – uivou a indignação do bravo capitão Clemente.
O soldado obedeceu, boquiaberto.
– E agora – rematou o bravo capitão, mais que fera – responde! Quem foi o filho da puta que fez uma coisa destas?
Não fica por aqui o chocarreiro virulento, de Martins Garcia, há mais contos para contar, em “Morrer Devagar”.
(Continua)
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 3 de Março de 2010 >
Guiné 63/74 - P5924: Notas de leitura (72): Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (Beja Santos)
Vd. último poste da série de 8 de Março de 2010 >
Guiné 63/74 - P5952: Notas de leitura (76): Kikia Matcho, de Filinto de Barros (Beja Santos)