Pesquisar neste blogue

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26890: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (6): Exportar caju e importar arroz: uma fatalidade?



Guiné-Bissau > Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da semana > "Chegou a hora do Caju" > Data de Publicação: 9 de maio de 2010 > Data da foto: 24 de abril de 2010. Palavras-chave: Segurança alimentar .

Foto (e legenda) © AD - Acção para o Desenvolvimento (2010).
 Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]

(http://www.adbissau.org/adbissau/fotodasemana/2010.05.09.htm) (link descontinuado) (*)

Legenda que tinha o inegável cunho crítico, original e pessoal,  do nosso querido amigo Pepito, engº agr. Carlos Schwarz (Bissau, 1949-Lisboa, 2012), então diretor executivo da ONG AD. Faz muita falta ao seu país. Infelizmente, os bons irãs não o protegeram.

"Aí está! Chegou a hora do caju!

"Anualmente, por esta altura, o caju assume a sua omnipresença e todos se envolvem freneticamente nesta actividade, excluindo bem claro, os que estão mais preocupados em dar uso às fardas e às armas.

"Para além da castanha de caju, vendida ou trocada por arroz, num processo iniciado há mais de 20 anos e que subverteu por completo a lógica da segurança alimentar nacional, a qual deixou de se basear na nossa produção de arroz para passar a contar com a importação deste cereal, o que custou o ano passado 85 milhões de dólares. (Negritos nossos)

"Igualmente mobilizadora é a comercialização de vinho de caju extraído da polpa e que, uma vez introduzido em bidões de plástico de 20 litros, é comercializado, transportado e… arrastado em camiões por todo o país."




Guiné-Bissau > Bissau > Bissau Velho > Maio de 2025 > Um trecho do porto de mar em Bissau quando em maré baixa. Ao fundo, um navio graneleiro chinês a fazer descarga de arroz... No passeio da avenida marginal do nosso tempo (hoje, e desde 1975, avenida dos Combatentes da Liberdade da Pátria), bons carros, sinal de prosperidade (que é para alguns, não para todos)...

Fotos (e legenda): © João de Melo  (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]


I. A Guiné-Bissau é um país independente. É membro da CPLP. Temos uma relação de amizade com este país lusófono e o seu povo. Não devemos imiscuir-nos nos seus assuntos internos. Mas os seus problemas e desafios não nos são (nem devem ser)  estranhos ou indiferentes.  Daí esta série, "A Guiné-Bissau, hoje: factos e números" (**).

(...) O caju é uma fruta tropical originária do Nordeste do Brasil. Ele foi introduzido na África, incluindo a Guiné-Bissau, pelos portugueses no final do século XVIII.

Na Guiné-Bissau, o caju tem sido historicamente plantado ao longo das estradas e hoje forma vastas florestas de cajueiros, tornando-se o principal produto de exportação do país e um pilar fundamental da sua economia. (...) (Gemini IA / Google)


Pergunta 1  - Valores da exportação de caju e da importação de arroz, na Guiné-Bissau?

Resposta do assistente de IA / Gemini, Google:

A economia da Guiné-Bissau é fortemente dependente da exportação de caju e da importação de arroz

Exportação de Caju:

  • Principal produto: A castanha de caju é o pilar da economia guineense, representando mais de 90% do total das exportações nacionais.
  • Volume de exportação:
    • Em 2022, o volume de exportação foi de 200.000 toneladas.
    • A Guiné-Bissau está pronta para exportar 130 mil das 200 mil toneladas de castanha de caju que espera vender em 2025.
  • Preço:
    • O preço base de venda da castanha de caju para a campanha de 2025 foi fixado em 410 francos CFA (0,63 euros) por quilograma. Em 2024, o preço base foi de 350 francos CFA, mas chegou a 700 francos CFA devido à procura.
    • Em 2022, o preço de venda efetivo foi de 363 FCFA/kg, o equivalente a 626 USD/tonelada.
  • Destino: Mais de 95% da castanha de caju exportada pela Guiné-Bissau tem como destino a Índia.

Importação de Arroz:

  • Consumo: O arroz é o principal alimento básico da população guineense, representando cerca de 80% do consumo de cereais no país.
  • Volume de importação:
    • A Guiné-Bissau importa anualmente mais de 200 mil toneladas de arroz.
    • A produção nacional de arroz está longe de satisfazer as necessidades do consumo, que é de cerca de 200.886 toneladas por ano, com uma produção que não passa das 112 mil toneladas.
  • Valor:
    • Em abril de 2024, o governo decidiu aumentar os preços do arroz devido à incapacidade de continuar a subvencionar as empresas importadoras.
    • Um saco de 50kg de arroz tipo "nhelém" 100% partido passou a custar 21.500 francos CFA (cerca de 32 euros).
    • O arroz da qualidade 5% partido (grosso) passou a custar 24.000 francos CFA.
    • Entre novembro de 2023 e abril de 2024, o governo gastou mais de quatro mil milhões de francos CFA (cerca de 6 milhões de euros) para financiar a subvenção do arroz no país.

É importante notar que há também um problema de contrabando de caju para países vizinhos, como Senegal, Gâmbia e Guiné-Conacri, o que afeta as receitas do Estado. O governo tem reforçado a vigilância nas fronteiras para combater essa prática.


Pergunta 2 - Análise SWOT da relação Caju (Exportação) / Arroz (Importação) na Guiné-Bissau.

Resposta do assistente de IA / Gemini, Google:

Análise SWOT da Relação Caju (Exportação) / Arroz (Importação) na Guiné-Bissau

A relação entre a exportação de caju e a importação de arroz na Guiné-Bissau é um ponto central da sua economia, com implicações significativas para a segurança alimentar, balança comercial e desenvolvimento sustentável. Abaixo, é apresentada uma análise SWOT detalhada dessa dinâmica:

Forças (Strengths)

  • Potencial de Exportação de Caju: O caju é o principal produto de exportação da Guiné-Bissau, gerando divisas estrangeiras cruciais para a economia. A procura global por castanha de caju tem-se mantido robusta.
  • Adaptação do Caju ao Clima: O caju é uma cultura bem adaptada às condições climáticas da Guiné-Bissau, exigindo relativamente poucos fatores de produção  e sendo resiliente a períodos de seca.
  • Geração de Emprego na Cadeia do Caju: A colheita e o processamento inicial do caju (ainda que limitados) geram empregos, especialmente em áreas rurais, contribuindo para a subsistência de muitas famílias.
  • Disponibilidade de Terras para Arroz: A Guiné-Bissau possui extensas áreas de várzeas e bolanhas com potencial para o cultivo de arroz, uma cultura alimentar fundamental.
  • Importância do Arroz na Dieta Local: O arroz é a base da dieta da população guineense, o que garante uma demanda interna constante e justificada para o seu consumo.

Fraquezas (Weaknesses)

  • Dependência Excessiva do Caju: A economia da Guiné-Bissau é excessivamente dependente da exportação de caju, tornando-a vulnerável a flutuações nos preços internacionais e a choques externos.
  • Baixo Valor Agregado do Caju: A maior parte do caju exportado é em bruto, o que significa que o país perde a oportunidade de agregar valor através do processamento industrial (descasque, torra, embalagem), limitando os ganhos económicos e a criação de empregos qualificados.
  • Vulnerabilidade à Flutuação de Preços: Os preços do caju no mercado internacional podem ser voláteis, impactando diretamente as receitas de exportação e a rendimento dos produtores.
  • Elevada Dependência da Importação de Arroz: A Guiné-Bissau importa uma parcela significativa do arroz que consome, tornando-a vulnerável a choques nos preços internacionais do arroz, flutuações cambiais e interrupções na cadeia de suprimentos.
  • Baixa Produtividade do Arroz: A produção interna de arroz é frequentemente baixa devido a técnicas agrícolas tradicionais, falta de acesso a sementes melhoradas, fertilizantes e sistemas de irrigação adequados.
  • Infraestrutura Deficiente: A infraestrutura precária (estradas, portos, eletricidade) dificulta o escoamento do caju e o transporte do arroz importado para o interior do país.
  • Financiamento Limitado: O acesso limitado a financiamento para agricultores, tanto para o caju quanto para o arroz, impede investimentos em melhorias de produtividade e processamento.

Oportunidades (Opportunities)

  • Agregação de Valor ao Caju: Investir no processamento local do caju pode aumentar significativamente as receitas de exportação, gerar empregos qualificados e promover o desenvolvimento industrial.
  • Diversificação de Mercados para o Caju: Buscar novos mercados para o caju pode reduzir a dependência de um pequeno número de compradores e estabilizar as receitas.
  • Aumento da Produtividade do Arroz: Adoção de novas tecnologias agrícolas, sementes melhoradas, técnicas de irrigação e formação para os agricultores pode impulsionar a produção interna de arroz e reduzir a necessidade de importação.
  • Desenvolvimento de Cadeias de Valor Locais: Fortalecer as cadeias de valor do caju e do arroz, desde a produção até o consumidor final, pode criar novas oportunidades de negócio e empregos.
  • Cooperação Regional e Internacional: Parcerias com países vizinhos e organizações internacionais podem facilitar o intercâmbio de conhecimentos, tecnologias e financiamento para o setor agrícola.
  • Investimento em Infraestrutura: Melhorias na infraestrutura de transporte e armazenamento podem otimizar o escoamento do caju e a distribuição do arroz.
  • Promoção de Práticas Agrícolas Sustentáveis: Implementar práticas agrícolas que melhorem a fertilidade do solo e a gestão da água pode aumentar a resiliência da produção de caju e arroz às mudanças climáticas.

Ameaças (Threats)

  • Flutuações nos Preços Internacionais: A volatilidade dos preços do caju e do arroz no mercado mundial pode impactar negativamente a balança comercial e a segurança alimentar.
  • Mudanças Climáticas: Secas, inundações e outras condições climáticas extremas podem afetar a produção de caju e arroz, colocando em risco a segurança alimentar e as receitas de exportação.
  • Concorrência Internacional: A Guiné-Bissau enfrenta concorrência de outros países produtores de caju e arroz, o que pode pressionar os preços e a participação de mercado.
  • Barreiras Comerciais: Novas tarifas ou regulamentações comerciais impostas por países importadores podem afetar negativamente as exportações de caju.
  • Instabilidade Política e Social: A instabilidade pode perturbar as cadeias de produção e distribuição, afetando tanto a exportação de caju quanto a importação e distribuição de arroz.
  • Doenças e Pragas: O surgimento de doenças ou pragas que afetam as culturas de caju ou arroz pode causar perdas significativas na produção.
  • Dependência de Agentes Externos: A forte dependência de intermediários na cadeia de valor do caju pode resultar em menores retornos para os produtores locais.

Conclusão

A Guiné-Bissau enfrenta um desafio complexo na gestão da sua relação caju/arroz. Embora o caju seja uma força económica, a sua dependência excessiva e a falta de valor acrescentado representam vulnerabilidades significativas. 

Por outro lado, a importação maciça de arroz sublinha uma fraqueza na segurança alimentar. 

As oportunidades residem na agregação de valor ao caju, na diversificação da produção agrícola e no aumento da produtividade do arroz. No entanto, o país deve estar atento às ameaças externas, como as flutuações de preços e as mudanças climáticas, e internas, como a instabilidade política e a infraestrutura deficiente.

Para um futuro mais sustentável, a Guiné-Bissau precisa de uma estratégia integrada que promova a diversificação económica, o aumento da produtividade agrícola (especialmente do arroz), o processamento local do caju e o investimento em infraestrutura

A resiliência económica do país dependerá da sua capacidade de transformar estas fraquezas e ameaças em oportunidades de crescimento e desenvolvimento.

(Perguntas, Revisáo / fixação de texto: LG / Respostas,  Negritos: Gemini IA)

______________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 12 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6376: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (14): Chegou a hora do caju... e do vinho de caju!

(**) Último poste da série > 17 de junho de 2022 >
Guiné 61/74 - P23360: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (5): A principal fonte de energia (c. 85%) ainda é a proveniente da biomassa (lenha, carvão vegetal...)

Guiné 61/74 - P26889: Parabéns a você (2384): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista - STM/CTIG (Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, 1972/74)

_____________

Nota do editor

Último post da série de 5 de Junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26883: Parabéns a você (2383): João Moreira, ex-Fur Mil Cav da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72)

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26888: (In)citações (272): "A guerra nunca acaba, fica connosco" (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, QueboMampatá e Empada, 1968/70) com data de 2 de Junho de 2025:


"A guerra nunca acaba, fica connosco"
Arturo Pérez-Reverte

Era eu um jovem, feito homem, quando fui convocado para prestar o serviço militar. Passado um ano, fui forçado a partir para a Guiné (hoje, República da Guiné-Bissau) para, como diziam os mandantes da Pátria, defender o solo pátrio do ultramar, por outras palavras; defender a soberania portuguesa, e porque não; os interesses dos senhores do grande capital.

Tinha duas hipóteses: aceitar, a contragosto, e pegar em armas, ou despedir-me da família, dos amigos, da Pátria que me viu nascer, e fugir para o estrangeiro, até ao fim da vida, sob o risco, de no caso de ser preso, partir de imediato para os locais onde a guerra era mais impetuosa.
Empada - José Teixeira escrevendo

Apenas dois anos dados à Pátria, os quais rapidamente recuperávamos, graças à nossa juventude, diziam os mandantes.

Mas não foi bem assim. Andei dois anos perdido, é um facto. Vivi situações de difícil descrição. Vi morrer, sem poder valer. Salvei vidas de militares e civis vítimas da guerra que ninguém queria. Salvei vidas de crianças (bebés) com crises de paludismo, que atingiam 42ºC de temperatura corporal. Consegui fazer daqueles dois anos um tempo de vitórias e algumas derrotas, de algumas alegrias no meio de muito sofrimento. Vivi momentos em que senti a morte a meu lado, nos estilhaços cravados na terra a centímetros da minha cabeça, nas balas que passavam a assobiar e se cravavam na árvore, onde me protegia, da mina anticarro que destruiu a viatura da qual tinha saltado segundos antes…

Passados dois anos regressei à “mãe pátria” e tentei esquecer aquele amargurado tempo que nunca mais passava, mas a guerra ficou cá dentro, e nunca mais acabou.

Regressei com uma sensação de vazio dentro de mim, e encontrei vazios muitos dos espaços, onde antes de partir, centrava a minha vida. Até a família, apesar do intenso calor humano e amor, com que fui recebido, estava diferente. Tinham feito caminhos que eu não palmilhei. Sentia-me estranhamente só. Os amigos e amigas tinham partido para outras aventuras onde não eu estive. Perdi-os. Já não tinha lugar junto deles. Estava com um atraso de dois anos. Tive de conquistar de novo, a pulso, o meu lugar, onde me foi possível.

Do emprego recebi um não. Não havia lugar para mim. Tive de aceitar a parca indemnização que me ofereceram e partir para outra aventura. Na valorização académica, foi um começar de novo, com muito esforço. A mente parece que tinha adormecido e recusava-se a retomar o caminho da aprendizagem que precisava de fazer para construir o futuro.

Tantas outras barreiras que tive de ultrapassar para me encontrar!

Será que me consegui encontrar? Não!

Fui caminhando ao meu encontro. Reconstruir a vida era o desafio mais cativante e absorvente. Encontrar caminhos novos, caminhos diferentes, seguir novas pistas e sorrir para a esperança. Uma vida longa, com muitos momentos gratificantes, faz-me sentir um homem realizado, diferente do jovem que partiu para a Guiné.

Dentro de mim, tentava apagar os resíduos da guerra, mas quando pensava que tinha enterrado uns, apareciam outros. E, assim tem sido pela vida fora.

Recordo que quinze dias depois de regressar apareci debaixo da cama, sem saber como fui lá parar. Apenas uma porta tinha batido com um pouco de violência, provocada pelo vento.

Nos primeiros tempos tentava recusar-me a pensar na Guiné. Nem sequer falar ou ouvir falar de guerra. Qualquer cena de guerra na TV me angustiava. Os meus filhos dizem (muito mais tarde) que me viam chorar frente à TV a preto e branco, quando passava filmes de guerra, ou reportagens sobre conflitos armados, que infelizmente continuaram a surgir em várias partes do mundo).

Com a Revolução de Abril, surgiu como que um abafado silêncio, talvez medo, perante as correntes que denunciavam a guerra colonial e os seus efeitos, enquanto defendiam, e muito bem, a autodeterminação e independência para as colónias. Nós, os veteranos que tínhamos sido forçados a viver essa guerra, sentíamos uns olhares acusativos, como fossemos nós os culpados.

Depois, surgiu uma necessidade tremenda de falar, de contar o que me tinha acontecido, mas logo notei que não era compreendido. As pessoas não conseguiam entender. Ouviam. Ouviam… como para mim bastasse que ouvissem. Nem eu sabia o que queria com aqueles desabafos.

Passados cerca de vinte anos senti a carência das amizades que nasceram e frutificaram naqueles dois anos, os camaradas de aventura, os companheiros da minha Companhia Militar, e toca a tentar encontrá-los. Cerca de cinquenta atenderam a chamada. Três não responderam. Tinham tombado para sempre na Guiné. Outros já tinham partido no caminho que não tem retorno. Muitos, tinham emigrado. Houve, também, quem tentasse pôr uma pedra definitiva sobre os tempos de guerra, mas o encontro fez-se, e vieram as mulheres e os filhos. Depois, os netos e bisnetos. Vieram as dores, as enxaquecas, as artroses, indícios da velhice que não perdoa. Vieram as dores ao ver alguns partirem para a eternidade. Mas, continuamos a reservar um dia por ano para nos encontrarmos, falarmos de nós, da guerra que vivemos, das barreiras que tivemos de ultrapassar, dos caminhos novos que tivemos de construir, dos tempos que correm e que não entendemos. Da crueza das guerras que rebentam por todo a terra e que nós sentimos como ninguém, porque também vivemos uma guerra. Sabemos que quem as faz, não as quer fazer. Quem as manda fazer, não padece no corpo, os seus efeitos. Quem sofre os seus efeitos é o povo, as gentes humildes que querem viver em paz.

Para tentar acabar com a “guerra” que vagueia dentro de mim, parti para a Guiné, em romagem aos locais onde senti de perto os seus efeitos, onde a vivi. Procurei os lugares onde mais sofri. Os locais onde vi camaradas partirem para a eternidade sem lhes poder valer, locais onde acolhi e tratei feridos. Chorei as dores, que não tivera tempo de chorar no momento dos acontecimentos.

Procurei os amigos que por serem guineenses por lá ficaram na guerra. Tinham vindo comigo, no coração. Receberam-me em abraços. Muitos já tinham partido, alguns dos quais barbaramente assassinados, pelos conquistadores da “liberdade” da Pátria Guineense, por terem sido cobardemente abandonados por Portugal, que os considerava filhos e os motivara para a guerra na sua terra contra os seus irmãos de sangue, para os abandonar e lhes tirar a cidadania, entregando-os nas mãos dos combatentes contra quem tinham lutado, por Portugal. Trouxeram-me a família, mulheres, filhos, netos. Passei a ser “ermon di coração”. Seus filhos viram em mim o pai, seus netos, o avô.

Encontrei, em sã convivência, antigos guerrilheiros que me saudaram sem qualquer remorso, que tentavam localizar encontros de guerra, batalhas de frente a frente, sem nos vermos. Recordamos o ruido das armas, os mortos e feridos de ambas as partes. Ainda foram alguns, esses desencontros de outrora que tanto nos fizeram sofrer, a mim e a eles. Estranhamente sentimos necessidade de contarmos pormenores, localizarmos posições, historiarmos aqueles momentos, tal como fazemos quando encontramos algum camarada que partilhou connosco a terrível aventura da guerra. A necessidade de darmos o abraço da paz, apossou-se de nós em cada encontro. A frase “discurpa ermon, mas guerra é guerra” bailou nos nossos lábios, por ordem expressa do coração. Nos nossos olhos brilhava a luz da paz, do reencontro de “ermons” desavindos, e a amizade ganhou vida.
Ingoré, 2015, José Teixeira rodeado de crianças

Visitei as tabancas que me tinham acolhido, de quem retenho boas memórias. As “bajudas” raparigas de então, hoje, esposas, mães e avós. Fui reconhecido, chamado pelo nome. Sucederam-se os abraços, os ajuntamentos familiares, a festa cheia de sorrisos tão quentes como os de outrora. Recordamos tempos em que no ar pairava o medo da morte, a dúvida, a insegurança, ao lado da esperança do fim de uma guerra injusta. Hoje, respira-se paz e harmonia entre as gentes da Guiné, tão divididas naquele tempo. Há o bem-estar possível, num país continuamente adiado, mas onde a alegria caraterística dos povos africanos expressa nos ritmos e batuques, ocupou de novo o seu lugar.

A Tabanca de Matosinhos surgiu da necessidade de nos encontramos, os que passaram pela Guiné, de falarmos de nós, das nossas “guerras” numa linguagem que só nós entendemos. De convivermos numa “caserna” real, onde todas as semanas há sempre novidades da guerra. Já se passaram vinte anos, mas continua bem viva.
Uma quarta-feira na Tabanca de Matosinhos

O blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné foi outro espaço de reencontro comigo, com camaradas que viveram dramas idênticos, e como eu continuam a sentir a guerra dentro de si e a pôr em comum dramas e aventuras, momentos bons e momentos menos bons da sua guerra.

Voltei à Guiné, mais tarde, outra e outra vez, à procura da paz interior, mas a guerra nunca acabou. Continua cá dentro.

José Teixeira
_____________

Nota do editor

Último post da série de 21 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26828: (In)citações (271): Eu vivo na Lisboa que amo (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

Guiné 61/74 - P26887: Álbum fotográfico de João Moreira (ex-Fur Mil Cav da CCAV 2721 - Olossato e Nhacra, 1970/72) (31)

Foto 244 > Janeiro de 1972 > Nhacra > Fonte do Vale > João Moreira
Foto 245 > Janeiro de 1972 > Nhacra > João Moreira
Foto 246 > Janeiro de 1972 > Nhacra > João Moreira
Foto 247 > Janeiro de 1972 > Nhacra > Quartel > João Moreira
Foto 248 > Janeiro de 1972 > Nhacra > João Moreira
Foto 249 > Janeiro de 1972 > Nhacra > Desvio para a estrada para CUMERÉ > João Moreira
Foto 250 > Janeiro de 1972 > Nhacra > Antiaérea na Emissora Oficial da Guiné que ficava ao lado do nosso quartel > João Moreira
Foto 251 > Janeiro de 1972 > Nhacra > Antiaérea na Emissora Oficial da Guiné que ficava ao lado do nosso quartel > João Moreira
_____________

Nota do editor

Último post da série de 29 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26861: Álbum fotográfico de João Moreira (ex-Fur Mil Cav da CCAV 2721 - Olossato e Nhacra, 1970/72) (30)

Guiné 61/74 - P26886: Facebook...ando (82): João de Melo, ex-1º cabo op cripto, CCAV 8351 (1972/74): um "Tigre de Cumbijã", de corpo e alma - Parte II: Bissau Velho, a ponte-cais




Foto nº 1A e 1 > Guiné-Bissau > Bissau > Bissau Velho > Maio de 2025 > Um trecho do porto de mar em Bissau quando em maré baixa. Ao fundo, um navio chinês a fazer descarga de arroz...




Foto nº 2B, 2A e 2  > Guiné-Bissau > Bissau > Bissau Velho > Maio de 2025 >  A velha ponte-cais do nosso tempo...


Fotos do álbum de João Melo (ou João Reis de Melo), 
ex-1º cabo op cripto, CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74) (*)


Fotos (e legenda): © João de Melo  (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]


__________________

Guiné 61/74 - P26885: Questões politicamente (in)corretas (61): Aprendi a jogar xadrez com o meu comandante, Fernando Pires (1942-2024) (Luís Dias, ex-alf mil, CCAÇ 3491, Dulombi e Galomaro, 1972/74)

Foto à esquerda: O comandante-chefe, gen António Spínola, na inauguração das renovadas instalações do quartel do Dulombi, em abril de 1972. Em segundo  plano,  o cap mil art Fernando Pires (1942-2024), comandante da CCAÇ 3491 (Dulombi e Galomaro, 1972/74).

Foto (e legenda) © Luís Dias (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

1. Mensagem de Luís Dias (ex-alf mil at inf, CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, Guiné, 24 de dezembro de 1971 a 28 de março de 1974).


Data - terça, 3/06/2025 23:06
Assunto - Xadrez (*)


Luís Dias
Não sou um grande jogador de xadrez e iniciei o meu conhecimento sobre este tão importante jogo, durante a minha estadia na Guiné, em especial no tempo que passei no Dulombi, entre fevereiro de 1972 e março de 1973. 

O meu professor foi o capitão da minha companhia (CCAÇ 3491), Fernando Pires (cap mil art, infelizmente já falecido) e foi com ele que pratiquei por largos meses. 

Ainda cheguei a jogar também com ele nos tempos que passei em Galomaro (sede da CCS do BCAÇ3872, ao qual pertencemos e para onde foi deslocada a maior parte da companhia, quando saímos do Dulombi, onde ficaram 13 elementos, comandados por 2 furriéis e ainda 2 pelotões de milícias), para reforçar a sede do Batalhão, após terem sofrido um forte ataque no dia 1 de dezembro de 1972, tendo ainda 1 Grupo de Combate de reforço ao Batalhão de Piche.

Estive durante a comissão em outros locais como: Bolama e S. João (no estágio das Unidades Africanas), Piche, Bambadinca (como comandante do CIM - Centro de Instrução Militar), Nova Lamego e Pirada, e em todos eles não vi, nem tive adversários para continuar a jogar, umas vezes talvez por falta de tempo, outras por não ter-me apercebido de que houvesse pessoal a jogar xadrez.

Ainda podia ter-me internacionalizado a jogar com um estrangeiro (o célebre Libanês, proprietário de um bom restaurante em Bafatá, que chegou a desafiar-me para um joguinho) mas não havia tempo para tal, pois era comer o belo bife à bota e regressar o mais depressa possível ao Dulombi, ou a Galomaro.

No regresso a Lisboa, ainda fiz alguns jogos com amigos, mas o prazer do jogo foi-se desvanecendo com a atividade laboral em que estava integrado e não jogo há já muitos e bons anos.

Um forte abraço, 
Luís Dias.

_____________________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 3 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26876: Questões politicamente (in)corretas (60): Afinal o "tuga" também jogava xadrez no CTIG (José Belo /António Graça de Abreu / Carlos Vinhal / José Botelho Colaço / Ernestino Caniço / Eduardo Estrela)

Guiné 61/74 - P26884: S(C)em Comentários (70): O quarto dos furriéis em Tite... e as maroteiras que pregávamos ao Miranda (Aníbal Silva, ex-fur mil SAM, CCAV 2483, Nova Sintra e Tite, 1969/70)


Guiné > Região de Quínara > Tite > CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70 > O quarto dos furriéis...


Foto (e legenda): © Aníbal José da Silva  (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Excertos do poste P26878 (*)



(i) Aníbal José da Silva (Vila Nova de Gaia) (ex-fur mil SAM, CCAV 2482, Nova Sintra e Tite, 1968/69):


O inferno de Nova Sintra ficara para trás e rumámos a Tite para cumprir os últimos três meses de comissão, num quartel com instalações condignas. 

Para além da óbvia dormida, sempre que a atividade operacional permitia, passávamos algum tempo no quarto, umas vezes jogando às cartas, escrevendo à família e sobretudo ouvir música.

Aproximava-se o regresso à Metrópole e alguns já tinham comprado aparelhagens de som. Lembro a do Brito e o famoso Akai do Jardim, que tocavam à vez.

Para além disso também se faziam algumas maroteiras, sendo as principais vítimas o Teixeira e sobretudo o Oliveira Miranda:

  • um dia, ou melhor uma noite, o Miranda, ao regressar dum patrulhamento noturno, ao abrir a porta do quarto, estrategicamente entreaberta, levou em cima da cabeça com uma bacia cheia de água;
  • outra vez colocámos velas acesas nas extremidades da cama dele e sentámo-nos à volta, simulando um velório;
  •  noutra vez o Miranda entrou e verificou que estava tudo calmo; a luz estava apagada e aparentemente toda a gente a dormir: "hum, disse ele, deve estar algum santo para cair do altar e que o que é que estes camelos estão preparados para fazer"... 
  • aparentemente nada, mas sim havia algo....O Miranda foi tomar banho, regressou ao quarto e preparava-se para deitar e disse: "hoje parece que estou safo". Deitou-se e passados dez minutos, sobre a sua cama começaram a cair pingos continuados de água...
  • como uma mola,  levantou-se e foi verificar o que estava a acontecer: alguém que não estava deitado ficou fora do quarto a aguardar que ele tomasse banho e se deitasse; previamente fora instalada uma mangueira que saía duma torneira do chuveiro contíguo ao quarto, que passava sobre o teto falso e pendia sobre a cama; com ele no ninho foi só abrir a torneira;
  • verificada a marosca, regressou ao quarto, fulo,  e a vociferar palavrões dirigidos aos “dorminhocos”. (...) (**)
(ii) Comentário do editor LG:

Aníbal, as "partidas" que pregávamos uns aos outros, mereciam uma série...Incluindo as "praxes"... Quero ver se retomo este tema...
 
Será que estas "partidas" (em geral, inofensivas, como as vossas, em fim de comissão, próprias para "desopilar"...) poderiam ser consideradas uma continuação do "bullying" (como se diz hoje...) que praticávamos na escola ?... As vítimas, na escola, na tropa, no trabalho, são sempre as mesmas: os mais "fracos", os mais "vulneráveis", os "marginais", os "diferentes"...

Falo de "partidas inofensivas", não de praxes violentas e inaceitáveis...

(Seleção, revisão/fixação de texto, negritos, título: LG)
____________________

Notas de leitura:

(*) Vd. poste de 3 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26878: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (14): Tite, Quarto dos Furriéis e Últimos dias em Bissau


(**) Último poste da série > 28 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26856: S(C)em Comentários (69): A maldição de...Bissássema, no setor de Tite, região de Quínara (Cherno Baldé, Bissau)

Guiné 61/74 - P26883: Parabéns a você (2383): João Moreira, ex-Fur Mil Cav da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72)

_____________

Nota do editor

Último post da série de 31 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26866: Parabéns a você (2382): Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70)

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26882: Efemérides (457): Comemoração do Dia de Portugal e Cerimónia de inauguração do Memorial em Homenagem aos Combatentes de Leça da Palmeira mortos na Guerra do Ultramar, a levar a efeito no próximo dia 28 de Junho de 2025

Leça da Palmeira > Parque Eng Fernando Pinto de Oliveira


COMEMORAÇÃO DO DIA DE PORTUGAL E CERIMÓNIA DE INAUGURAÇÃO DO MEMORIAL EM HOMENAGEM AOS COMBATENTES DE LEÇA DA PALMEIRA MORTOS NA GUERRA DO ULTRAMAR

DIA 28 DE JUNHO DE 2025

PROGRAMA

O Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes vai promover, em colaboração com a Junta de Freguesia de Leça da Palmeira, a cerimónia em epígrafe que terá lugar no próximo dia 28 de junho (sábado) e que conta com as presenças do Presidente do Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes, Tenente Coronel Armando Costa, do Presidente da Junta da União de Freguesias de Matosinhos, Sr. Paulo de Carvalho e da Presidente da Câmara, Dra. Luísa Salgueiro.

A cerimónia decorrerá conforme o seguinte programa:

10H30 – Concentração na entrada do parque público Fernando Pinto de Oliveira, em frente ao edifício da Junta de Freguesia de Leça da Palmeira.

10H35 - Início da cerimónia militar:

- Hino Nacional;

- Inauguração e bênção do Memorial;

- Toque de Sentido;

- Chamada dos nomes dos combatentes da freguesia mortos na Guerra do Ultramar;

- Deposição de coroa de flores;

- Toque de Silêncio;

- Toque de Homenagem aos Mortos;

- Minuto de silêncio;

- Evocação religiosa;

- Toque de Alvorada;

- Toque a Descansar;

- Intervenções alusivas ao ato: do Presidente do Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes, do Presidente da Junta de Leça da Palmeira e da Presidente da Câmara;

- Hino da Liga dos Combatentes;

- Fim da cerimónia.

O PRESIDENTE
Armando José Ribeiro da Costa
Tenente Coronel

OBS: A comemoração do dia 10 de junho de 2025 foi adiada para 28 de junho devido ao programa das festividades do dia do Senhor de Matosinhos que tem este ano o feriado municipal em 10 de junho.
_____________

Nota do editor

Último post da série de 2 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26874: Efemérides (456): Comemoração do 99.º aniversário do Núcleo de Torres Vedras da Liga dos Combatentes e homenagem aos antigos combatentes do Concelho (João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil)

Guiné 61/74 - P26881: Historiografia da presença portuguesa em África (484): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, de 1922 para 1923, é a era do governador Vellez Caroço (38) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Há indícios de progresso nestes tempos de grande penúria, impacto das carestias deixadas pela Primeira Guerra Mundial e a constante instabilidade política que se refletiu em governações incolores até à chegada de Vellez Caroço. A década de 1920 marca a chegada do primeiro voo de Lisboa a Bolama, de que se mostra aqui uma fotografia aérea; e surgiu a Empresa de Viação da Guiné que anuncia em sucessivos Boletins Oficiais o seguinte:
"Com o fim de estabelecer carreiras automóveis para transporte de passageiros entre Bissau e as principais povoações desta colónia acaba de se constituir esta empresa com sede nesta cidade (Bissau). As carreiras serão abertas ao público com dois automóveis, de 1 de outubro próximo em diante. Para serviço de transporte de carga temos em Bissau dois camiões à disposição dos nossos excelentíssimos clientes. Possuímos garagens em Bissau e Nhacra, e para manter com regularidade estas carreiras teremos permanentemente um automóvel Overland nesta última localidade. Passagem e fretes a preços módicos e sem competência, o gerente técnico, Adriano Pinto da Costa."
Velez Caroço terá forte contestação pela questão dos câmbios e sobretudo dos cambiais, tive a oportunidade de desenvolver esta questão no livro sobre o BNU da Guiné, tudo tinha a ver com o estado financeiro do país.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, de 1922 para 1923, é a era do governador Vellez Caroço (38)


Mário Beja Santos

Nem tudo o que domina a atualidade política e governamental está sob a égide da firmeza do governador Vellez Caroço. Há outros acontecimentos que talvez mereçam a nossa atenção. O Boletim Oficial n.º 51, de 23 de dezembro de 1922, são publicados os estatutos da Associação Desportiva de Bissau, ela tem como finalidade praticar todos os jogos desportivos e recreativos adaptáveis ao meio, futebol, críquete, ténis, jogos atléticos, etc., mas conseguir a união de toda a mocidade de Bissau promovendo passeios e festas, logo que os seus fundos permitam (confesso que não voltei a ouvir falar nesta associação, nem sei mesmo se não passou de uma boa intenção). Antes, em 18 de março, no Boletim Oficial n.º 11, uma singular notícia emanada da Secretaria dos Negócios Indígenas: “Para conhecimento dos interessados e devidos efeitos, faz-se público que na madrugada 16 do corrente se suicidou, cortando as carótidas o régulo da região de Ganadu, área na 9.ª Circunscrição Civil (Bafatá) de nome Iobá Sirá.”

Estamos agora em 1923, no Boletim Oficial n.º 21, de 26 de maio, vamos de novo ouvir falar de Jaime Augusto da Graça Falcão. Ele interpusera recurso junto do Conselho Colonial, nessa altura Falcão era administrador efetivo em Cacheu, fora punido com 30 dias de suspensão. No seu recurso Falcão alega que não houvera propósito de desrespeito, atenda-se à natureza da decisão deste Conselho:
“O motivo da suspensão foi o de o recorrente não dar cumprimento à ordem que contratara alguns indígenas da sua circunscrição para o serviço do tráfego comercial em Bolama, por entender que a ordem era ilegal, por não poder ser engajador de serviçais para particulares, tanto mais que o recorrido sabia que na circunscrição que administrava lhe eram precisos trabalhadores para a construção do edifício para a administração e para a conservação de estradas e ainda era sabido que as casas comerciais costumavam arranjar diretamente os trabalhadores de que necessitavam.
A Secretaria dos Negócios Indígenas sabia bem que aquela ordem era ilegal, tanto assim que lhe a mandou por telegrama em cifra, confirmando-a também em cifra em nota de serviço, e que se tivesse sido ouvido, como manda a lei, teria exposto quais as razões por que não dera cumprimento à ordem, mas que isso podia não agradar aos dimanantes da ordem.


Visto e examinado o processo e tudo mais que dos autos consta e ouvido o Ministério Público:
Considerando que não existem nos autos os termos da nota que a portaria recorrida reputa desrespeitosos;
Considerando que, embora a nota fosse redigida em frase menos respeitosa, isso não constitui motivo para deixar de ser ouvido o arguido, conforme manda a lei, sendo, portanto, uma formalidade legal e indispensável que tinha de cumprir-se;
Considerando que não é boa prática as autoridades administrativas compelirem-se a desempenharem o papel de engajadores, antes lhe cumprindo apenas de facultar o fornecimento de trabalhadores para a respetiva circunscrição e dentro dela, o que é diferente do que ser seu engajador;
Considerando que ninguém pode ser compelido a fazer senão aquilo a que a lei obriga; e
Não restando dúvida de que a ordem dada ao recorrente de forma indicada determinava que angariasse trabalhadores para particulares em Bolama, o que não é justo, dão provimento ao recurso e anulam a portaria recorrida.”


Mas já é tempo de voltarmos às medidas firmes e de autoridade que Velez Caroço vinha assumindo desde o início do seu mandato. No Boletim Oficial n.º 21, de 26 de maio, temos um despacho sob um processo inquérito a acontecimentos que tinham dado em Canchungo, em 20 de julho de 1922, o governador era levado a concluir:
“1.º Que Baticam Ferreira, ex-régulo, residente na Costa de Baixo, é um elemento de discórdia naquela circunscrição, sendo em volta do seu nome e com a sua própria instigação que se deram os atos de indisciplina em Canchungo
2.º Que os indígenas Emcari, irmão do Baticam; e Nhará, não só desobedeceram às ordens diretas do administrador, capitão António José Pereira Saldanha, quando mandava dispersar um numeroso grupo de Manjacos que em frente à administração protestavam contra a nomeação do chefe do Potabo, mas inclusivamente agrediram os agentes das autoridades, quando estes, no uso legítimos dos poderes que lhe confere esta autoridade, empregavam meios mais enérgicos para os compelir a respeitar as suas determinações, agredindo o Emcari e Nhará o próprio administrador;
3.º Que o indígena Vicente Macúta foi o mandatário do Baticam, sendo ele uma pessoa que andou instigando os indígenas a reunirem-se e a vir protestar a administração;

Em vista do exposto determino:
1.º Que ao ex-régulo Baticam Ferreira seja fixada a residência por cinco anos na circunscrição dos Bijagós, ficando ali debaixo da vigilância da autoridade;
2.º Que os indígenas Emcari, Nhará e Vicente Macúta sejam desterrados para a circunscrição dos Bijagós por dez anos, devendo o respetivo administrador fixar-lhes como residência uma ilha diferente daquela em que ficar residindo o Baticam Ferreira;
3.º Para sossego da região o estabelecimento da boa harmonia entre os indígenas, seja desde esta data destituído o chefe de Potabo, deverá, todavia, ser reconduzido, se em uma nova eleição entre os indígenas, a que o atual administrador deve mandar proceder imediatamente, se o seu nome for novamente indicado;
4.º Que o administrador da Costa de Baixo ouça todos os indígenas ou os grandes das regiões onde houver descontentamento com a escolha dos chefes e, em nota devidamente informada, para este Governo, proponha a realização de eleições segundo o costume indígena.”


Para concluir, vejamos agora o teor de uma nota também bastante curiosa publicada no Boletim Oficial n.º 39, de 29 de setembro, trata-se de um aviso da Direção dos Serviços de Marinha, fora encontrado nas praias de Puana e Pidjiquiti um apreciável número de bocados de madeira e sibes inteiros ainda com utilidade, mas abandonados, causando estorvo ao encalho de embarcações, quando podres estes bocados de madeira poderão prejudicar a saúde pública, é conveniente avisar os respetivos donos para procederem à sua remoção. Aviso complementar é o de estado de abandono, nas praias de Bolama e Bissau, de várias embarcações, quase todas inutilizadas, prejudicando serviços de utilidade pública como também funcionando como depósito de dejetos, os seus proprietários eram convidados à reconstrução ou à demolição das mesmas embarcações.
Tenente-coronel Vellez Caroço
Teixeira Gomes é Presidente da República
Vista aérea de Bolama tirada do avião antes de aterrar, em 1928
Um pormenor da estrada de Bissau para Bor, anos de 1930

(continua)
_____________

Nota do editor

Último post da série de 28 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26859: Historiografia da presença portuguesa em África (483): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1921, começou a era de Vellez Caroço (37) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26880: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte VII: Os "turras" têm agora um míssil que abate aviões e helicópteros




"Diário Notícias  de 31/3/1973  


A notícia da queda do Fiat G-91, nº 5419, pilotado pelo ten cor pilav Almeida Brito, comandante do Grupo Operacional 1201, da BA 12, em Bissalanca, abatido por um míssil Strela, foi dada, surpreendentemente, pelo "Diário de Notícias", em caixa alta. (Não consta, por exemplo, do "Diário de Lisboa".)

Imagem: Cortesia do blogue do Victor Barata > Especialistas da BA12, Guiné 65/74 > Terça-feira, 31 de Julho de 2007 > Ten Cor Pilav Almeida Brito: Única vitíma mortal do Strela, por Arnaldo Sousa

O Comandante Almeida Brito tinha nascido em 1933 e concluído em 1953 o curso de aeronáutica militar na Escola do Exército (antecessora da Academia Militar). O seu desaparecimento (o corpo nunca chegriara a ser encontrado) causou profunda consternação na BA12 e em Bissau, onde era um militar muito conceituado e muito querido entre os seus subordinadas e amigos.


Guiné Bissau > c. 1973 > Cortejo fúnebre para embarque de urnas


Guiné > Bissau > c. 1973 > instalações da UDIB onde havia um cinema cujo salão era utilizado para o Congresso do Povo. (O início da construção da nova sede da UDIB - União Desportiva e Internacional de Bissau data de fevereiro de 1969; a primeira pedra foi lançada pelo então brigadeiro António Spínola.)



1. Continuação da publicação da série do nosso camarada Carlos Filipe Gonçalves (*)

Recordações da Guiné de um Furriel Miliciano. 

No extracto de hoje, o primeiro de grandes acontecimentos que a partir de agora iriam marcar o fim da guerra na Guiné… Hoje, sabemos, que foi assim… mas, no final de março de 1973, vivíamos normalmente o dia a dia no QG em Santa Luzia, eu, completava o meu primeiro mês de Comissão, ainda era um «periquito», ou seja, na gíria militar eu era um «novato» que ainda estava a adaptar-se ao ambiente de guerra e ao clima, como descrevi no post anterior. 

Passados 51 anos, para além da descrição «naïf» de como um jovem de 23 anos viveu os acontecimentos, descrevo o ambiente de guerra que se vivia. Apresento também uma visão do outro lado (afinal sou jornalista), procuro, pois, dar aos nossos filhos e netos uma visão clara dos acontecimentos. 






Carlos Filipe Gonçalves (Kalu Nhô Roque, como consta na sua página no facebook):

 (i) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde; 

(ii) foi fur mil amanuense, QG/CTIG, Bissau, 1973/74; 

(iii) ficou em Bissau até 1975; 

(iv) radialista, jornalista, historiógrafo da música da sua terra, escritor, vive na Praia; 

(v) membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, nº 790;

 (vi) tem 25 referências no nosso blogue.(*)



Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) 

 Parte VII: Os "turras" têm agora um míssil que abate aviões e helicópteros



Pouco depois da minha chegada a Bissau, a grande notícia foi o derrube de aviões Fiat ! A notícia não foi dada na rádio, mas circulava entre os militares. Dizia-se que um avião não voltou de uma missão, foi outro à procura para ver o que aconteceu, também foi abatido. 

Os "turras", diziam os meu camaradas militares, têm agora um míssil que abate aviões e helicópteros. Na conversa sobre este este assunto na repartição o alferes explicou: o novo míssil procura uma fonte de calor e corre atrás! 

Foi assim que fiquei a saber que os helicópteros tinham uma turbina, para os impelir para a frente e que a grande hélice horizontal apenas servia para os manter no ar. 

Os helicópteros voam agora baixinho a rasar a copa das árvores e não podem deslocar-se a todos sítios! Anos mais tarde depois da guerra, vim a saber que se tratava de mísseis antiaéreos Strela, de fabrico soviético. 

Manuel Amante explicou que, depois da entrada desta nova arma do PAIGC, “passou-se a utilizar muito mais o transporte terrestre e marítimo, eu sei disso, porque o meu pai tinha barcos nessa altura, que faziam o transporte de coisas… principalmente para Xime e Bambadinca. (…) A navegação no rio fazia-se, com alguma precaução principalmente de noite porque havia sempre ataques em Mato Cão. Aliás um dos navios de transporte do meu pai, foi atacado nessa altura a uns 20 minutos antes de chegar a Xime.” 

Manecas Santos, comandante do PAIGC, em entrevista à rádio DW,  comentou anos mais tarde esta situação: 

“Em 1973, eu era o chefe de um grupo que foi treinado na União Soviética para manusear armas antiaéreas eficientes: foguetes. (…) A partir do momento que nós começámos a usar estas armas antiaéreas, o exército colonial português ficou completamente na defensiva.(…).”  (##)

Depois da minha chegada a Bissau, aprendi com os veteranos a distinguir o som dos bombardeamentos/flagelações lá longe e se ouvia perfeitamente em Bissau. Aconteceu numa noite, estava eu no Café Império ao lado da Praça de mesmo nome (atualmente Praça dos Heróis Nacionais); depois de se ouvir bombardeamentos ao longe, disse-me um amigo, militar mais experiente: 

“Quando se ouve «Buuum" depois de uma breve pausa, «Buuum» um pouco mais longe, são obuses da tropa, ou canhão dos «turras». Quando se ouve simplesmente «Buuum» e não há retorno, são mísseis dos «turras».” 

Os veteranos colocavam a palma da mão no ouvido para orientar e diziam: 

“Daquele lado é Bula… ou, Binar? Deste lado, é muito perto só pode ser Tite… Cumeré?”

Quando os helicópteros passavam insistentemente, já se sabia, houve feridos em combate, estão a decorrer evacuações. 


Guiné > Bissau > 1974 > Café Império, já na antiga Praça do Império, ao cimo da Av da República, do lado direito de quem subia...


Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]



Sentado no Café Império em dias de folga, fui algumas vezes surpreendido pela passagem de cortejos militares fúnebres, a caminho do cais para o embarque de restos mortais para a metrópole. À frente, ia um jipe com soldados de luvas brancas, todos perfilados, atrás os camiões com as urnas, tudo em silêncio, devagar…. Então, levantávamos e ficávamos em sentido, aqueles que estavam fardados faziam continência.

Um dia, a propósito do ataque a uma localidade qualquer, o Demba contou a sua história. Antes, de vir para a ChefInt trabalhava numa enfermaria algures mato, num quartel como ajudante de enfermeiro. Teve azar, quando uma granada atingiu a enfermaria, explodiu um garrafão de álcool, o líquido incandescente atingiu-o! Com queimaduras graves, foi evacuado para Bissau, depois evacuado para o Hospital Militar em Lisboa. Esteve meses em coma! Felizmente – dizia – muitas pessoas lhe deram pedaços de pele que lhe foram sendo enxertados. E apontava para a cara: 

“Estão a ver! Tenho pele de muitos brancos… e também de pretos! Deram pele e me ajudaram! Passei mais de dois anos no hospital em Lisboa. Graças a Alá, sobrevivi!” 

Arregaçou as mangas para vermos os braços todos queimados, abriu a camisa e mostrou o peito, onde se viam manchas brancas entre a pele preta e múltiplas cicatrizes.

Fiquei impressionado, mas não comentei. Percebi, agora,  porque tinha a cara desfeita! Começava a ter contacto com os horrores da guerra.

Naquele mês de Abril de 1973, houve uma reunião da Assembleia Legislativa , foi acontecimento badalado na rádio. Aqui, chama-se Congresso do Povo, reúne deputados locais, chefes tribais e régulos de diferentes etnias.

 As sessões decorriam no salão do cinema da UDIB , um clube desportivo com belíssimas instalações sociais na avenida principal da cidade. Claudino tinha um radiozinho que ele colocava sobre a mesa, ouvíamos baixinho a ERG que fazia as reportagens em direto, ou transmitia discursos, uns em crioulo, outros em línguas das etnias, mas para mim, era tudo igual ao litro… não entendia nada.

Pouco depois, foi a morte de um líder muçulmano em Nova Lamego, Gabú para os locais. Spínola ordenou um funeral com pompa e circunstância. Demba andava entusiasmado e quando os discursos eram em «fula»,  ele comentava nessa língua com o Issa e com o Claudino. No dia do funeral do tal imã, o Demba não compareceu no serviço. Dias depois, quando regressou, contou o que se tinha passado nas exéquias, falou do discurso de Spínola etc. etc. 

________________

Notas do autor:


(#) Um primeiro avião Fiat foi abatido em 25 de Março de 1973 por um míssil. O segundo avião do mesmo tipo foi abatido em 28 de Março de 1973 também por um míssil. Foram abatidos mais aviões deste tipo em 1 de Setembro de 1973, 4 de Outubro de 1973 e 31 de Janeiro de 1974.

Fonte: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné > 21 de junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1867: Força Aérea Portuguesa: Seis Fiat G.91 abatidos pelo PAIGC entre 1968 e 1974 (Arnaldo Sousa)

(##) Manuel Santos, "Manecas", nascido em S. Vicente, Cabo Verde, 1943. Estudante de Engenharia em Lisboa, aderiu ao PAIGC em 1964. Foi ministro em vários Governos na Guiné-Bissau.

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)