segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14029: Notas de leitura (657): "Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, a arma da teoria, unidade e luta”, Seara Nova, 1976 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2014:

Queridos amigos,
A antologia de Mário Pinto de Andrade sobre o pensamento e ação de Amílcar Cabral conheceu várias edições em vários países.
Falecido o pai fundador da Guiné-Bissau, havia a necessidade de coligir em documento de leitura acessível o que ele de mais relevante escreveu. Coube essa tarefa a um seu amigo dileto, Mário Pinto de Andrade, antigo presidente do MPLA.
A escolha antológica de Pinto de Andrade foi feliz, pelo que talvez de mais representativo podia caber em cerca de 240 páginas. Ficou aqui registado o poeta, o estudioso da poesia, o cientista agrónomo, o publicista político, o estratega, o teórico, o ideólogo, a marca de um líder que nunca escondeu o gosto pela escrita e pela tribuna.
Aos poucos, todo este pensamento ficou confinado à memória dos antigos combatentes e hoje é uma vaga ideia da impetuosidade da sua trajetória política em África e no mundo, naqueles anos 1960 e 1970.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral, o intelectual, o ideólogo, o revolucionário

Beja Santos

Pouco tempo depois do assassinato de Amílcar Cabral, o Comité Executivo da Luta do PAIGC delegou em Mário Pinto de Andrade a incumbência de preparar o que de mais representativo ficara da sua obra escrita, como um desenho impressivo da personalidade, a trajetória da sua linha ideológica, o legado central da reflexão teórica e os conceitos operatórios da estratégia revolucionária que formulou. Nasceu assim uma recolha, até hoje não ultrapassada, dos aspetos mais seminais do pensamento de Cabral: "Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, a arma da teoria, unidade e luta”, Seara Nova, 1976.

Trata-se do primeiro volume, Mário Pinto de Andrade começa por traçar a cronologia dos principais acontecimentos da vida do PAIGC, onde Cabral deixou as suas impressões indeléveis. Para dar uma melhor arrumação e eficiência aos critérios antológicos, o autor repartiu o conteúdo em textos da juventude; textos científicos na área agronómica; a escolha das peças do processo do colonialismo português, dada a importância do texto que Cabral publicou com o pseudónimo de Abel Djassi em Londres, em junho de 1960, texto com elevado recorte literário; as primeiras análises (1963 e 1964) em que Cabral estabelece a relação entre o comportamento das diversas camadas sociais e a luta de libertação nacional; os princípios do PAIGC e a prática política, parágrafos escolhidos das exposições, pronunciadas em crioulo, durante o seminário de quadros realizado em Conacri em novembro de 1969; um olhar sobre as lições da revolução africana, os contornos das lutas dos seus povos, as suas contradições e conflitos, porventura o texto maior de Cabral sobre a crise da revolução africana; alguns dos parágrafos determinantes da intervenção proferida em Havana, aquando da conferência constitutiva da Tricontinental; por último, o pensamento de Cabral quanto à cultura nacional e como esta se pode entender como uma manifestação de civilização em que um povo pega nas armas para defender a sua pátria.

Mário Pinto de Andrade deixa uma amostra do Cabral poeta e dos seus apontamentos no tocante à poesia cabo-verdiana. O leitor tem acesso a um extrato dos artigos que publicou no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, em 1956 acerca do recenseamento agrícola em que trabalhou com a sua primeira mulher, Maria Helena Vilhena Rodrigues. O texto “A dominação colonial portuguesa” apresentado em Londres, em 1960, é um documento acabadíssimo sobre a radiografia colonial portuguesa. Ali escreve com meridiana clareza: “Em Angola, Moçambique e Guiné, 99 % da população é analfabeta. Regiões muito mais vastas do que Portugal não possuem escola. As escolas secundárias são quase exclusivamente frequentadas pelos filhos dos colonos. Não há nenhuma universidade nas colónias. Cem africanos frequentaram as universidades portuguesas ou preparam-se para as frequentar – cem estudantes numa população de onze milhões. Toda a educação portuguesa deprecia a cultura a e civilização do africano. Os conquistadores coloniais são descritos como santos e heróis”.

Outro aspeto relevante deste documento é a tentativa de diálogo com as autoridades de Lisboa, faz-se um apelo a que o Governo reconheça os direitos dos povos que domina à autodeterminação e à independência, e o texto termina dizendo: “Os africanos das colónias portuguesas destruirão o colonialismo português. Será talvez o último regime colonial a desaparecer, assim como é o último em desenvolvimento económico e técnico e o último a respeitar os direitos do homem. Mas, de qualquer modo, o colonialismo português tem os dias contados”. Já ciente de que a sua tese de unidade Guiné-Cabo Verde era alvo de profunda contestação, escreve: “Não existem, quer no seio do povo da Guiné, quer no seio do povo das ilhas de Cabo Verde, quer entre os dois povos, contradições que possam impedir ou travar a indispensável unidade para a liquidação do inimigo comum”. Nesse mesmo texto procede a um levantamento das leis portuguesas na dominação colonial, trata-se de um repositório exaustivo.

Em 1964, apresenta em Milão uma análise da estrutura social da Guiné dita portuguesa, pela primeira vez aflora a questão da pequena burguesia e do seu papel na vanguarda revolucionária.

No tocante aos princípios do partido e à prática política, mostra claramente como a sua capacidade comunicativa não era menor que o seu poder da escrita, incisiva, altamente documentada, exaltante, nunca fugindo às questões mais melindrosas. Como se pode ler: “Alguns de vocês, que saíram da nossa terra, viram o respeito que o nosso Partido inspira, a consideração que o nosso Partido é objeto, quanta esperança o nosso Partido tem posto na cabeça de outras gentes no mundo. Os camaradas muitas vezes esquecem isso, no meio do mato esquecem-se completamente da sua responsabilidade como dirigentes. Alguns têm procurado utilizar ao máximo a autoridade que o Partido lhes deu para servirem a sua barriga, os seus vícios, as suas conveniências. Isso tem que acabar. E são vocês mesmo que têm que acabar com isso, em todos os níveis. Oportunistas não são só aqueles que estão no Senegal a tratar de fazer os seus movimentozinhos. No nosso meio também há oportunistas, que sabendo que a nossa direção exige, para dirigir os melhores filhos da nossa terra, podem fingir ser dos melhores, ou então procurar satisfazer os seus responsáveis ao máximo, para os responsáveis os proporem como dirigentes. Os camaradas têm que entender que só é bom dirigente, só é bom responsável, aquele que for capaz de contar cara-a-cara os erros que os outros fazem”. Todo este seminário de quadros, de 1969, revela a amplitude do organizador, o vigor das suas convicções, a poderosa reflexão que fizera sobre as bases partidárias.

A arma da teoria, proferida em Havana, em janeiro de 1966, é seguramente o documento que lançou maior perplexidade na classe revolucionária. Como se de blasfémia se tratasse, foram-no ouvindo pondo em causa pensamentos monolíticos, como este exemplo: “As transformações na estrutura social não são tão profundas nas camadas inferiores, sobretudo no campo, onde ela conserva predominantemente as caraterísticas da fase colonial, mas a criação de uma pseudo-burguesia nativa, que em geral se desenvolve a partir de uma pequena burguesia burocrática e dos intermediários do ciclo das mercadorias, acentua a diferenciação das camadas sociais, abre, novas perspetivas à dinâmica social, nomeadamente com o desenvolvimento progressivo de uma classe operária citadina e a instalação de propriedades agrícolas privadas, que dão lugar, a pouco e pouco, ao aparecimento de um proletariado agrícola. Essas transformações mais ou menos sensíveis da estrutura social, determinadas, aliás, por um aumento significativo do nível das forças produtivas, têm influência direta no processo histórico do conjunto socioeconómico em causa. Enquanto no colonialismo clássico esse processo é paralisado, a dominação neocolonialista cria a ilusão de que o processo histórico volta à sua evolução normal. Essa ilusão é reforçada pela existência de um poder político integrado por elementos nativos. Apenas uma ilusão porque, na realidade, o enfeudamento da classe dirigente nativa à classe dirigente do país dominador, limita ou inibe o pleno desenvolvimento das forças produtivas nacionais”.

É indiscutível que o pensamento e a ação de Cabral mereciam melhor sorte ao nível do estudo dada a importância histórica que tiveram naquele tempo concreto e o impacto produzido noutros quadros revolucionários. É lastimável que a Guiné-Bissau não tenha percebido como o pai fundador está rigorosamente esquecido e o seu ideário sepultado.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14013: Notas de leitura (656): “Tributo de Sangue”, escrito pelo Tenente António da Silva Loureiro, Edição a propósito da I Exposição Colonial Portuguesa, 1934 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

"É lastimável que a Guiné-Bissau não tenha percebido como o pai fundador está rigorosamente esquecido e o seu ideário sepultado"

Ó Beja Santos, achas mesmo que a Guiné Bissau "não tenha percebido"?

Claro que eu penso que é apenas uma maneira suave e diplomática de tu dizeres as coisas.

Claro que os guineenses percebem e muito bem, talvez nós por aqui é que muita gente ainda continue com «asinhas»