sábado, 20 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14056: Conto de Natal (21): Mãe, espero que vossemecê faça o presépio ao pé do forno de lenha (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Dezembro de 2014 com o seu Conto de Natal:

Queridos amigos,
Envio-vos esta lembrança com os melhores votos de mil alegrias natalícias e um 2015 muitíssimo melhor do que este, em sonhos, projetos, pleno de carinhos familiares, um abraço do
Mário


Mãe, espero que vossemecê faça o presépio ao pé do forno de lenha

Beja Santos

Sei que as coisas aconteceram aí pela segunda semana de Dezembro, mas não sei precisar a data. Viera a Bambadinca depois de uma noite a montar segurança em Mato de Cão, os batelões, com uma LDM à frente, entraram no Geba Estreito ao romper da alva, nem refleti duas vezes, pedi boleia para toda a minha malta, e na viagem fui distribuindo tarefas: tu e tu vão tratar do material de transmissões; aquele e aqueloutro pegam nas requisições da comida e lembram ao vagomestre que voltaremos dentro de três dias, dali não sairemos sem uma caixa de bacalhau, traremos o “burrinho” até à margem do Geba; e vêm comigo sicrano e beltrano e vamos até à engenharia por causa dos sacos de cimento e dos prometidos rolos de arame-farpado. Cada um faz o mata-bicho por sua conta, arrancamos para Finete antes do almoço.

Chegámos, pois, cedo, quando a CCS entrava em ebulição, e deu para avistar o comandante a caminho do seu gabinete, saudei-o à distância, tinha mais que fazer. Discutia com o Furriel Dário alguns outros materiais de construção quando avançou em pose Bala, o 19, a intendência do Comandante, fez a continência, mostrou dois dentes em ouro e anunciou: “Nosso comandante precisa de conversar com alfero, logo que esteja despachado vá ao gabinete, é coisa para tratar antes de partir para Missirá, sem falta”. Tudo levava a crer que, dentro do ritmo normal das coisas, se abria a perspetiva para: convocatória para uma operação; advertência para que não houvesse atrasos no pagamento do pré aos caçadores nativos; mais uma sangria de uma seção das milícias para as novas tabancas em autodefesa, cenário de protestos meus e até pedidos para ser retirado daquela guerra de fantasia, a querer melhorar os quartéis, a abastecer imperativamente centena e meia de civis em duas tabancas e com gradual redução de efetivos. Chegara há pouco tempo e já estava farto de tanta omeleta sem ovos, uma guerra de guerrilhas em tom pobrete e sem alegrete.

Mas não, o Comandante recebeu-me não esfusiante mas estranhamente compreensivo, até parecia estar interessado com o andamento das escolas, a melhoria dos abrigos, transmitia-me que o régulo lhe viera agradecer pessoalmente os benefícios que estavam a ser introduzidos no seu território. E após este discurso amenizado, comunicou-me que houvera ali um desacato com um soldado básico, um abrutado que só tinha altura e peso, que comia arrobas de batata, arroz e massa e que, dois dias antes, numa estúpida discussão, enfiara uns sopapos valentes num cabo da manutenção das viaturas que tivera de dar baixa à enfermaria com os maxilares deslocados, ainda não era líquido que o homem não estivesse fraturado. “Faça-me o favor, leve-me aquela besta consigo, não lhe pode dar uma arma para as mãos, dê-lhe trabalhos de trolha, de carpintaria, coisas assim, não o ponha em reforços, é tão brutamontes que não percebe que não pode dormitar no posto, aqui não pode ficar mais tempo, aguente-o, converse com ele, fale-lhe maneirinho, é impossível trazê-lo à razão, o tipo deve ter serradura na cabeça. Daqui a um mês falamos, deixe passar o Natal, pode ser que o anormal se dê melhor lá no fim do mato do que aqui”.

Chamava-se Anastácio, era natural de um lugarejo perto de Pedrógão Grande, suspirava pelos campos de milho, as plantações de batata e o pastoreio das cabras. Frequentara sem nenhum sucesso a escola da freguesia de Vila Facaia, a professora sentiu-se derrotada, o Anastácio não queria nada com a tabuada, a leitura, a redação, nenhum trabalho escolar o impressionava, trabalho só os do campo. O corpo era uma desmesura, quase um metro e noventa, um volume de carnes a fazer pregas, umas manápulas que pareciam enxadas, um vozeirão cavo e quando soprava qualquer sílaba dilatavam-se-lhe as ventas, as sobrancelhas pilosas avançavam pela testa estreita, parecia mato à solta.

O Anastácio acomodou-se, circulava pacífico, adorava ir buscar água à fonte de Cancumba, desmatou furiosamente, criou horta, fez bancos, conversava com os miúdos animadamente. Vieram reclamações do abrigo do Raposo, contrabandista no Marvão, o soldado básico emprestado a Missirá roncava como uma locomotiva, sacudiam-no, era o mesmo que nada. E o cozinheiro andava de boca à banda, com aquela enfardadeira que não se contentava com palha.

Passavam-se os dias, e começou-se a discutir a festa de Natal, a consoada e o almoço do dia 25, primeiro para os homens grandes, depois para as mulheres e crianças, e depois para nós. O Anastácio ouvia tudo sem comentários. E um dia, a seguir ao almoço, acompanhou-me até à morança, e abordou-me:
- Meu alferes, quero que escreva à minha mãe, há coisas que não posso dizer pelas mãos dos outros.
- Olha, agora dava-me jeito, tenho que partir às quatro horas para Finete, antes ainda tenho uns papéis para assinar que seguirão para Bambadinca, entra, senta-te ali, tenho aerogramas que cheguem.

O Anastácio não cabia na cadeira, mandei-o sentar-se na minha cama, o folhelho gemia com aquele peso descomunal. Ele mexia-se a todo o instante, o folhelho parecia agonizar.

- Então diz lá o que deve seguir para a tua mãe.

"Mãe, saúde e felicidades para vocês todos, quero que a minha irmã Ermelinda vá ao Troviscal dizer à avó Zulmira que compre roupa com aqueles duzentos mil réis que foram na carta que mandei em Novembro. E que não me faça mais camisas de lã porque aqui não fazem jeito. Passo a vida a pensar nos meus animais, na égua que o meu pai me deixou, na burra e nas cabrinhas, fico contente em saber que nada lhes aconteceu. O dinheiro que vossemecê recebe é para a vaca, mas também para a promessa que fizemos à Senhora da Confiança se nada me acontecer aqui nesta guerra. Estou agora num sítio onde não me chateiam, mas a comida é um castigo, a carne das cabras não serve para fazer chanfana, o chouriço não tem gosto e há poucos legumes, felizmente que podemos comer bacalhau de vez em quando. Como à gente de cá, farto-me de comer arroz se não passo fome. 
Mãe, tenho um pedido para lhe fazer neste Natal. É o presépio que eu comprei na agência funerária da Sertã, tinha pouco dinheiro e só comprei o Jesus, a Senhora, S. José e aquela placa que lembra a casa dos animais. A vaca não me sai da cabeça, peço ao meu irmão Eduardo para pegar na mota e ir a Pedrógão à loja do Gil para comprar as figuras da vaca e do burro, nunca lhe perdoarei se ele não me fizer a vontade. E já que tem lembranças minhas, faça-me a vontade e tire essas roupas de preto, ainda não estou no cemitério, vista-se como se vestia antigamente, tristezas não pagam dívidas. E tenho mais outro pedido, é fazer-me o presépio e pôr musgo, gostava que ele ficasse ao pé do forno de lenha para eu me lembrar das noites frias e de estar quentinho ali ao pé, já lhe disse noutras cartas que este calor não interessa a ninguém, estou sempre a transpirar, vejo-me obrigado a tomar banho todos os dias e mesmo assim não fico satisfeito porque logo a seguir vêm os mosquitos a picar nas minhas banhas a escorrer. 
Mãe, não sei o que é que hei de dizer mais, é um oficial quem está a escrever a carta dentro de uma cubata, aqui a gente é mais pobre do que nós, felizmente ninguém me diz coisas desagradáveis, posso adormecer a ouvir música que ninguém me diz palavrões. 
Mãe, não se esqueça da promessa da vaca e do burro. Diga aos meus irmãos para me escrever. Vá estando atenta às vacas da feira de Pedrógão, eu quero um bicho gordo para recomeçar a minha vida quando para o ano para aí voltar. Não se esqueça que é ao pé do forno de lenha, ouviu?"

- Desculpa lá, pá, já vamos em três aerogramas, estás-te a repetir com esta história da vaca e do burro e do forno de lenha, ainda tenho coisas para fazer, ficamos por aqui, está bem?
- Obrigado pela sua paciência. Falou ali à mesa que queria ir a Bafatá comprar peças do presépio. Se não houver lugar para mim, não se esqueça de comprar uma vaca e um burro que eu depois faço contas consigo, é um assunto meu.

O Anastácio montou o presépio. Na hora da consoada pôs o Menino Jesus em cima de umas palhinhas e avisou: “Agora vou buscar um fogareiro, é o que há de mais parecido com o fogão de lenha da casa onde eu nasci e para onde estou ansioso por regressar”.

Imagem extraída do blogue Olhar Viana do Castelo, com a devida vénia
____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 de Dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14051: Conto de Natal (20): O "amor" de um bode ou a solidariedade entre animais (Manuel Luís R. Sousa)

6 comentários:

José Marcelino Martins disse...

História magnífica. Fiquei sem palavras.

Hélder Valério disse...

É verdade que, 'mesmo lá longe, onde o sol castiga mais' as nossas referências não nos abandonavam...
Sem elas certamente que teria sido muito mais difícil.
Gostei de ler e de saber.
Hélder S.

Anónimo disse...

Ó Mário!

Só faltou a entrada habitual:
"Espero que estejam todos bem que eu por cá vou indo, graças a Deus."
GOSTEI.
Agora, fazes o favor de te-apreciar-te, na condição de autor e à obra que escreveste.
Abraço
Alberto Branquinho

Antº Rosinha disse...

Este não saiu da feira da ladra nem da torre do tombo.
Parabens e bom Natal a todos.

Luís Graça disse...

Mário, é um ternura de história... A guerra, a nossa guerra, tinha destas histórias, anónimas, de gente anónima, que se irão perder se não formos nós a escrevê-las.

E tu deste mais um pequeno grande contributo para que as futuras gerações se lembrem dos seus avôs e bisavós que andaram pelos Missirás e Matos Cães da Guiné, nos idos anos de 60/70...

Temos esquecido os nossos camaradas Anástácios, que a guerra também era feita pelos "básicos"...

É além disso uma história escrita com talento... e vem a calhar nesta quadra em que temos tendência para "regressar" ao passado, à infância, à juventude, à guerra...

Eu nunca esquecerei que no Niassa foi connosco (CCAÇ 2590/CCAÇ 12 e outras independentes>) um básico que ia algemado... Deve ter feito tantas à tropa que o mandaram para Guiné, algemado como um animal...

Cumpria-se o provérbio popular... O comandante do BCAÇ 2852 não fez mais, no caso do Anastácio, do que levar á letra o anexim: "Ao toiro e ao doido dá-lhe o curro"...

Bom Natal no céu e na terra, que eu fico-me pela Madalena, Vila Nova de Gaia...

Juvenal Amado disse...

Também ao ler este conto de Natal não posso deixar de dar os parabéns ao autor.
Não te esqueças de comprar o burro e a vaca para o presépio!!!
Maravilhoso!

Muitos parabéns e obrigado