sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14050: Notas de leitura (658): “A Enfermeira Chinesa”, de Rui Coelho e Campos, Sítio do Livro, 2014 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2014:

Queridos amigos,
As surpresas literárias, felizmente nestas investidas escriturais dos combatentes, são como as contas de missanga: é no enfiamento que o multicolorido reverbera e chama a nossa atenção.
É surpreendente a qualidade dos contos de Rui Coelho e Campos, pena é, em meu modesto entender, que tenho ajuntado estes portentosos contos ajuntando-lhes missangas de menor valia, isto quando se percebe que aquela África e aquela guerra lhe fervem nas veias, sente-se à légua que tem muitos contos a dar para o crisol da literatura de guerra.

Um abraço do
Mário


As guerras iguais e as disparidades dos trópicos (as guerras diferentes)

Beja Santos

Há um fio condutor em todas as guerras e as guerras que travámos em África não foram exceção: a aprendizagem do horror dentro da aprendizagem do meio, a comunicação do grupo a sobrepor-se às práticas culturais anteriores, a interiorização de um medo visceral, um tumulto psicossomático, umas vezes silencioso, outras vezes avassalador, daí a rigidez ou a explosão que transfigura o homem no herói… Não vale a pena desfiar o caudal de argumentos, são sobejamente conhecidos, e por nós experimentados. Quando lemos um relato da Batalha de Estalinegrado ou de Monte Cassino, sabemos que aqueles homens, independentemente da ideologia que os respaldava, suspiraram pelos seus entes queridos, temeram, expuseram-se graças a uma força desconhecida. E ficaram fiéis aquelas memórias, indeléveis, ficaram agregadas a um património que cada um deles sabe que os ultrapassa, até porque houve mortos e feridos, atos destemidos entre vencedores e vencidos.

As nossas guerras em África foram diferentes pela dimensão do território, pela natureza do inimigo, pela latitude e longitude, pela fauna e pela flora, pelo mosaico étnico em que cada um se teve que ambientar. Está escrito e reescrito que 10 quilómetros na Guiné não são equiparáveis a 10 quilómetros em Angola e Moçambique. Nas diferentes literaturas, os seus autores ressaltam cheiros, amplas distâncias, florestas do tipo galeria, zonas penhascosas, colunas que percorrem durante largos dias elevações e vales de grande amplitude. Há, é certo, a inquietude das tropas acantonadas, silêncios que urge saber desfibrar, memórias que se soltam para que a vida seja tolerável na caserna ou no posto de sentinela. E há os estampidos, as explosões, os terrenos minados, aquelas emboscadas que desorientam, que está fora da zona de fogo. Semelhanças e dissemelhanças: as lembranças que pesam como ferro em brasa; a comida rasca e as agressões verbais ao cozinheiro, aquele tempo a escorrer como chumbo líquido e a malta a endurecer o palavreado, a atacar a cerveja como se esta fizesse esquecer o arame farpado à volta e os potenciais perigos vindos da mata na noite escura.

Temos pois, sem equívoco, disparidades literárias porque a circunstância de todas aquelas guerras esculpiram tempos e realidades distintos. É saboroso, por vezes, olhar para outros teatros de operações que não o da Guiné e perceber-lhe o que nos identifica e nos aparta. Tomo como referência, para este exercício o livro de contos “A Enfermeira Chinesa”, de Rui Coelho e Campos, Sítio do Livro, 2014. Ali se diz que o autor foi alferes miliciano de infantaria numa Companhia de Intervenção em Moçambique e é advogado. É o primeiro livro de contos, fica-se a saber, mas o autor dribla folgadamente a técnica deste género literário: não há engorduramentos, desenvolvimentos extasiantes, o descontrolo das falas.

No conto Zahida é indispensável localizar o teatro em que se processam encontros e desencontros desamorosos. Há uma porta principal que dá acesso à pista do aeródromo, a certas horas, mulheres e homens cruzam a porta principal e transportam ao ombro as suas alfais, vão até à machamba. Nessa porta principal está uma milícia sentada, vigilante. Aqui começa o jogo de amores recônditos, inconfessáveis:
“O grupo das três mulheres do régulo tarda a transpor a porta principal; Faad, que ficou ligeiramente para trás, ilumina os dentes muito brancos e olhos em movimento alternado e suave em direção em Posto 1, desatinando Matsinhe, soldado criado no Sul nas margens do Umbelúzi, onde aprendera a agarrar mulher, agora ansioso pelo anoitecer para agarrar Faad.
O jogo discreto dos olhos de Faad é captado no Posto 1; o local, a hora, os cuidados, as promessas, tudo é registado por Matsinhe que, uma vez o sol recolhido, vai juntar as missangas de cores múltiplas no leito de capim acamado, onde mergulhará no copo macio de Faad, escutando, os olhos cerrados, o marulhar das águas do Umbelúzi.
Mas os sinais dos olhos de Faad também são captados por Zahida, mulher segunda do régulo, cansada da pele lisa de Faad, onde as missangas rolam e brilham sempre.
Durante o dia, ao ritmo lento da enxada, Zahida lança as sementes da urdidura; tem de secar o atrevimento de Matsinhe e devolver Faad aos amores do soldado Mezulo; talvez por falar pouco, ou por ter vindo do Luatize, ou porque lhe lembra o filho, no mato, fugido à chibata do cipaio – sabe-se lá se regressa, um dia, com eles… - Mezulo é o consentido de Zahida.
Evita a porta principal e reentra mais cedo no aldeamento, emergindo de entre as fiadas do arame farpado, decidida a alijar de vez o fardo da ousadia de Matsinhe.
Antes que chgue aos ouvidos do régulo, acaba-se o fingimento entre Faad e Zahida; decidiu, vai procurar Mezulo e contar-lhe tudo. Não teme o escândalo; embora saiba que, quando há zaragata entre militares, a ninguém falha o pormenor das razões e o detalhe dos factos, ela confia que Mezulo intervirá com prudência e eficácia, sem que o régulo venha a suspeitar de nada.
Mezulo chega amanhã, na coluna que vem da cidade”.

Segue-se a descrição da coluna a emergir da poeira densa da picada. Zahida conta tudo a Mezulo. Quem irá resolver a situação será Caímo. Chegou a hora da feitiçaria, presume-se que o aldeamento vai ser atacado. Matsinhe já está a sofrer os efeitos do feitiço, a medicina convencional nada pode resolver. Entra em cena o alferes que desmantela toda esta história de feitiços, altera-se e impõe-se:
“Cabrão, filho da puta, feiticeiro de trampa, fodo-te o canastro. Se o Matisnhe morre, vais lerpar também, mas à porrada!»… é Santiago, com os nervos à solta e o medo aos berros, perdido por um ou por mil, as veias do pescoço reluzem à chama pálida do petromax; a coronha da Mauser de Changane, empunhada por Santiago, voa em direção à testa de Caímo que se protege apavorado, os braços em volta da cabeça; e, o copo encolhido, indefeso, a rolar no chão, os olhos esgazeados, grita, grita, muitas vezes, e Changane grita também mas ri, ri muitas vezes, «Sim, sim, vou partir o xiquembo de Matsinhe!», clama Caímo, clama Changane.

Matsinhe recupera, já não vai morrer. Alguém vai ao focinho de Mezulo, não se sabe quem. O régulo sovou Faad e também Zahida, que não cuidou da mulher mais nova como era sua obrigação, e enviou um recado ao alferes para se iniciarem as negociações da reparação que lhe é devida pela honra ofendida por um soldado do Sul, reparação que mete dinheiro, cerveja e panos, talvez um relógio de pulso que o sargento vai pagar.

E o empolgante do conto, o âmago do segredo, fica para o frenesim da operação, em vagas os helicópteros estão a lançar as tropas no assalto. No meio da algazarra, Santiago aproxima-se do alferes e conta aquilo do feitiço do Matsinhe:
«Conte lá… depressa!» 
«Na manhã a seguir à chegada da coluna, depois do Mezulo ter falado com ele, o Caímo agarrou num cordel de amarrar as sacas da farinha, dos mais finos, e embrenhou-se no mato até chegar à zona onde começa a floresta; apanhou uma folha de árvore caída sobre o capim, uma folha seca…»
«Despache-se, os helis já aí estão!» 
«…fez-lhe um furo, inseriu o cordel e deu um nó, com muito cuidado para não rasgar a folha; depois… o feiticeiro pendurou o cordel, com a folha suspensa na ponta, no ramo de uma árvore na floresta…»
«Rápido!», insiste o alferes, o vento das hélices a esmagar o capim e a levantar rolos de poeira vermelha.
«… e quando o vento batia na folha seca e a fazia girar…», grita Santiago, as duas mãos à volta da boca, «o coração de Matsinhe rodopiava, rodopiava, rodopiava como um louco!» 

Rui Coelho e Campos dá-nos contos assombrosos nestas memórias moçambicanas e mais uma vez me interrogo como é que toda esta prosa de altíssima qualidade passa ao lado das grandes editoras e dos leitores, que mistério é este como estes grandes contos de um combatente correm risco de passar despercebidos. Dito isto, que o leitor interessado por esta literatura, obrigatoriamente prosopopeia que a memória guardou e criou, dá depressa à procura de “A Enfermeira Chinesa”.
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14029: Notas de leitura (657): "Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, a arma da teoria, unidade e luta”, Seara Nova, 1976 (Mário Beja Santos)

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