sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2596: Guileje: Simpósio Internacional.(Virgínio Briote)

Na hora de fazer a mala

1. Mensagem do José Marcelino Martins: 


Caros Camaradas Por vosso intermédio envio um forte abraço ao Pepito, ao Nuno Rubim e a todos aqueles que pensaram, trabalharam e levaram a bom termo o encontro de Guiledje. Com gente assim conseguiremos fazer história e transmiti-la aos vindouros. Neste momento, relembro o Zé Neto que, esteja onde estiver, estou ciente que também estará no simpósio. Um abraço José Martins CCAÇ 5 - Gatos Pretos

 __________ 

 Obrigado, Zé Martins, levarei os teus abraços. E pensarei em vocês todos. Parto amanhã de manhã, ou melhor partimos, um grupo numeroso de tugas, com cubanos, espanhóis e franceses pelo meio... Não sei onde apanhamos os caboverdianos...

Apareçam em força no lançamento do livro do Beja Santos (e nosso livro)... Vai ser um dia de festa para todos, contribuindo para reforçar os nossos laços de camaradagem e de amizade. Até ao dia 7 de Março. O VB e o CV tomar#ao conta da loja. Sei que posso confiar neles. LG.
__________ 

  2. Mensagem do Helder Sousa:

Caro Luís Este mail tem por finalidade apenas desejar, muito fortemente, que a viagem à Guiné corra bem em todos os aspectos.

Que tudo decorra com o mais elevado espírito de fraternidade e de positivismo e que se consiga através do Simpósio alcançar um patamar de trabalho com "pernas para andar", de modo a potenciar a dinâmica que se tem vindo aparentemente a conseguir. Relativamente às ostras, não te esqueças que elas eram cozinhadas .... vinham quentinhas .... Penso que por cá, apesar de não poderes estar presente pessoalmente, o Blogue estará muito bem representado pelos seus Co-editores e por uma representação bem significativa de "tertulianos" tal modo que o Beja Santos verá todo o calor e carinho que o pode envolver. Estou a envidar esforços para ver se consigo levar a estar presente um dos irmãos do David Payne que o Beja Santos refere com alguma frequência neste seu primeiro ano de comissão. Boa viagem e um abraço Hélder Sousa

__________

Nota de vb:

Aí estamos nós de regresso às bolanhas e às terras vermelhas da Guiné. Não agrupados em Pelotões, Companhias e Batalhões. Nem fardados com armas guardadas nos porões dos Uíges e Niassas ou dos Super-Constellation dos TAM ou da TAP.

Desta vez, vamos todos misturados. Somos de todos os anos, de muitas unidades, soldados, furriéis, alferes, capitães, que em outros tempos para lá partimos, enquadrados em Batalhões, Companhias e Pelotões, com flâmulas, bandeiras, botas, cornetas, desfiles, Mães, Pais, Namoradas, lágrimas e lenços a abanarem ao vento da Rocha Conde de Óbidos ou do aeroporto de Figo Maduro.

Vamos à civil o mais possível, as armas que levamos são os portáteis e as máquinas fotográficas.

E, desta vez, levamos nos braços um enorme abraço a todos os Guineenses.

Não vamos estar todos presentes, mas vamos lá estar. Como temos estado estes anos todos com aquelas gentes e aquelas terras que há décadas fazem parte das nossas vidas.

Guiné 63/74 - P2595: Operação Macaréu à Vista - II PARTE (Beja Santos) (22): Meu amor, vai acabar entre nós este Oceano!






Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), remetido em 27 de Dezembro de 2007:




Operação Macaréu à Vista - II Parte > Episódio XXII

MEU AMOR, VAI ACABAR ENTRE NÓS ESTE OCEANO!
Beja Santos

(i) Fim das insónias, voltou-me o bom humor, tenho cores risonhas

As cartas que envio à Cristina em 23 e 25 de Janeiro abandonaram de vez o tom melancólico, estão agora centradas na esperança do reencontro. Feliz, dou a boa nova do meu restabelecimento. Escrevo a 23: “Sabe-me bem estar neste quarto silencioso da casa dos Payne, onde o único sinal da vida militar são as peças do meu fardamento numa cadeira. Regulei os sonos, deito-me logo a seguir ao jantar, pelas 9h da manhã pequenoalmoço, arranjo-me e vou dar um passeio, habitualmente até ao cais, se estou em condições passo duas horas no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. Medico-me, almoço e descanso até meio da tarde. Leio, escrevo e como sabes melhor que ninguém falo-te a partir dos Correios. Mais um passeiozinho, vou à Catedral, volto, janto com os Payne, mais medicamentos e cama. Fico muito contente sabendo que já marcaste o casamento civil para 7 de Fevereiro. Esta imensidão do oceano vai finalmente desaparecer. Continuo a pensar que não vou ter férias aí e falei longamente com o David Payne sobre a tua vinda, caso eu me mantenha na região de Bambadinca. Ele acha que se tu queres vir não deves ser frustrada.

Estou muito contente com tudo quanto me comunicas, eu amo-te com todas as minhas forças e fraquezas, eu preciso absolutamente de ti. Sei que tu vais ter muita energia para suportar a incógnita dos próximos meses e por isso digo-te sem hesitar que venhas até Bissau quando quiseres. Por favor, não comprometas o resto dos teus estudos nesta fase, parece-me mais razoável que concluas tudo em Julho ou mesmo em Setembro. Decide o melhor por nós. Se podermos casar aí, gostava que fosse na Igreja de Santo António, e gostava que fosso o Padre Cerqueira a ministrar-nos os sacramentos. Vou escrever a todos os nossos amigos a falar do nosso casamento. Lembra-te que o Infinito Amor está connosco”. Dois dias depois, informo que o David Payne me considera tratado, a grande depressão está a passar, mas ainda sonho em viajar até Lisboa em 19 de Fevereiro: “Parto para Bambadinca amanhã ou depois, levo ainda várias caixas de medicamentos, mas com a obrigação de ir fazendo gradualmente o desmame. Para tratares da minha certidão de baptismo, peço-te que vás à Igreja de Fátima, fui baptizado em finais de Junho de 1945. Agradeço-te a companhia que tens dado ao Casanova, ao Quebá Soncó, ao Fodé e ao Paulo. Ontem, encontrei um oficial de Bambadinca que me deu a informação que houve um pequeno êxito militar na área da Ponta do Inglês, sem derramamento de sangue foram trazidos homens, mulheres e crianças e destruídas as barracas onde eles viviam enquanto agricultavam as bolanhas do Poidom. Tenho ouvido música do Zeca Afonso e do Adriano Correia de Oliveira e para adormecer ponho Bach e Vivaldi, oiço baixinho à noite para não incomodar os Payne. Telefonei ao Ruy e disse-lhe que casaremos a 7, felicitou-nos, o 7, diz ele que é devoto da ciência babilónica, é o número redondo da vida, fico muito contente com este auspício. Ainda vou tentar telefonar-te ao fim da tarde, não posso contar com os Correios de Bambadinca. Pensemos em Fevereiro, a nossa felicidade em Deus, amo-te cada vez mais”.

(ii) O major Cunha Ribeiro no HM 241

É quando vou ter alta que sou informado do desastre pavoroso que vitimou o major Cunha Ribeiro: ele vinha a subir a rampa de Bambadinca num jeep, à frente seguia um camião que iria no dia seguinte levar mercadorias ao Xitole, o camião descomandou-se, veio sobre o jeep que ficou entalado num poilão. Demorou mais de uma hora para ser retirado do jeep, tal o número de ferros retorcidos, saiu com múltiplas fracturas, as pernas escavacadas, os maxilares partidos com contusões graves e hemorragias. Foi operado a 21, visitei-o a 22 ao fim da tarde. Até partir, visitá-lo-ei sempre até 27, dia em que efectivamente regressarei a Bambadinca. Nesse dia, quando me estou a despedir, entraram as senhoras da Cruz Vermelha, com o seu avental imaculado, sempre capitaneadas pela Sr.ª D. Maria Helena Spínola. A mulher do comandante chefe pergunta a Cunha Ribeiro em que lhe pode ser útil e ele responde: “Gostava que me oferecessem a Enciclopédia Britânica, é um sonho de infância, tenho agora aqui tratamento para largos meses, era bom que a Cruz Vermelha cuidasse agora das minhas aspirações culturais”. Mesmo todo fracturado e com o corpo enfaixado, Cunha Ribeiro troçava do destino, punha a ridículo as convenções solenes. A 1 de Fevereiro, escreverei à Cristina pedindo-lhe para o visitar, Cunha Ribeiro tinha a mulher e os filhos pequenos a viver em Braga.

Há pouco tempo resolvi testar a memória do Queta Baldé, perguntando-lhe se tinha recordação das circunstâncias em que se dera este acidente. Isto passou-se ao fim de mais um encontro, desta vez eu pedia-lhe esclarecimentos sobre as povoações que visitávamos regularmente, seja no eixo Xime-Bambadinca, a partir da estrada para Bafatá, em Badora e Cossé, seja ainda entre Bambadinca e Mansambo. Não tinha apontamentos sobre as nossas idas a Bijine, Madina Bonco (residência do régulo Mamadu Sanhá) e Jana, queria recordar o que era a nossa actuação, nesse tempo coube-nos fazer o recenseamento das armas nas tabancas em autodefesa, a pedido da CCS de Bambadinca. Acerca do acidente que vitimara o major Cunha Ribeiro, Queta voltou a surpreender-me com a sua memória: “Nosso alfero, era um camião civil, tinha os travões desarranjados, o dono tinha ido em peregrinação a Meca, mal tinha chegado quando o informaram que ia no dia seguinte numa coluna para o Xitole, na rampa o motor preguiçou, o camião destravou-se, o jeep do major ficou esmagado entre o camião e uma árvore, mesmo à esquina da estrada que levava à casa e aos armazéns do Rendeiro. Ouvimos o major Cunha Ribeiro a gritar a chamar pelo Atalaia (efectivamente, ele era o seu motorista). Vieram os desempanadores e não tivemos coragem de ver mais um morto”. Expliquei ao Queta que ele não tinha morrido, estava de boa saúde, tanto quanto possível, vivendo no Porto, como coronel reformado. Nestas coisas, o Queta dá um sinal de tranquilidade e resignação: “ Graças a Deus, julgava que o major tinha morrido dentro daqueles ferros, quando fechou os olhos e deitava sangue pelo nariz e pelos cantos da boca, julguei que tinha sido chamado para o Paraíso”.

(iii) A descoberta de uma glória guineense, um missionário e um intelectual

No Centro de Estudos da Guiné Portuguesa encontro referências aos jesuítas, e prontamente enviei uma carta ao padre António Fazenda, estudioso das missões dos jesuítas em África. Terei dito algo como isto: “Os jesuítas aparecem no inicio do séc. XVII na ilha de Santiago, eram os padres Baltazar Barreira e Manuel Fernandes e dois auxiliares. O padre Barreira embarcou para a Guiné, andou por Cacheu, Bissau, rio Nuno e Serra Leoa. Acho que vem tudo descrito no livro do padre Fernão Guerreiro “Relação Annual das cousas que fizeram os padres da Companhia de Jesus”. O padre João Delgado e outros voltaram à Guiné em 1608, os jesuítas iam morrendo todos, vitimados pelo clima. Em 1640 havia na Guiné dois padres da Companhia de Jesus. Mas as dificuldades eram insuperáveis e terão abandonado a Guiné depois de 1647. Aqui acabam as minhas informações para si”. A grande surpresa é a descoberta do padre Marcelino Marques de Barros, nascido em Bissau em 1844, professor no colégio das missões em Cernache de Bonjardim, onde faleceu em 1929. Empolgado, começo a folhear os seus trabalhos sobre filologia, etnografia, folclore e corografia guineenses. Foi sócio correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, tendo escrito no seu boletim. Folheio o seu texto “Guiné Portuguesa ou breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes, línguas e origens de seus povos”, que publicou em 1875. Antes de escrever o seu breve ensaio cita Carlyle: “Em cada objecto há uma inesgotável significação; os olhos vêem conforme os meios que empregam para ver”. Escrevo deliciado no meu caderninho viajante, extraindo o que diz sobre línguas nativas: “A língua mandinga, pela sua incomparável harmonia, elegância e facilidade de pronunciação, é a mais falada da Senegâmbia; e por ser muito cultivada pelos mouros letrados, está elevada a um alto grau de perfeição”. E depois descreve o registo da sua admirável capacidade de observação, fala de saudações, pactos e juramentos, hospitalidade, tabus, vindicta, roubo, rapto, casamento, aborto e infanticídio, aleitamento, circuncisão, costumes agrícolas, costumes guerreiros, doenças (lepra, bexigas, varíola, doença do sono), Deus, alma, fetichismo, habitações, géneros de vida, família e vestuário. Folhei a seguir um livro de 1900, sobre a literatura dos negros, contos cantigas e parábolas, que maravilha, fala do djambatuto, aquela ave que vi tantas vezes em Missirá, descreve o jagudi dizendo que é um abutre muito parecido com o peru, com um grande bico e muito mal encapotado nas suas asas de cor de lama. Passo a seguir para o seu trabalho sobre a língua guineense que ele publicou na Revista Lusitana, dirigida por Leite Vasconcelos. Leio e releio, finalmente encontro alguns códigos para perceber o crioulo, as raízes e os arcaísmos do português adaptado neste ponto da África ocidental: ablução é banho; abjecto é despressionado; aceno é sinal; confusão é tarpadjaçon; dever é obrigaçon; adivinha é dbinha... Nada escapava à curiosidade do padre Marcelino: como é que chegou a mancarra à Guiné, o arvoredo do Sul, a mistura das línguas nativas com o português. Estou a ficar muito cansado, tenho que ir para casa, passo ainda os olhos no texto que Teixeira da Mota elaborou com base numa conferência que aqui fez em 1955, e que está publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa: “No momento presente, apenas um quarto da população civilizada é constituída por brancos, e há cerca de um século apenas havia 16 europeus em Bissau, e o comércio exterior e a navegação estavam praticamente nas mãos de estrangeiros, situação que se manteve até há 30 anos”. Ainda posso pelo museu, a arte nalu, os pássaros dos Bijagós são geniais. Como foi possível a arte portuguesa ter ignorado esta escultura deslumbrante?

(iv) O último jantar com Botelho de Melo e algumas leituras

A 25, vou despedir-me do Botelho de Melo que regressa aos Açores. Jantamos no Pelicano, com a foz do Geba ao fundo. Agradeço-lhe tudo o que fez por mim, as impressões açoreanas nessa noite estão muito vincadas, passo em revista os seres humanos que me acolheram e que me continuam a amparar com o seu estímulo. Falamos da cultura das ilhas, os seus grandes romancistas e poetas, recordo a culinária soberba e as belezas naturais, aquele verde intenso das lavas e das chuvas, as hortênsias iridescentes, as azaléias de cor intensa, as araucárias de grande porte, o porto das Capelas, a beleza genesíaca da costa da Bretenha. E ficamos por aqui, são horas de voltar para a cama. Abraçamo-nos muito, é uma amizade de pedra e cal, o tempo encarregar-se-á de confirmar esta estima profunda.

Continua a ser um mistério ter lido e guardar recordações do que li. Miss Maple é uma velhinha amável com um condão especial para a investigação criminal. Em “O estranho caso da velha curiosa”, de Agatha Christie, tudo começa em Londres, quando Mrs. McGillcuddy, uma sua amiga toma um comboio e assiste durante a viagem a um assassínio. Miss Maple vem colaborar, reconstitui a viagem, descobre que é muito possível que a amiga não tenha delirado. E descobre uma casa em Brackhampton que reúne probabilidade de ser o local onde está o corpo. Recorre então ao auxílio da sua amiga Lucy Eyelesbarrow que irá trabalhar em Rutherford Hall. É lá que de facto está o corpo de uma mulher assassinada, aparentemente ninguém a conhece ali, intervém a polícia, há mais dois assassínios, Miss Maple deslinda o imbróglio.




Da editorial Inquérito li “Noites Brancas”, de Dostoiewski. Um homem deambula por S. Petersburgo, é um homem só, encontra num canal uma jovem, Nastenka. Enceta-se assim uma série de noites com encontros e desencontros, a história de uma grande paixão, paixão essa que une Nastenka a um apaixonado que irá aparecer no final da história. É um Dostoiewski muito diferente daquele que eu lera nos Irmãos Karamazov, profundamente lírico, centrado numa relação sentimental catártica. As ilustrações são da Manuel Ribeiro de Pavia, um grande ilustrador, desenhador e pintor.






Está na hora de regressar. Ainda vou ao mercado comprar especiarias, passo pela Casa Taufik Saad onde descubro banda desenhada recente, tomo um Dakota para Bafatá, depois de amanhã, ainda não sei, vou participar numa batida junto do Buruntoni, a operação “Topázio Valioso”. A guerra vai recomeçar.
________________

Nota dos editores:

(1) Vd. último poste da série: 22 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2570: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (21): Em Bissau, em tempo de Vesperax, curando uma depressão

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2594: Bibliografia (20): Lançamento do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos (Virgínio Briote)

Lançamento do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos

Programa:

13h00: Almoço na Casa do Alentejo

14h30: Visita guiada à Sociedade de Geografia de Lisboa

16h00: Reunião dos Camaradas presentes na Sociedade de Geografia.

18h00: Espectáculo de korá, por Braima Galissa18h30: Apresentação do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos: intervenções de Mário Beja Santos, Mário de Carvalho e General Lemos Pires

Almoço: Presenças confirmadas até 28/02/2008

1. Henrique Matos
2. Cor. A. Marques Lopes
3. Dr. António Graça de Abreu
4/5. António Santos e Esposa
6. Delfim Rodrigues
7. Mário Fitas
8. Cor. Rui A. Ferreira
9. Raul Albino
10/11. Carlos Vinhal e Esposa
12/13. Albano Costa e Esposa
14/15. Carlos Marques dos Santos e Mulher Teresa M. Santos
16. Cor. Hélder Pereira
17. Júlio Pinto
18. Dr. José Monteiro
19. José Manuel Bastos
20/21. Reis Martins e Esposa
22. Filipe Ribeiro
23. Dr. Mário Beja Santos
24. Fernando Chapouto
25. Torcato Mendonça
26. Manuel Chamusca
27. José Aurélio Martins
28. Carlos Murta
29. Manuel Paes (?) e Sousa
30. Cor. Carronda Rodrigues
31. Cor. Marinho
32. Ten. Cor. Heitor Gouveia
33. V. Briote
34. Hélder Sousa
35. Custódio Castro
36. Carlos Santos

37. João Parreira
38. Cor. Diamantino Gertrudes da Silva

39. Alfredo Carvalho Rodrigues
40. Fernando Franco
41. Prof. Doutor Jorge Cabral
42. Carlos Américo Cardoso
43. José Manuel Lopes


__________

ver artigos de:

25 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2581: Lançamento do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos (Virgínio Briote)

20 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2559: Lançamento do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos (Virgínio Briote)

14 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2537: Lançamento do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos (Virgínio Briote)

10 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2521: Lançamento do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos (Virgínio Briote)

4 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2505: Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó. O livro do Mário Beja Santos, o nosso livro (Virgínio Briote)

11 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2429: Lançamento do meu/nosso livro: 6 de Março de 2008, na Sociedade de Geografia, com Lemos Pires e Mário Carvalho (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P2593: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (11) - Parte X: O preço da liberdade (Fim)

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Uma enfermeira (*) pára-quedista no meio dos Lassas...

Foto: © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > A bela Miriam, a lavadeira, de etnia fula, que, no romance, gostava de fazer converso giro com o Furriel Rafael...

Foto: Mário Vicente, Putos, Gandulos e Guerra. Ed. de autor (Cucujães, 2000).


Guiné-Bissau > PAIGC > Novembro de 1970 > A liberdade: um caminho difícil, com um preço alto para muitos homens e mulheres que combateram na guerrilha. É o que sugere esta imagem do fotógrafo norueguês Knut Andreasson.

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)

PAMI NA DONDO, A GUERRILHEIRA (1)
Autor: Mário Vicente
Prefácio: Carlos da Costa Campos, Cor
Capa: Filipa Barradas
Edição de autor
Impressão: Cercica, Estoril, 2005
Patrocínio da Junta de Freguesia do Estoril
Nº de páginas: 112

Advertência: Trata-se de uma obra de ficção, embora inspirada em factos reais, em especial na actuação da CCAÇ 763, os Lassas, que estiveram e viveram em Cufar, no sul da Guiné, nos anos de 1965 e 1966.

Edição no blogue, devidamente autorizada pelo autor, Mário Vicente Fitas Ralhete (ex Fur Mil Inf Op Esp, CCAÇ 726, Cufar, 1965/66). Revisão do texto, resumo e subtítulos: Luís Graça.

Parte X (Final) > A professora do PAIGC é libertada no mato, grávida de um Lassa que morre em combate(pp. 97-111)

Vd. resumo dos episódios anteriores (2)

(i) Disfarçada de mulher de limpeza, Pami ouve os furriéis Gama, Taveira e Rafael a debaterem, dilacerados, o sentido da guerra e o seu sacrifício pela Pátria


Miriam, para além da roupa de Rafael, agora também tratava da limpeza e arrumação do quarto dos três furriéis. Pami, prisioneira em liberdade condicionada, acompanhava por vezes a lavadeira fula, dando uma ajuda a esta nas suas tarefas. Numa dessas deslocações à messe de sargentos, os três ocupantes encontravam-se no quarto comum. Sobre as camas, os mesmos falavam sobre a guerra e os seus problemas envolventes. Sem darem qualquer importância, aliás ignorando completamente a permanência das negras, movimentando-se nos seus trabalhos de limpeza.

Perspicaz e atenta, Pami registava as dissertações dos militares. Gama, sentado na cama recostado sobre a cabeceira da mesma dizia:
-Foda-se!... Martírio... para mim não há pior que a sede. Quando a boca se me seca, quase que sufoco!

Pami paralisou, confuso o seu cérebro tentou, sem o conseguir, saber qual a espécie de sede a que o militar se referia. Não era ele que os colegas diziam, transformar-se completamente perante uma acção de fogo? Não diziam até que, rastejando, ia à zona de morte buscar os camaradas feridos, quando eram emboscados? Dúvidas racionais sobre qual a sede sofrimento do militar.

Taveira, tronco nu, envergando apenas uns calções de cáqui, completamente estendido sobre a cama dissertava:
-É pá! Eu penso muitas vezes que um dia em que por hipótese tenha um filho... Que poderei eu dizer-lhe, sobre esta merda?... Que seu pai subiu aos cumes do bem, e que chafurdou, descendo aos abismos do mal?

Rafael de bruços, pés sobre os ferros da cama, lançando nuvens de fumo dos cigarros que sofregamente aspirava, atalhou:
- Filho!? Se o tiver... espero ter a coragem de confessar-lhe que seu pai se encontrou perdido e dividido entre esses dois pólos. Poderei até confirmar-lhe que espezinhei a condição humana e a própria Pedra de Moisés.

A prisioneira, na ânsia de ouvir os militares, ia fazendo render o tempo, ajudando vagarosamente na limpeza do aposento. Ignorando completamente a presença das duas mulheres, Rafael continuou:
- É certo que cada guerra é criadora das suas próprias normas e leis, não revogando as leis humanas. De livre vontade, sob coacção ou de qualquer outra forma não há dúvidas que as aceitamos e respeitamos... Quem terá ética e razão, para nos condenar pelo que fazemos? ... Também é lógico e racional questionar que, em termos teológicos, nos estamos cada vez mais afastando da libertação! O fosso que nos separa da casa e da família é cada vez mais profundo. A vida que foi. A ligação a essa forma de vivência torna-se cada vez mais esfumada. Estamos cada vez mais próximos do inentendível da razão, e da destruição da nossa identidade global.

Enquanto falava, lançava argolas de fumo do seu terceiro ou quarto cigarro, cujas pontas ia lançando na lata de conserva, improvisado cinzeiro. Gama abandonou a posição sentada e esparramou-se na cama sobre o lado direito, pronunciando:
- É fado de saudade, a comunhão que fazemos, no partilhar do pão, farinha amassada de tristeza e alegria, com os companheiros, envoltos nestes uniformes camuflados de guerra.

Taveira contorceu-se como que acossado por carreiro de formiga cadáver. Embora a sua propensão extrovertida de interpretar as situações, fleumático atirou:
- A unidade e a solidariedade são a procura incessante da estrutura humana no mundo. Há algo que é muito importante escalpelizarmos: A terrível confissão de que não temos nomes, e aquilo que apenas possuímos é a transformação desses mesmos nomes, em comunicados de guerra. Muito simplesmente a nossa condição humana é única e exclusivamente medida em litros de suor sangue e lágrimas, derramados em prol da Pátria. Todos somos espectros de outras guerras. Isso é o que nos une e permanecerá entre nós.

Gama interrompeu:
- É verdade! Somos uma geração que está a ser sacrificada e devorada, para o bem futuro e salvação das gerações vindouras.
- Mentira! - exclamou, peremptório, Rafael, dando uma volta e sentando-se na cama. De dedo em riste para o seu camarada afirmou:
- Repito! Em princípio isso é uma mentira imposta! Não nos sacrificamos a nós ou aos turras, mas a ambos. Os que já se foram e aqueles que ainda virão, são a súmula de todo este disparate!... O Taveira tem absolutíssima razão, quando diz que todos somos espectros de outros conflitos. Pergunto: Porquê nos foi destinada esta vida? Porquê nascer para este estado de sofrimento? Como compreender tudo isto?... Também é verdade, que qualquer resposta me é inútil, porque me encontro com vertigens, vomitando sobre o abismo que se abre à minha frente. Quando matamos, já não somos nós! Porque nós próprios já estamos mortos. Conheci poucas pessoas que quisessem vir para aqui, e muitos menos que não tivessem medo da guerra, e receio de não regressarem a casa. Muitos, mas muitos de nós tenho a certeza, dentro de si ficarão, com os buracos que abrimos para os abrigos, as crateras abertas pelas granadas de morteiros e as noites das matas sem luar cheirando a morte! Alguém já compreendeu, que se toma impossível regressar de uma guerra?...Ela será nossa companheira até nos extinguirmos. Findará apenas quando o som cavo, das pás de terra se ouvir, caindo sobre as tábuas, que envolverão a nossa matéria.
-Será!?... Que só sabemos criar através da destruição?

Pami não entendia agora muitas das coisas que os militares diziam. Mas ficou com a certeza de que era aquela a fotografia do seu interior, e que não tinha nada a ver com a que se apresentavam exteriormente perante o mundo.

Rafael continuou:
-Gostaria de perguntar a estas gentes que nos transformam em voluntários forçados e nos incutem a ter saudade dos maternos mamilos, sugando-os até fazer sangue. O porquê? E para quê?... À minha ditosa Pátria - busto, figura, mulher libertada - gostaria de perguntar que mais sacrifícios nos requer?... Às mulheres, mães, irmãs, esposas e amantes, gostaria de questionar porquê não invertem a razão dos valores, e gritem bem alto em uníssono: Parem!... Basta!... Por favor! Ou será que o absurdo leva as mães ao masoquismo de terem orgulho chorando sobre a campa dos seus filhos? Falsos heróis, fabricados por um louvor em Ordem de Serviço!

Gama inquieto, a adrenalina subindo. Exclamou:
- Pára , não voltemos a Camões. Lembra-te que o desgraçado, para poder divulgar a sua Obra, teve de dar manteiga aos padres.

Rapidamente Rafael ripostou:
- Camões é inquestionável. Sabes porquê? Porque a Língua é parte integrante da nossa identidade. Quem melhor a cantou como Ele? Mas também podemos reflectir - indicando na direcção das mulheres no seu trabalho - Que língua falam estas desgraçadas negras? Se Ela revela o que construímos e aquilo que somos. Também te dá os exemplos contrários. O que não somos, e o que não construímos ou antes destruímos.

Os militares, em íntimos pensamentos interrogativos concerteza, calaram-se por breves minutos. Um silêncio claustraniano invadiu a mansão militar. Mas Taveira remexeu o refugado.
- Sim!... Podemos questionar que outros tormentos e desalento, deseja a Pátria ver no rosto dos seus filhos, para se sentir feliz. Quem será o último a morrer, em seu nome e da sua glória?

Rafael voltou filosofando:
-O meu pai mostrou-me uma noite, o poço da Ribeira Velha. Era tão profundo, que apenas reflectia uma estrela. Um ano a seca foi tão grande que o fundo do poço se transformou em lama, fazendo desaparecer a estrela. Penso que o desaparecimento de uma estrela , no fundo de um poço, nos destroça mais do que uma emboscada na estrada de Cabolol. A sede que martiriza o Gama talvez seja esta. Por ventura, um de vós que me sobreviva, irá falar com o meu pai. O meu pai chorará, e aquele que lhe falar, ficará diante dele cabisbaixo, envergonhado, mordendo os lábios. Sentir-se-à culpado por não ter sido morto também. E reflectirá sobre a própria sobrevivência. A cara de meu pai reflectirá na distorção da sua dor e paixão a minha própria cara. Nessa hora concerteza pensareis: Porquê ele e não eu?
- Amanhã!... Será a vez de outro amigo e companheiro olhar nos olhos de outros pais ou mães. Não tenhais dúvidas! Este será o drama que nos acompanhará! Somos, sem dúvida, uma geração que não existiu para viver e amar, mas sim para se extinguir sob o síndroma dos efeitos da guerra. Como será o futuro? Quais os efeitos para todas as partes deste enorme disparate?

Como que acordando de longo sono, olhou para Míriam e rispidamente interpelou-a:
- Como é, saco de carvão? Esta merda nunca mais fica limpa? Gosse! Fora daqui!

Pami sentiu enregelar-se e, rapidamente, seguiu a sua companheira, que saía adivinhando borrasca. Os militares continuaram de certeza a sua conversa. Mas para a prisioneira o que ouvira era suficiente, para ficar completamente baralhada. O mundo apareceu-lhe, como imenso labirinto, bem definido entre dois pólos invisíveis: O Princípio e o Fim.

Não era a primeira vez que a conversa dos militares a fizeram raciocinar sobre este tema da guerra. Nas conversas habituais do varandim, tinha assistido a um aceso debate sobre a política portuguesa para as colónias Portuguesas em África, e ouvira perfeitamente falar sobre Amílcar Cabral.

Recordava na altura ter Rafael referido que um seu amigo tinha estudado engenharia com o líder do PAIGC, e que se referia a ele como sendo dos melhores alunos do seu curso de agronomia. Pena era ter-se ligado aos comunistas de Leste. Sobre este tema, não recordava quem tinha levantado o problema de não ter o PAIGC simpatias só nos países de Leste. Tinha até sido levantado o problema da Língua na Guiné, e a influência que os países de língua francófona, dada a sua proximidade, poderiam daí retirar algum partido, resultante do laxismo português. Ouviu muito mais sobre a questão colonial (províncias de Portugal). Inclusive, o Gonçalo, falar da estupidez de não ter sido tomada em conta a posição de Norton de Matos, sobre Angola. Sobre este caso, Pami por desconhecimento absoluto não pôde retirar conclusões.


(ii) Pami, com sintomas de gravidez, vai com o Furriel Rafael... em português


Aproximava-se a época das chuvas. Pami começou a sentir-se um pouco estranha, tinha vómitos pela manhã, o ciclo menstrual desapareceu-lhe e os seus pequenos seios começaram a crescer. Preocupada a prisioneira, pelos indícios verificou que estava grávida. Entrou em pânico, quando compreendeu que transportava no ventre, um filho ou filha, do militar branco.

Como seria? Que fazer perante esta situação?... Não poderia dizer a ninguém. Mas como esconder tal situação? Falar com Míriam e contar toda a verdade? De certeza esta ficaria com ciúmes, e a amizade terminaria. E mais grave o furriel Rafael ficaria logo a saber. E se contasse ao furriel ou ao alferes? Qual seria a reacção? Rafael era amigo do Gonçalo! Incerteza como reagiria! Agora, sim, sentia-se num dilema, turbilhão de ideias. Como poderia ser compreendida pela guerrilha? Certo era que não poderia viver assim sem comunicar com alguém.

Passada que foi uma noite sem fechar os olhos, e com uma agitação incontrolável na sua mente, teve uma resolução, chamou Míriam, e solicitou-lhe, para interceder junto do furriel Rafael, pois queria falar com ele. Aquela riu perdidamente, e perguntou:
- Sanhá, tu não sabe fala potuguês! Como fala tu com furiel? Quê qui tu quere fala cum ele?- perguntou com desconfiança.

A prisioneira informou de que não aguentava mais a situação, e queria que o furriel a interrogasse, para depois a matar, ou mandar embora.

Míriam falou com o furriel, e este informou que ia falar com o alferes Telmo. Para resolver o assunto. Pela tarde, apareceu um milícia, que mandou a prisioneira acompanhá-lo, e seguiram para a casa dos interrogatórios. O milícia mandou sentar Pami, ele também se sentou no chão. Passado um bom bocado, apareceu o furriel só, sem arma, vestindo roupa civil. Calça cinzenta e camisa branca. Deixara crescer a barba novamente, mas agora estava um pouco mais gordo. Retirou um maço de cigarros do bolso da camisa, e ofereceu um ao milícia e retirando outro para ele, acendeu com o isqueiro, primeiro o dele, e depois o do milícia. Olhou para a prisioneira, e comunicou ao milícia:
- Diz-lhe lá que já não me lembrava dela como prisioneira! Mas que está mais gorda e mais bonita! Pergunta-lhe se está satisfeita com os soldados de Cufar!

Antes do milícia fazer a tradução, a prisioneira retorquiu em crioulo perfeito:
- A mim fala só cum furriel!

Este ficou um pouco desorientado, ao ouvir a prisioneira, e demoradamente reteve o olhar no coto da mulher. Olhou para a cara da mesma e ordenou ao milícia:
- Vai embora! Eu falo então com ela!

O milícia saiu, o furriel sentou-se no único banco existente na casa. Começou a fazer argolas com o fumo do cigarro, com o olhar e pensamento concerteza distante. Voltou a olhar para a prisioneira que, angustiante, aguardava a oportunidade da autorização para falar. De repente disparou:
- Quê qui bó miste?

Pami olhou para o furriel, duas gotas caíram-lhe dos olhos e pronunciou:
- Eu peço perdão, eu falo português!

O furriel rápido como um felino, deu um salto deixando cair o banco. Instintivamente, levou a mão direita à anca, como se procurasse a pistola. Notava-se que tinha ficado desorientado. Olhando constantemente para a prisioneira, deu uns passos na sala - como que fera a preparar o salto sobre a presa - sempre fumando. Até que parando levantou o banco, voltando a sentar-se, e calmamente interpelou:
- Não estou a compreender, vamos com calma! Repete lá o que disseste?
- É verdade!... Falo português, e possuo a quarta classe de escolaridade, tirada na escola missionária de Catió. Peço perdão por ter escondido, mas tinha medo que me matassem. O meu nome verdadeiro é Pami Na Dondo. Sanhá Na Cunhema era minha mãe que faleceu em Cadique há um ano e pouco. O meu pai é Pan Na Ufna e meu marido Malan Cassamá, se ainda for vivo.

Estupefacto, o furriel mandou a prisioneira falar e contar tudo. Enquanto Pami ponto por ponto narrava a sua vida, o militar em silêncio fumava, acendendo cigarros uns nos outros. Incrédulo, ouvia, parecendo o pensamento estar muito longe. A narrativa da destruição da escola de Flaque Injã fê-lo olhar para a prisioneira, que agora falava e chorava. Pami ia começar a narrar alguns episódios da sua estadia como prisioneira no aquartelamento. Mas foi interrompida pelo furriel.
- Ficaste contente quando o Gonçalo morreu, na noite que te levou para a cama?

Pami ficou sem saber que responder e admirada pelo militar saber que o amigo a tinha violado. Escondendo o estado de gravidez em que se encontrava, num rasgo de audácia, perguntou:
- Como sabe?
- Sei tudo o que se passou nessa noite, há soldados que viram e a Míriam contou-me tudo. Estás ou não contente por ele ter morrido?
- Fiquei contente nesse dia, sim! Não o nego. Mas hoje não sei! Estou muito confusa! Furriel, por favor, eu quero terminar agora!... Mate-me! Eu já não sirvo para nada. Nem para os militares, nem para o PAIGC. Quero mesmo acabar. Mate-me ou mande matarem-me! A partir deste momento, só o meu pai me poderá compreender, Malan meu marido dificilmente o fará.

Rafael deitou fora a ponta do último cigarro restante do maço e apagou-a com a ponta da bota de lona. Olhou fixamente a prisioneira, e disse-lhe:
- Malan Cassamá já não existe! Foi abatido em Flaque Injã quando ao servir de guia tentou fugir.

Pami retorquiu:
- Tentou a fuga ou mandaram-no fugir?
- Sinceramente não sei dizer! Mas daria no mesmo. Após tudo isto tenho a certeza que não és assim tão ingénua e ignoras a situação em que nos encontramos. Sabes perfeitamente que estamos na opção zero! Quem não mata, morre! Que alternativas existem?

A prisioneira, sentindo o coração apertado, com aquela verdade tão dura respondeu:
- Sim! Só que nós morremos por uma causa nobre e justa, queremos ser livres e donos da nossa Terra!
- Tens razão! Só que nós não queremos morrer e, para isso acontecer, a única lógica concerteza é matar. Quem achas que sofre mais? A mãe de Malan Cassamá ou a mãe do Gonçalo? Há possibilidades de medir a dor e o sofrimento de qualquer mãe pela morte de um filho?... Pode um homem ser a maior peste do mundo, mas para a sua mãe ele será sempre o seu filho. Aqui há coisas concretas, não podemos brincar. Mesmo que queiramos não podemos fugir à realidade.


(iii) Rafael, armado de G3, leva Pami para o mato, sozinha com ele. Pami, grávida em resultado da violação, implora ao Lassa para que mate


Pami não respondeu, chorava copiosamente. O furriel levantou-se e disse-lhe, saindo:
- Esperas aqui que eu volto já.

Saiu, e a professora guerrilheira continuou chorando, completamente destroçada. Totalmente em farrapos, o seu cérebro ia tentando recompor algumas coisas. Malan morto! E seu pai, ainda seria vivo? Apenas existia uma indecisão. Era a corrente que se transmitia do seu ventre ao pensamento.

Teria ela também o direito de decidir qual o caminho do ser que transportava? Reconhecera já raiva com ela própria, ao tontamente sorrir, acariciando o ventre. Sentia momentos de incerteza, sobre o gosto do que transportava.

Passados alguns minutos o furriel regressou. Tinha envergado uma camisa camuflada, por cima da camisa branca. No ombro em bandoleiro de cano para baixo, trazia uma espingarda G3. Abriu a porta, e sem olhar, disse:
- Vamos! Segue-me!

Abandonaram o quarto de interrogatório, e o furriel dirigiu-se para a porta de armas seguido da professora de Flaque Injã. À saída da porta de armas, o soldado de sentinela olhou e falou:
- Vai comê-la, ou entregá-la ao papá do céu? Veja lá, meu furriel, mas é se ela lhe rouba a arma, enquanto está matando a fome!.
- Vai-te foder! Porco de merda! - foi a resposta do furriel.

Seguiram junto ao arame farpado e depois divergiram para o carreiro que dava acesso à lagoa, entrando na picada que a circundava. Pami sentia o corpo todo em demente tremura, e os seus passos seguindo os do militar eram já inseguros e incertos. Recordante, ouviu o padre Francelino narrando os passos de Cristo, coroado de espinhos arrastando a Cruz, a caminho do Gólgata. Tentou rezar o Pai-nosso em sinal de perdão. O furriel andou uns cento e cinquenta metros, e parou debaixo de uma árvore, carregada de ninhos de tecelões que, com o aparecimento dos intrusos, voaram, num grande chilrear.

O sol caía sobre o fundo da pista. Brevemente a noite africana apareceria com os seus sons e mistérios. Época de chuvas, o bonito luar de África, não apareceria mas sim as trevas e algum tornado. O furriel puxou a culatra da G3, e introduziu uma bala na câmara, rodando a patilha de segurança para tiro de rajada. Mandou sentar a prisioneira no chão, ao que esta obedeceu. Rafael olhou para a cara da rapariga, e sentiu qualquer coisa diferente de quando a interrogara pela primeira vez. Verificou em pormenor que a prisioneira apresentava a cara mais cheia, os seios agora bem visíveis pelo afastamento do pano, pareciam que tinham dobrado de tamanho, o olhar tornara-se meigo e brilhante de uma doçura estranha.

O militar procurou os olhos da prisioneira e fixando-os tentou penetrar no seu intimo, questionando-a!
- Que posso fazer por ti?
- Mata-me! - respondeu, firme, a prisioneira.
- Sabes que cometeste uma grande falta e erraste ao mentires nos interrogatórios. Podias ter colaborado e assim não morrerias. Os militares não te trataram bem?

A rapariga acenou que sim com a cabeça. Mas o militar pressentiu qualquer coisa na prisioneira, e, julgando que era a hora certa, insistiu:
- Fala! Há qualquer coisa estranha, que parece quereres dizer-me algo mais!?

Pami mudou de posição, e pôs-se de joelhos, como que em oração, olhos no chão, saíram-lhe estas palavras:
- Já não tenho solução, aqui ou na guerrilha, a minha vida já não vale nada, pelo que o melhor é morrer!

Uma torrente de lágrimas caía pela cara da pseudo-guerrilheira. O furriel já não olhava para a mulher, mas sim para o cair do sol por sob o ilhéu de Infanda, e ela continuava:
- Mata-me! É melhor assim, para mim e para ele, que o Deus do padre Francelino me perdoe.
- Não! Há alguma coisa errada no meio disto tudo. Conta! Conta toda a verdade!

Massacrava o furriel com perguntas. Agora já num choro em soluços, Pami de joelhos continuava: - É nula a solução, eu sei tudo sobre vós, já contei tudo, mas aparecer assim na guerrilha não vão acreditar. Vai ser o maior desgosto para o meu pai!
- Mas aparecer como? - ripostou o militar.
Completamente destroçada, Pami confessou:
- Eu fiquei grávida na noite em que morreu o Gonçalo! Nas minhas entranhas existe um ser, filho dele!

(iv) Rafael liberta finalmente Pami, que irá ter um filho de tuga, norto em combate. A mãe pôs-lhe o nome de Umberto Cassamá.


Uma rajada soou por sobre a lagoa de Cufar, e o seu eco redobrou na margem oposta. As aves que se alimentavam, nas águas calmas, levantaram voo em gritos de aflição.

Pami pareceu sentir o seu corpo trespassado por milhares de projécteis, e o seu cérebro apenas definiu o fim. Passaram uns segundos eternidade. A mulher levantou os olhos, e olhou para Rafael. Este continuava a olhar o pôr-do-sol, e sobre a rala e negra barba, apareciam agora gotas de orvalho caídas da fonte de seus olhos. A arma mantinha-se fumegante, virada para os céus.

Pami jamais sonhara ver aquele homem duro comovido. O militar baixou-se, pegou na guerrilheira pelos braços, e ergueu-a. Voz embargada, falou para Pami mulher criança:
- Se quiseres ficar connosco, podes ficar! Ninguém te tratará mal. Se achares melhor ires ter com o teu pai, vai! Perdoa ao Gonçalo, e se for um rapaz não te esqueças de lhe por o nome de Humberto! Aqui em Cufar todos te julgarão morta! Nunca te arrependas de ser uma mulher livre! O teu pai saberá compreender-te! Vai!...

Completamente atónita, Pami Na Dondo, guerrilheira e professora de Flaque Injã, não queria acreditar no que ouvia do militar. Começou a caminhar no sentido do fundo da pista, de regresso ao desconhecido. Cinquenta metros à frente, sentiu na coluna um arrepio de frio e a sensação que iria receber uma rajada pelas costas, - o furriel não iria cometer uma traição - e virou-se para ao menos morrer de frente. Ajuizou mal. Apenas viu o militar de costas, caminhando em direcção ao aquartelamento.

Míriam tinha razão, Rafael nunca seria capaz de matar mulher. Só em combate ele poderia matar alguém. Teve vontade de voltar atrás correndo e pedir perdão ao militar.

Ao entrar na porta de armas, a sentinela brincou com o furriel:
- Aquela, já vai dormir com os anjinhos hoje!? Amanhã vai dar um belo pequeno-almoço aos jagudis!

O furriel, sem olhar repostou:
-Sim, aquela voltou a ser uma mulher livre!

No fundo do carreiro, Pami contornou a pista e dirigiu-se para a mata de Cufar Novo. Fez-se noite....

Época de chuvas, completamente encharcada, Pami na Dondo, vagueou perdida pelas matas de Cufar Nalu, Camaiupa Cachaque e Cabolol. Passados dois dias, num carreiro junto ao rio Quaianquebam, próximo onde Gonçalo fora abatido, um grupo de guerrilheiros, encontrou-a caída completamente exausta.

26 de Novembro de 1966, algures na mata do Cantanhez no Sul da Guiné, nascia Umberto Cassamá, filho de Pami na Dondo, e neto de Pan Na Ufna. No mesmo dia, os Lassas desembarcavam do navio Niassa no Cais de Alcântara em Lisboa.

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes anteriores desta série >

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2293: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (1): Os bastidores de um romance (Luís Graça / Mário Fitas)

23 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2298: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (2) - Parte I: O balanta Pan Na Ufna e a sua filha (Mário Fitas)

28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2307: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (3) - Parte II: A formação político-militar (Mário Fitas)

5 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2328: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (4) - Parte III: O amor em tempo de guerrilha (Mário Fitas)

10 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2340: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (5) - Parte IV: Pami e Malan são feitos prisioneiros (Mário Fitas)

18 de Dezembro de 2007 > Guine 63/74 - P2363: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (6): Parte V: O primeiro interrogatório da prisioneira (Mário Fitas)

30 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2391: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (7) - Parte VI: Malan é entregue à PIDE de Catió (Mário Fitas)

16 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2443: Pami Na Dono, a Guerrilheira, de Mário Vicente (8) - Parte VII: O prisioneiro Malan é usado como guia (Mário Fitas)

5 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2506: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (9): Parte VIII: Os demónios étnicos (Mário Fitas)

20 de Fevereiro de 2008> Guiné 63/74 - P2560: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (10) - Parte IX: A prisioneira é violada...


(2) Resumos dos postes anteriores:


(i) A acção decorrer no sul da Guiné, entre os anos de 1963 e 1966, coincidindo em grande parte com a colocação da CCAÇ 763, como unidade de quadrícula, em Cufar (Março de 1965/Novembro de 1966)…

No início da guerra, em 1963 Pan Na Ufna, de etnia, balanta, trabalha na Casa Brandoa, que pertence à empresa União Fabricante [leia-se: Casa Gouveia, pertencente à CUF]. A produção de arroz, na região de Tombali, é comprada pela Casa Brandoa. Luís Ramos, caboverdiano, é o encarregado. Paga melhor do que a concorrência. Vamos ficar a saber que é um militante do PAIGC e que é através da sua influência que Pan Na Ufna saiu de Catió para se juntar à guerrilha, levando com ele a sua filha Pami Na Dono, uma jovem de 14 anos, educada das missão católica do Padre Francelino, italiano.

O missionário quer mandar Pami para um colégio de freiras em Itália mas, entretanto, é expulso pelas autoridades portugueses, por suspeita de ligações ao PAIGC (deduz-se do contexto). Luís Ramos, por sua vez, regressa a Bissau, perturbado com a notícia de que seu filho, a estudar em Lisboa, fora chamado para fazer a tropa.

É neste contexto que Pan Na Una decide passar à clandestinidade, refugiando-se no Cantanhês, região considerada já então libertada.

(ii) De etnia balanta, educada na missão católica, Pami Na Dondo, aos catorze anos, torna-se guerrilheira do PAIGC. Fugiu de Catió, com a família, que se instala no Cantanhês, em Cafal Balanta. O pai, Pan Na Ufna entra na instrução da Milícia Popular. Pami parte, com um grupo de jovens, para a vizinha República da Guiné-Conacri para receber formação político-militar, na base de Sambise. O pai, agora guerrilheiro, na região sul (que é comandada por João Bernardo Vieira 'Nino') , encontra-se muito esporadicamente com a filha. Num desses encontros, o pai informa a filha de que a mãe está gravemente doente. Pami fica muito preocupada e quer levá-la clandestinamente a Catió, enquanto sonha com o dia em que se tornará companheira do pai na Guerrilha Popular.

Entretanto, o destino prega-lhe uma partida cruel: na instrução, na carreira de tiro, tem um grave acidente, a sua mão esquerda fica decepada. No hospital, conhece Malan Cassamá, companheiro de guerrilha de seu pai, que recupera de um estilhaço de morteiro, que o atingiu na perna, no decurso da Batalha do Como, em Janeiro de 1964 (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964, levada a cabo pelas NT) . Malan fala a Pami da coragem e bravura com quem seu pai se bateu contra os tugas.

Pami é destacada para dar aulas ao pessoal do Exército Popular e da Milícia Popular, em Flaque Injã, Cantanhez. No dia da despedida, canta, emocionada, o hino do Partido, 'Esta é a Nossa Pátria Amada', escrito e composto por Amílcar Cabral. Segue para Flaque Injã, com o coração em alvoroço, apaixonda por Malan Cassamá. De regresso à guerrilha, a Cansalá, Malan fala com o pai da jovem, e de acordo com os costumes gentílicos, Pami torna-se sua mulher.

(iii) Na actual região de Tombali (Catió), no sul da Guiné, o PAIGC, logo no início da guerra, ganha terreno e populações (nomeadamente, de etnia balanat). A resposta das autoridades portuguesas não se fez esperar, com uma grande contra-ofensiva para reconquista a Ilha do Como (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964).

Entretanto, começam a chegar a Catió chegam reforços significativos. O Cantanhês, zona libertada, assusta o governo Português. Em contrapartida, no PAIGC, Nino, o mítico comandante da Região Sul, manda reforçar os acampamentos instalados nas matas de Cufar Nalu e Cabolol.

Em finais de 1964, Sanhá, a mãe de Pami, morre de doença na sua morança na tabanca de Cadique Iála. O guerrilheiro Pan Na Ufna, acompanhado da sua filha, faz o respectivo choro, de acordo com a tradição dos balantas.

Em Março de 1965, os homens da CCAÇ 763 - conhecidos pela guerrilha como os Lassas (abelhas) - reconquistam ao PAIGC a antiga fábrica de descasque de arroz, na Quinta de Cufar, e respectiva pista de aterragem em terra batida. Nino está preocupado com a actuação dos Lassas, agora instalados em Cufar, juntamente com o pelotão de milícias de João Bacar Jaló, antigo cipaio, agora alferes de 2ª linha.

Entretanto, Pami e Malan continuam a viver a sua bela estória de anor, em tempo de guerra, de sacrifício e de heroísmo. Ela, instalada em Flaque Injá, onde é professora. Ele, guerrilheiro, visita-a sempre que pode.A 15 de Maio de 1965, os Lassas destroem o acampamento do PAIGC na mata de Cufar Nalu. A guerrilha sofre baixas mas, durante a noite, consegue escapar com o equipamento para Cabolol. Na semana seguinte, os militares de Cufar tentam romper a estrada para Cobumba. Embrenham-se na mata de Cabolol, destroiem várias tabancas na zona.

Em princípios de Junho de 1965, os Lassas (abelhas) vão mais longe, destruindo o acampamento de Cabolol. Em Cafal, o comando político-militar do PAIGC está cada vez mais preocupado. Em Julho, Pami chora de dor, raiva e revolta ao ver a sua escola destruída, em Flaque Injã. Grande quantidade de material desaparece ou fica queimado. As casas de Flaque Injã ficam reduzidas a cinzas.

Mas a luta continua... Psiquicamente recuperada, a população começa a reconstrução de Flaque Injã e Caboxanque. A guerrilha recebe mais reforços e armamento novo. Pami entra voluntariamente numa coluna de reabastecimento que a leva à República da Guiné. Segue o corredor de Guilege, e sobe de Mejo para Salancaur, daqui para o Xuguê [Chuguè, segundo a carta de Bedanda,] terra de seus avós paternos. Desce até Cansalá, onde se encontra com seu marido. Não encontra seu pai, pois este fora transferido para o Cafal, e ali integrado numa companhia do Exército Popular.

Em meados de Agosto de 1965, Pami Na Dondo desce com Malan Cassamá até Cobumba. Malan e o seu grupo levam a cabo várias acções contra a tropa e o quartel de Bedanda. O grupo regressa a Cansalá. Uma delegação da OUA visita as zonas libertadas, a convite do PAIGC.

(iv) Madrugada de 24 de Agosto de 1965, Pami e Malan dormiam nos braços um do outro quando a tabanca, Cobumba, sofre um golpe de mão do exército português, que tem a assinatura dos Lassas.

No grupo de prisioneiros que são levados para Cufar, estão Malan e Pami que terão destinos diferentes. Pami estão integrada num grupo de cinco mulheres e procura nunca denunciar a sua condição de professora. Em caso algum falará recusará falar em português ou em crioulo. Mas os seus olhos de águia vão observado tudo, no caminho até ao quartel dos Lassas. No rio Cadique o grupo embarca em lanchas da Marinha. O Alferes Telmo não deixa que ninguém toque nas mulheres. Fala em psico, uma palavra que Pami desconhece. O grupo é entregue à guarda ao Furriel Mamadu.

Pami mal reconhece a antiga fábrica de descasque de arroz, a Quinta de Cufar, onse se instalaram os Lassas. Os prisioneiros são recebidos por militar dos óculos que, mais tarde Pami vem a saber tratar-se de Carlos, O Leão de Cufar, comandante do aquartelamento. Homens e mulheres são instalados em sítuios diefrentes. Malan e Pami entrecuzram o olhar, sem se denunciaram. Sabem que dizem ali adeus para sempre. Lágrimas nos olhos, Pami sente a dor da separação. Pami e as prisioneiros ficam à guarda da milícia de João Bacar Jaló [ou Djaló]. Recusa-se a comer, bebe só água. No dia seguinte, a vida no aquartelamento retoma o seu ritmo. Pami pode agora ouvir e até ver perfeitamente, por entre as frestas das paredes de capim ao alto entrançado com lianas, tudo o que acontece por fora da palhota onde tinha passado a noite.

(v) Começam os interrogatórios dos prisioneiros, em Cufar. Um soldado milícia, da tropa de João Bacar Jaló, vem buscar Pami. Pelo caminho, Pami vai-se preparando mentalmente para mentir aos seus captores e sobretudo para não comprometer Malan. Entretanto, com os seus olhos de águia, vai observando e registando todos os pormenores da vida no aquartelamento dos Lassas.

Um milícia serve de intérprete. O interrogatório é conduzido pelo Alferes Telmo, acompanhado pelo Furriel Rafael (de alcunha, Mamadu), um e outros reconhecidos de imediato pela Pami. Respondendo apenas em balanta, diz chamar-se Sanhá Na Cunhema (nome da mãe) e ter nascido na Ilha do Como. Os militares decidem mudar de táctica. Rafael encosta-lhe o cano da pistola ao seu ouvido, e pergunta-lhe, através do intérprete, o que aconteceu à sua mão esquerda... Um pouco trémula, diz que, quando era criança, fora mordida por uma cobre, tendo o pai sido obrigado a cortar-lhe a mão para a salvar...

Pami parece não convencer os seus interlocutores. Os dois Lassas entram em provocações de teor sexual, pensando tratar-se de uma eventual prostituta ao serviço da guerrilha... O interrogatório irá continuar nos dias seguintes. Pami regressa, exausta, para junto das suas companheiras de infortúnio. Mas, ao mesmo tempo, sente-se orgulhosa por. neste primeiro round, não ter traído os ideais de seu pai, Pan Na Ufna e de seu marido, Malan, valentes guerrilheiros do PAIGC.

(vi) Pami está exausta e confusa, depois do primeiro interrogatório com os rangers Telmo e Rafael (ou Mamadu). Próximo da hora de almoço do dia seguinte, Pami foi levada novamente para ser interrogada. Só que para surpresa sua, o interrogatório não era com os mesmos do dia anterior. Sente que tem de ter muito cuidado. Não pode cair em contradição, ou ceder qualquer pista, pois não sabe nada sobre o que está a acontecer ao seu marido Malan Cassamá, e agora tinha muitas mais razões para a sua inquietação, resultante das revelações feitas pelos seus inquiridores. Sim, ficou a saber que Telmo e Rafael pertenciam a tropas especiais. Porquê a sua inclusão numa companhia normal do exército colonialista, interroga-se ela?

Entretanto Malan é denunciado como guerrilheiro do Exército Popular e é entregue à PIDE de Catió. A professora apercebe-se que os seus companheiros, homens, estão a ser interrogados com a ajuda de cães para aterrorizar mais. Entre as mulheres prisioneiras, já teria havido confissões. Uma, pelo menos, foi alvo de abusos sexuais. As que colaboram com os Lassas são soltas.

Entretanto, a balanta Pami torna-se confidente de fula Miriam e sente um ódio profundo pelo Furriel Rafael (Mamadu, segundo o seu nome de guerra). Os Lassas, por sua vez, voltaram a ir ao outro lado do Rio Cumbijã. Meta, casada com um milícia e amiga da Miriam, contou que tinham andado por Cadique Iála, e que tinham morto muita gente, e queimado as casas todas. E não tinham tido nem mortos nem feridos.

Pami apercebeu-se que de facto as coisas deveriam ter corrido bem, porque houve grande festa no Comando. Mas também poderia ser festa de anos do furriel Rafael, como afirmara Miriam. Era certo que quando algum furriel ou alferes fazia anos, havia sempre grandes festas. Era uma forma de criar corpo de unidade, delineado pelo macaco velho do Leão de Cufar, o chefe dos Lassas.

(viii) Em novo interrogatório, o Furriel Rafael ameaça matar a professora de Flaque Injã, quando esta, já esquecida dos interrogatórios, é levada de novo, em princípios de Setembro de 1965, à presença do temível triunvirato: Queba, o intérprete, o alferes Telmo (com o seu caderno), e o furriel Rafael (com a sua pistola).

Embora aterrorizado com as ameaças do Furriel Rafael (que parece fazer bluff...). Pami teme sobretudo que os Lassas façam de novo uma operação do outro lado do Rio Cumbijã, utilizando o seu marido, Malan, como guia...

Voltando de novo à sua morança-prisão, Pami apercebe-se de que nem todos os Lassas estão ali, na guerra, de livre vontade... Os seus piores receios, entretanto, materializam-se, ao reconhecer o seu Malan na silhueta do negro, de corda atada ao pescoço de um negro, conduzido por um Lassa, a caminho da porta de armas, possivelmente para srevir como guia numa operação... Pelo burburinho que perpassa pelo aquartelamento, Pami toma conhecimento de que os Lassas estão em operações lá para os lados de Caboxanque... Um avião T-6 é atingido, mas o seu o piloto consegue fazer uma aterragem de emergência em Cufar...

No regresso dos Lassas ao quartel, Pami sabe, pelas conversas que ouve junto dos milícias, eles ter-se-iam esquivado a uma emboscada, junto ao cais de Caboxanque. Detectando a segurança à retaguarda, os Lassas mataram esses elementos e, saindo do caminho que vai dar ao cais, divergiram para a bolanha para não entrarem na emboscada, que deveria ter muita gente do PAIGC. Mas sobre Malan não consegue saber mais nada de concerto.

Uns dias mais tarde, Míriam contou a Pami tudo o que tinha acontecido, conforme lhe descrevera o furriel Mamadu. O pessoal do PAIGC mais uma vez tinha sido humilhado, pelos Lassas. Tinha sofrido grandes baixas, vários mortos e muitos feridos. A professora de Flaque Injã chorou e pela primeira vez o desânimo entrou no seu pensamento. Seria que o sonho de uma Pátria era irrealista?


(viii) Caminhamos para os finais de 1965. Pami têm agora duas novas amigas, com quem conversa mais amiuadamente, as lavadeiras Miriam e Meta, esta última mulher de um velho milícia. Os Lassas já se habituaram à presença de Pami que continua a observar e registar mentalmente tudo o que se passa à sua volta. Dá conta da existência de um furriel de nome Gonçalo, que passa a vida a falar com o seu cão cufar. No final do ano, aparecem aviões a lançar toneladas de bombas sobre o Cantanhez. Os Lassas saem para uma operação em Darsalame. O Furriel Rafael é ferido e evacuado para o Hospital de Bissau. Miriam está chorosa e apreensiva. Leva Pami ao quarto do Furriel a quem lava a roupa e a quem faz favores sexuais. Pami fica intrigada com as fotografias que vasculha. As duas mulheres falam sobre as bajudas brancas do Furriel.

Agora já ninguém liga à prisioneira nem a importuna. Mas Pami fica triste certo dia, quando ouviu um soldado a ler, a outro, uma carta dos pais... A professora interroga-se sobre a condição humana e a estupidez da guerra. Com mais liberdade de movimentos e beneficiando da amizade de Miriam, Pami vai conhecendo melhor o quotidiano dos Lassas, as suas misérias e grandezas. Mas o que mais espicaçou a sua curiosidade intelectual foi uma longa conversa sobre os povos da Guiné, travada num círculo à volta do Leão de Cufar e dos seus colaboradores mais próximos. No final, fica a saber que Rafael tinha voltado do hospital…


(ix) A profesora do PAIGC esforça-se por consolidar a sua amizade a lavadeira, a jovem fula, Míriam, que está muito triste porque ninguém lhe dás notícias do seu furriel, enquanto ao mesmo tempo acalenta a ideia de o levar no Homem Grande, "para bala não entrar no corpo dele"... Entretanto, Rafael regressa do hospital. Miriam faz uma festa. A vida em Cufar continua, com a sua rotina de guerra... Um belo dia, Pami entra no quarto dos furriéis, a convite de Miriam, vê fotografias de bajudas brancas e lê uma carta da mãe de Rafael... Inevitavelmente sente saudades da sua mãe, que morreu no mato...

Entretanto o Leão de Cufar, o comandante dos Lassas, vai para Bissau, para outra missão, sendo subtituído por um "capitão gordinho, com ar assustado"... Esta mudança de liderança vai fazer mal aos Lassas, e à sua prontidão para a guerra...

Na véspera de sair para mais uma operação, os Lassas estão tensos, agressivos, violentos. O Furriel Gonçalo acaba por forçar Pami a ter relações sexuais com ele, no seu quarto, com a cumplicidade de Miriam. A resistència de Pami é inútil...

No dia seguinte, Gonçalo morre em combate.... Os Lassas estão destroçados. Como retaliação pelos seus desaires, bombardeia o Cantanhez com a sua artilharia pesada. Pami volta a temer as represálias dos Lassas. Teme pela sua vida, enquanto assiste a cenas tristes, em que os Lassas exibem comportamentos estranhos, regressivos, e continuam a morrer ou a ir para o hospital em Bissau...

__________

Nota: Dirigida ao Mário Fitas

Ao ler o blog P2593 do Luís Graça, sobre a guerra da Guiné, encontrei uma foto que é sua e está identificada como " uma enfermeira". O nome dessa enfermeira é Ivone, se pretender pôr lá o nome pode fazê-lo. (...)

Jorge Félix
ex-Alf Pil Aviador

Guiné 63/74 - P2592: Voando sob os céus de Bambadinca, na Op Lança Afiada, em Março de 1969 (Jorge Félix, ex-Alf Pil Av Al III)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Alouette III, a descolar do heliporto local. O piloto era o Coelho, diz a legenda do fotógrafo, o Humberto Reis, ex-Fur Mil Op Esp, CCAÇ 12 (1969/71). O Humberto Reis conviveu, de muito perto, com a malta da FAP, o que lhe permitiu tirar algumas das melhores fotos aéreas que já aqui publicámos... Inclsuive ele julga conehcer o Joirge Félix, que o etrá desenrascado numa situaçãod e apuro em finasi de Julho ou princípios de Agosto de 1969, em Madinba Xaquili (1)...

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada (2, 3). O temível helicanhão. Um Alouette III, com canhão lateral de calibre 20 mm. No mato, em operações, o helicóptero era o nosso anjo da guarda, como muito bem diz o nosso camarada Paulo Raposo que estve na Op Lança Afiada, como Alf Mil Inf da CCAÇ 2405 (2). A presença do heli e sobretudo do helicanhão era sempre securizante e protectora. Até ao dia, nos primeiros meses de 1973, em que a nossa supremacia aérea foi sa ser contestada pelos foguetões terra-ar Strella... (LG).


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada. O Alf Mil Paulo Raposo, da CCAÇ 2405, junto a um dos helicópteros. O número de evacuações, por insolação, desidratação, doença, ataque de abelhas e esgotamento foi enorme: mais de uma centena de casos (3)

Fotos: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados


1. Mensagem do novo habitante da nossa Tabanca Grande, Jorge Félix (que foi Alf Mil Pil Aviador de helicóptero Al III, Guiné , 1968/70) (1)

Caro Luís Graça.

Ontem eram 5 da madrugada , hoje são 4:50, voos noturnos que a idade nos vai permitindo ter.

Não é facil contar histórias da nossa Guiné, nunca conto, e julgo que nem quero contar, no entanto o vosso Blog é ganda ronco e merece uma colaboração. Fotos, tenho muito poucas, foram-se para os álbuns dos filhos e estão muitas perdidas. Espero que na continuidade da nossa correspondência apareçam fotos, sabe-se lá.

As recordações contadas a mais que uma voz, porque o tempo dilui muita coisa, podem vir a ser mais reais.

... No seu tempo fui a Bambadinca no dia 12 de Março de 1969. Na caderneta de voo consta o seguinte: Bs- Buba -Bambadinca (1 hora 40 minutos). Depois de estar em Bambadinca fiz TGer (transporte geral) e Tevs (transporte evacuações)- Bambadinca-Zops (zona operacional) com cinco aterragens e a duração de 1 hora e 40 minutos.

No mesmo dia mais 35 minutos outro voo de Tevs Zops-Bambadinca, duas aterragens. Mais uma hora e 20 minutos voo de TGer - Tevs Bambadinca-Mansambo-Zops, 10 aterragens. Mais um voo de 30 minutos com duas aterragens a fazer Tger e Tevs. Finalmente para terminar esse dia viagem de 15 minutos para Bafatá, onde devo ter dormido. Este dia longínquo de 12 de Março de 69 voei seis horas nos Céus da sua Bambadinca.

Virei a página da caderneta e vejo que no dia 13 foi a mesma "movimentação" , 25 aterragens e 3 horas de voo; no dia 14 Bafatá-Bambadinca-Zops duas horas e meia de voo; dia 15 mais seis horas e 15 de voo com Tevs e Tger para a Zops; no dia 16 Bambadinca- Bafatá- Zops com duas horas de voo. Voltei para Bafatá numa DO27. No dia seguinte vim para Bissau. Viagem que demorava mais ou menos 5o minutos.

Isto tenho eu aqui escrito mas não me recordo que manobras foram estas e com quem.(De momento estou com arrumações e tenho o scanner perdido, logo que acabe as obras, vou lhe enviar estas páginas da caderneta).

Será que a memória do seu Blog terá imagens e relatos destes dias ? Alguém se lembra o que aconteceu nesses dias? (3) Tenho a ideia que foi numa dessas operações que um exame de abelhas entrou por uma porta do Heli e saiu por o outro lado sem incomodar ninguém.

Não é estranho que me recorde disto e nada mais ...

Já são seis horas, vou me deitar.

Boa viagem para a terra das bolanhas, beba lá um copo por mim, dê saúdades àquele Povo.
Jorge Félix

__________

Notas de L.G.:

(1) Mensagem que recebi hoje, do Humberto Reis:

(...) Este nosso novo tertuliano Jorge Félix, ex-alf mil pil av, julgo que era um que andava quase sempre com botas de cano alto. O comandante da esq 123 era o cap Cubas, de alcunha o Canibalão, pois a esquadrilha era a de Os Canibais. O Cubas foi substituído em 70, se não me engano, pelo cap Morais da Silva, que chegou a ser CEMFA depois do 25 de Abril.

Se a memória não me falha, 39 anos depois, foi o Félix que me aterrou em Madina Xaquili, em Agosto de 69, e deu o alerta (tínhamos ficado sem rádio após a flagelação) de que necessitávamos de evacuações Y para os feridos graves e munições várias. Ele aterrou porque viu os nossos sinais de cá de baixo e desconfiou que tinha havido problemas (acertou).

Transportava alguns pára-quedistas que tinham nessa altura uma companhia em Galomaro, e foram eles que nos enviaram os primeiros cunhetes de munições para nos desenrascar Chegou-nos um héli 1 ou 2 horas depois com as munições e fez as evacuações dos 2 feridos graves que vieram para o HMP na Estrela.

Deve ter sido contemporâneo do ex-alf mil pil av (Al III) Solano de Almeida que eu conheci lá e o pai, comandante da TAP, conheci-o cá muito bem com o seu belo barco (gostava de andar no ar e na água).

É do tempo dele tb o ex-fur mil pil av Rui Branco que depois de vir de lá foi instrutor de voo no Aero Clube de Torres Vedras. Tb o Manuel Santana, ex-alf mil pil av que morava aqui em Sete Rios, foi do tempo dele.

Enfim tanta malta conhecida a quem perdi o rasto. Eu que tantas noites dormi lá na base e convivi com muitos deles, nunca mais soube nada. Pode ser que o Félix tenha contactos dessa malta do nosso tempo em comum, 69 e 70, e esteja disposto a repartir connosco algumas memórias daquela época. Contacta com ele nesse sentido. Ela mora aqui na zona de Lisboa? Tens um contacto telefónico? Se necessário podes dar o meu 918 776 460 (esquece o outro 919 039 672, que só me dá problemas) (...).

Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2008> Guiné 63/74 - P2587: Gandembel: Será que ainda estão vivos os jovens que eu evacuei, em Outubro de 1968 ? (Jorge Félix, ex Alf Mil Piloto Aviador)

(2) Vd. poste de 6 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli

(...) A mata do Fiofioli era uma mata bem controlada pelo inimigo. Era um tufo rodeado de bolanha por todos os lados, fazia lembrar uma ilha.

Para se desalojar o inimigo, preparou-se uma grande operação, prevista para durar oito dias, com várias companhias envolvidas. Todo o abastecimento tinha de ser feito por heli. E lá fomos mais uma vez.

Houve um dia que os helis não conseguiam descer para nos abastecer de água devido à vegetação densa. Passámos muita sede. Nesse dia tivemos de beber água de um charco lamacento. Como? Tirámos o quico, nome que dávamos ao boné, que estava todo sebento, enchemo-lo de lodo, e, por baixo, íamos apanhando a humidade às gotas. Só acredita quem por lá passou.

(...) As baixas até ao fim da operação foram muitas, umas por exaustão, outras por oportunismo. Um dos meus rapazes, que transportava o cano da bazuca, a meio da operação, quando passou por perto de um heli, meteu-se nele para ir embora, deixando no chão o tubo abandonado.

(...) De lá trouxe um livro do inimigo, que ensinava as crianças a ler. Depois foi o regresso. Mais uma penosa caminhada. Os helis andavam no seu vai vem abastecendo-nos de água e rações de combate. Tínhamos de ser nós, os oficiais, a tomar conta da água e a distribuí-la por todos igualmente. Os helis eram assaltados se não tivéssemos organizado este sistema. (...)


(3) Sobre a Op Lança Afiada (8-18 de Março de 1969, Sector L1, Bambadinca), vd. postes de:

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII: Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli (Luís Graça)

(...) Iniciada em 8 de Março de 1969 com a duração de 11 dias, a Op Lança Afiada foi uma das grandes operações que se realizaram na época, ainda no início do consulado do brigadeiro António Spínola (1968-73), um mês depois da trágica retirada de Madina do Boé.

A Op Lança Afiada envolveu cerca de 1300 homens, entre militares, milícias e carregadores. Houve cerca de duas dúzias e meia de flagelações das NT por parte dos guerrilheiros, os quais no entanto se furtaram ao contacto directo.


As populações sob controlo do IN passaram, com alguma segurança, para o outro lado do rio Corubal. Os fuzileiros não puderam ou quiseram participar nesta operação, que também não envolveu outras tropas especiais (comandos e páras). Foi, pois, uma operação só com tropa macaca, embora a nível de regimento, sendo comandada por um coronel (Hélio Felgas). Quase um terço dos efectivos eram carregadores !!!

Pensava-se que em Mina, junto ao Rio Corubal, estaria sedeado o Comando do Sector 2, da estrutura político-militar do PAIGC. Pensava-se também que havia um grande hospital, com médicos e enfermeiras... cubanos!

Do ponto de vista militar, a operação foi um bluff... Em contrapartida, houve inúmeras evacuações (n=110) dos nossos combatentes, devido a problemas de desidratação, desnutrição, esgotamento físico e stresse psicológico...


É interessante a análise do autor do relatório sobre os sucessos e os insucessos desta megaoperação de...limpeza.

Damos hoje início à publicação de alguns excertos desse relatório. Tratando-se de uma fotocópia de um documento dactilografado e possivelmente policopiado a stencil, com data de 1970, há erros e omissões que eu procurei colmatar ou corrigir, sempre que possível. Também substituímos algumas abreviaturas para tornar o texto mais legível para os paisanos ou os que não fizeram tropa nem estiveram na Guiné. L.G. (...)


9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas (Luís Graça)

Negritos, da responsabilidadfe do editor L.G.

(...) Dia D + 4 (12 de Março de 1969)

Os Dest A e B continuaram batendo a área 6 sem nada encontrarem.

Na área 4, o Dest B foi flagelado às 10H10 tendo sofrido um ferido ligeiro mas feito baixas confirmadas. Combinando a manobra com o Dest C, capturou 3 nativos e queimou diversas tabancas na área. O Dest C foi flagelado às 11H00 tendo 3 feridos ligeiros que não evacuou e fez um morto confirmado ao IN.

Quanto ao Dest E, dera a volta próximo da margem esquerda do Rio Buruntoni, queimara 2 toneladas de arroz numas casas junto ao caminho para Ponta do Inglês, capturara inúmeros animais domésticos e tivera contacto com o IN às 13H00, sofrendo um ferido que fora evacuado. Apreendera material ao IN.

O Dest F, agora reforçado por um Gr Comb do Dest G, devido às numerosas evacuações que tivera que fazer, mantinha-se emboscado a Norte da Foz do Rio Bissari. O resto do Dest G continuava emboscado a Norte do Galo Corubal. E os Dest H e I bateram a área 10, tendo a sua actuação sido prejudicada pela demora dos reabastecimentos e evacuações.

O milícia ferido em 111630 (gravemente, segundo o parecer do enfermeiro) só foi evacuado em 121315 embora os comandantes da Operação e do Agrupamento Táctico tivessem sido largados no local cerca das 9H00. Por razões desconhecidas, porém, o piloto não quis evacuar o ferido em nenhum das 2 vezes que lá foi deixar água.

Na margem oposta do Rio Corubal viam-se elementos IN que foram metralhados pelo helicanhão. A tabanca de Inchandanga Balanta ficou a arder.

Durante o incêndio de uma das tabancas entre Galo Corubal e Dando rebentaram inúmeras munições que provavelmente estavam escondidas no colmo dos tectos.

Os ataques das abelhas continuavam a mostrar-se mais perigosos que as flagelações IN pois o pessoal carregador tudo abandonava para fugir aos enxames que, nesta época, são extremamente agressivas.

Cerca das 13H15, num helicóptero insistentemente pedido, os comandantes da Operação e do Agrupamento Táctico foram transportados a Bambadinca juntamente com o milícia ferido, o qual seguiu para Bissau.

A deficiência do apoio aéreo em reabastecimentos, evacuações e recomplementos levou a fazer mensagens e a focar o assunto no RELIM [Relatório de Informações sobre a Actividade Operacional].


Dia D + 5 (13 de Março de 1969)


Os Dest A e B aproximaram-se de Tubacutá (área 5). Durante a noite anterior ouviram um motor dum barco fazendo travessias do Rio Corubal na região entre Queroane e Fiofioli. O movimento durara desde as 19H00 do dia 12 e as 4H00 do dia 13.

Os Dest C e D continuaram destruindo a enorme tabanca de Ponta Luís Dias, com uma grande escola onde havia muitos livros e cadernos. Por seu lado, o Dest C, às 7H30, destruíra cinco canoas em local com indícios de ter tido grande movimento durante a noite. Todos estes Dest apanharam e consumiram centenas de animais domésticos. Cerca das 19H30 o Dest E sofreu nova flagelação, tendo nove evacuados no dia seguinte.

Os Dest H e I detectaram e destruíram o acampamento IN de Gã Júlio, enquanto os F e G faziam o mesmo ao de Mina. Ambos estes acampamentos haviam sido recentemente abandonados. Tais como outros, ainda tinham comida quente. Este facto constou do comentário ao RELIM deste dia, no qual pedia o estabelecimento de emboscadas nocturnas na outra margem do Rio Corubal.

Neste dia houve uma reunião em Bambadinca com Sua Excia. o Comandante-Chefe e o Exmo. Comandante da Zona Aérea que disseram ao Comandamte da Operação estar a ser excessivo o esforço pedido à FA [Força Aérea]. Expondo-se como esses meios estavam a ser empregues.

Por outro lado Sua Excia. deu Directivas sobre a recolha do arroz IN. Ficou ainda estabelecido não proceder a quaisquer recompletamentos, excepto de oficiais e sargentos, a fim de aliviar os meios aéreos. (...)


9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli (Luís Graça)

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal (Luís Graça)

(...) Dia D + 8 (16 de Março de 1969)

Os Dest A, B e C actuaram entre Queroane e Mangai destruindo tudo à sua passagem. O que sobrara de Mangai ficou reduzido a cinzas. Foram ainda capturados 3 nativos e feitos 2 mortos confirmados.

Os Dest F, G e I voltaram a bater a mata do Fiofioli mas agora no sentido Leste-Oeste. Inicialmente, porém, deslocaram-se por indicação do guia à zona (C8-71) e aí do lado de lá da bolanha, e portanto já fora da mata do Fiofioli, encontraram espalhado pelo mato, além de novos documentos, importante e valioso material de guerra que deu para encher mais de dois helis.
Os Dest E e H bateram também no sentido Oeste-Leste e Sul da mata e foram acabar de destruir a tabanca de Fiofioli, capturando ainda muitas munições.

Nesse dia, às 10h30 houve nova reunião em Bambadinca com Sua Excia o Comandante-Chefe. Sua Excia informou que em virtude de ter de realizar uma operação noutro Sector, determinava a suspensão do apoio aéreo em 17 [de Março] e o embarque dos Dest A, B e C em Ponta Luís Dias nesse dia com destino ao Xime. Os outros Dest do Agrupamento Sul não seriam reabastecidos em 17. Que o seriam em 18 mas compreendeu-se mal pois, segundo Sua Excia, em 17 o esforço aéreo não poderia ser mantido e só seria deixado o heli de evacuações. No entanto, os Dest do Agrupamento somavam nessa altura mais de 750 homens que seria necessário reabastecer de água e alimentação (os Dest A, B e C somavam entre 450 e 500 homens). (...).

c. Apoio aéreo

Inicialmente o apoio aéreo, no que respeita a reabastecimentos, revelou-se deficiente. O facto de não ter sido cedido o heli ao Comandante da operação, dificultou a acção de comando e influiu nos rendimentos dos meios à disposição, pois previra-se que esse heli colaboraria com o das evacuações e com o dos reabastecimentos.

Além disso, a coordenação levou o seu tempo a rodar, o que é naturalíssimo pois não tem havido muitas operações como esta.

Em terceiro lugar, os meios aéreos não deram inicialmente o rendimento que se esperava, uns por avarias, outros por serem desviados para outras missões e outros por estarem na altura das inspecções e revisões.

A situação quanto ao apoio aéreo era a seguinte em 13 de Março de 1969, às 13H45 (MSG 735/I/BCAÇ 2852):

- 1 DO estava avariado havia 2 dias;
- O outro DO só começou a trabalhar às 10H00;
- O heli trabalhava pouco mais de 1 hora, seguindo para Bissau;
- O outro heli seguira às 08H00 directo de Bafatá para Bissau (parece que podia ter ido ficar a Bissau na véspera);
- O helicanhão saira para Bissau às 10H30, só regressando no dia seguinte às 11H00;
Os helis que haviam seguido para Bissau só foram substituídos cerca das 11H00 ; só depois desta hora, portanto, se regularizou o serviço de reabastecimentos e evacuações.

No dia 13 a actividade dos meios aéreos fornecidos para a operação foi a seguinte:

- A DO levantou de Bafatá para a área 9 [ Mina – Gã Júlio ]às 07H20 com o Comandante do Agrupamento Táctico Sul, o Major Negrão da FA e o Cap Lopes que ia assumir o comando do Dest G e ficou no Xitole; à tarde foi para Bissau;

- Os 2 helis levantarm às 07H30 com o comandante da operação para Bambadinca (serviço normal);

- O helicanhão, saúdo da zona de operações em 11 de Março, às 10H30, e regressado a 12, às 11H00, fez escolta ao heli de Sexa Comandante-Chefe; não prestou serviço à operação, que se tivesse conhecimento;

- A DO chegou de Bissau, foi a Piche buscar o Coronel Neves Cardoso para uma reunião em Bambadincas onde chegou às 11H00; à tarde voltoiu a levar a Piche o mesmo oficial.

Em 14 os helis chegaram a Bambadinca às 08H30 e só aqui é que se abasteceram (pelo menos um). Podiam tê-lo feito em Bafatá. No entanto, a situação melhorou por vários motivos. Primeiro, porque se acabou com os recomplementos. Segundo, porque a selecção natural fez baixar o número de evacuações. Terceiro, porque os meios aéreos ficaram mais tempo na zona da operação. Quarto, porque a coordenação ar-terra ganhou experiência e tornou-se por isso mais eficiente. (...)

Vd. ainda o poste de 31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

Guiné 63/74 - P2591: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (25): Notícia da Lusa (Virgínio Briote)

Simpósio Internacional de Guiledje
Notícia de Bissau
Lusa (transcrição com a devida vénia...)
Guiné-Bissau: Antigos combatentes portugueses e guineenses evocam batalha de Guiledje
Bissau, 27 Fev (Lusa) "Combatentes das forças armadas portuguesas e do movimento de libertação da Guiné-Bissau reúnem-se durante a próxima semana neste país africano para uma evocação do conflito armado em Guiledje, no sul do país.
Entre sábado e sexta-feira da próxima semana, os participantes no Simpósio Internacional de Guiledje visitam o antigo quartel desta localidade, no sul da Guiné-Bissau, e o acampamento Osvaldo Vieira, enquanto em Bissau decorrem a partir de segunda-feira debates, distribuídos por vários painéis.
A abertura do simpósio, na segunda-feira, num hotel da capital guineense, conta com a participação do Presidente da Guiné-Bissau, João Bernardo "Nino" Vieira, que fará uma intervenção, bem como de vários embaixadores, nomeadamente o de Portugal, José Manuel Paes Moreira.
Na terça-feira, vários ex-combatentes portugueses e guineenses vão dissertar sobre o tema "Guiledje e a Guerra Colonial/Guerra de Libertação", num debate moderado por João José Monteiro, reitor da Universidade Colinas de Boé.
A problematização conceptual, a contextualização histórica e a importância historiográfica de Guiledje na guerra é o tema a debater na quarta-feira, dia 5 de Março, numa sessão moderada pelo historiador guineense Leopoldo Amado.
Os efeitos, consequências e implicações político-militares no pós-Guiledje são outros dos assuntos em discussão.
No dia seguinte, quinta-feira, os participantes do Simpósio Internacional de Guiledje vão ouvir depoimentos e testemunhos de veteranos da guerra colonial que ali combateram, num painel moderado pela ministra dos Combatentes da Liberdade da Pátria guineense, Isabel Buscardini.
O Simpósio Internacional de Guiledje termina na sexta-feira, dia 8 de Março, com a participação na cerimónia de encerramento do secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação de Portugal, João Gomes Cravinho, segundo o programa do evento.
Durante a guerra colonial na Guiné-Bissau, Guiledje foi um ponto estratégico para as duas partes em conflito e fundamental para as forças armadas do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) conseguirem ganhar a guerra, através do "Corredor de Guiledje", que lhes permitia o abastecimento de armas e alimentos."
MSE. Lusa
__________
Nota de vb: vd artigo de