Tu, animista, heliocêntrico, te confessas.
És um tonto de um girassol.
Perturbam-te os eclipses, totais ou parciais, do sol.
Extasias-te com o pôr-do-sol,
e não tanto com o nascer-do-sol.
Sabes que o sol é um dado adquirido,
mesmo que não nasça para todos,
como já não nascia no vale do Nilo
no tempo dos faraós e do deus-Rá.
Sabes que podes contar com ele,
todas as manhãs, ao acordar,
mesmo em dias de céu cinzento, nublado, deprimente.
Mas também te aterroriza o pôr-do-sol,
onde se oculta, emboscada, a morte.
Aterroriza-te saber que um dia,
daqui a alguns milhões de anos,
o sol apagar-se-á.
Ou implodirá.
Perguntar-te-ão: que te importa, pobre diabo,
se sabes que vais morrer um dia destes ?!
Pensava-lo imortal, ao deus-sol, mas é finito:
quando descobriste, aos teus catorze ou quinze anos,
que um dia o sol iria morrer,
tornaste-te ateu (ou, talvez melhor, agnóstico,
ou talvez nem isso:
tiveste muito simplesmente a tua primeira crise existencial).
Nunca ligaste ao sol na Guiné,
na tua segunda crise existencial.
Ou melhor: odiava-lo, ao sol tropical,
odiava-lo com um ódio de morte.
Afinal, ninguém faz uma guerra
sem ter um ódio de estimação.
Um inimigo.
Não tinhas o mar, no interior, no mato,
para te deslumbrar com o pôr-do-sol.
Não tinhas o "mare nostrum" dos teus antepassados, o Atlântico.
Apenas os poilões, a tabanca,
a bolanha e os palmeirais e a savana arbustiva.
Ou a floresta-galeria que te tapava o sol.
Nunca foste ao Boé, onde havia pequenas colinas.
A Guiné era plana, horrivelmente plana, chata como a Holanda.
Ah!, como tu odiavas o sol da Guiné.
Detestavas o sol porque havia guerra,
e penosas operações a pé que te podiam levar
à insolação, à desidratação e, "in limine", à morte.
Detestavas o sol porque não sabias
por que razão havias de morrer de insolação e desidratação
só porque havia guerra no tempo seco.
Odiavas o sol da Guiné,
razão por que sempre preferias a noite e os seus pesadelos.
Não te lembras de ver a lua,
ou então só viste o "black, dark side of the moon".
Dormias de dia, sempre que podias ou te deixavam.
E, quando tu morreres,
se ainda puderes decidir
(isto é, escolher onde, como e quando...),
e, se não for pedir muito a quem de direito,
aos seres do panteão,
com cabeças de falcão e braços de serpente,
pois então que peças para morrer ao pôr-do-sol,
frente ao mar da tua infância,
ao Mar do Serro.
Duvidas que os deuses aceitem cunhas,
por isso não também rezas.
Não, ainda não escreveste o teu testamento vital,
mas esperas ainda ir a tempo de o fazer
e de lá pôr essa cláusula,
para o cangalheiro ler:
'Quero que, no meu caixão,
antes de entrar no forno crematório,
escrevam a tinta anti-fogo:
Cuidado, frágil, adorador do sol".
Lourinhã, Praia da Areia Branca, Vigia-Gapab, 19 de julho de de 2025
______________
Nota do editor:
Último poste da série: 17 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27027: Manuscrito(s) (Luís Graça) (270): Salve, Jaime, ao km 79 da tua picada da vida!