sábado, 27 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4593: Controvérsias (28): As influências dos grandes mestres (Hélder Silva / José Brás)

1. Comentário de Hélder Sousa ao Poste P4587: Vindimas e Vindimados (José Brás) (*):

Zé Brás
Aquela parte do texto seguido, sem pontuação, é sem dúvida um belo teste à nossa capacidade de improvisar, imaginar as falas, os autores, até, se quisermos, podemos dar o "tom" que acharmos mais convenientes. Bem pensado!
Mas, aqui p'ra nós, não há por aí uma "inspiraçãozinha saramagiana"?
Fico a aguardar o próximo.

Um abraço
Hélder S.


2. Comentário de José Brás ao Comentário do Hélder Sousa, enviado para mim, hoje mesmo:

Pois é, Hélder!
"Cutucaste a onça com vara curta" ¹. Quer dizer, meteste o dedo na ferida.
Desatar uma pequena discussão sobre o que é originalidade e imitação, é um exercício, a meu ver, absolutamente meritório num espaço e num (a nossa terra) tempo (o nosso tempo) de suaves marés, de acomodar sem chatices num politicamente correcto que garante o verniz e a polidez do trato mas mata de hipoxia a existência de contrários, motor, afinal, que sempre empurrou o mundo em frente.

Estás de acordo, pelo menos até aqui?

Na verdade, com esse quadro, lucram os medíocres, os bufos do reino com suas macaquices e perdem os que querem romper e abanar o sistema, atirados para o saguão do esquecimento.
Quanto a mim não seria nenhum drama que o mundo se dividisse em milhões de cabeças e diferenças no olhar sobre as coisas, se se pudessem fechar as centrais da manipulação massiva e global, as máquinas triturantes do pensamento individual e, pior ainda, da capacidade individual e do desejo de pensar, fornecendo no mercado a preços cómodos, o pronto a vestir cultural.

Aqui no blogue tenho assistido com frequência a alguma retracção sobre o acto de dizer "não estou de acordo", ou então, assumindo a diferença, resvalar algumas vezes para um certo desaforo.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, diremos, não é?

Mas peguemos no "Saramagismo" daquela pequena parte do "De bicicleta na guerra".

Mas peguemos-lhe com seriedade e discernimento, sem afirmações ofensivas nem recusas ofendidas; distinguindo muito bem o que é influência daquilo que, por vezes, não passa de macaqueação pobre, senão mesmo, de roubalheira chapada.

Bem! Sendo a tua pergunta já uma afirmação, não tens que te encolher por a teres colocado assim, antes e ao contrário, te sentires nela homem inteiro apenas, e amigo, ainda por cima, aguardando a minha resposta.

Pronto, lá vem ela.

Pode dizer-se que sim, Hélder... e pode dizer-se que não.
Eu cá, sem complexos nem preconceitos, dir-te-ei que talvez.
E poderei também adiantar que nem sei se é uma certeza segura se uma segura incerteza.

Necessário é dizer que, primeiro, tendo sido Saramago uma das mais galvanizantes leituras da minha já longa vida, difícil seria recusar-lhe influências.
Caramba! Então não é que Saramago me deu a conhecer aquele carreiro que com suas juntas de bois carregava calhaus para Mafra, fazendo-me sentir carreiro ou abegão ou outro nome qualquer da profissão e do trabalho de conduzir os animais e as carroças nos caminhos do mundo; chamando o gado, forçando a rota, empurrando, puxando, gritando, já com a cabeça cheia do caldo quente da noite que se aproximava, da noite com sua mulher, sentindo a cama, o arredio coito. Sentia-me eu, também, naquela linhas do "Memorial", na dor da ausência semanal, no gozo antecipado pela memória do antes, na imagem de uma mulher à espera do seu quinhão, roubado, afinal, por ordens do senhor D. João V.

E a grandeza humana de Blimunda, mulher amante, mulher sonho, mulher terra?

E o Sete Sóis, bravo e fraco ao mesmo tempo, como todo o homem que tem a sorte de encontrar sua mulher?

Já havia vivido as dores e as coragens desta gente que se levantava do chão, em Montemor, para exigir trabalho e salário e dignidade.
Saramago foi meu amigo de alguns anos.
Não vou explicar-te aqui porque é que conjugo o verbo no pretérito, dir-te-ei, apenas que por confirmação do que ele próprio disse a uma colega minha em pleno voo para o Rio, quando o apresentei à tripulação e ela, surpreendente e corajosa se descaiu com um "o senhor não é lá muito simpático", recebendo dele como troco "os escritores são para se lerem, não para se conhecerem".

Direi ainda que Saramago foi a primeira pessoa a conhecer o "Vindimas no Capim", ainda andavam as palavras apenas fixadas em A4's caídas da minha máquina de escrever.

E mais! Que terei sido eu um dos que primeiro conheceu a Maria Sassa que com sua vara riscou o chão e libertou a Península como "Jangada" solta no mar em busca das metades que todos nós temos em África e na América.
Não irias tu, Hélder, imaginar que tal admirador e amigo ficaria imune à riqueza da palavra do mestre!

Aliás, armado em xico esperto, poderia mesmo dizer-te que, em termos de arte, está tudo inventado e somos todos apenas relógios de repetição e eco do que outros disseram antes ou... que irão dizer no futuro.

O próprio Saramago há-de parecer outro qualquer em algum sítio do que fala e escreve.
Com efeito, então, pode aceitar-se que aquele pedaço de escrita, amontoando falas de faladores diversos e diferentes nas convicções, nos medos e nas coragens, se chega muito à forma Saramagina.
Porém, a meu ver, também se diferencia num pormenor, sendo em Saramago o meio de colocar no mesmo saco o narrador e o leitor, quer dizer, desatando a trama em dois tempos num só, na minha forma de escrever, quase sempre, e também ali, eu tento envolver o narrador, o personagem e o leitor, três tempos portanto, na mesma trama.

É minha intenção, de facto, retirar o personagem do simples papel de relatado numa pessoa que se conta, sendo contado, e se envolve com o contador (emissor) e com o leitor (receptor) transportado também para o centro do drama.
Quando saiu o "Vindimas no Capim" críticos e jornalistas da especialidade perguntavam-me como havia conseguido. E eu que nem me havia apercebido da coisa, respondia apenas: - "Não sei. Serei assim mesmo na vida".

Também alguns adiantaram que o livro sabia ainda a neo-realismo. Eu relia, comparava e não achava onde, pensando que talvez o dissessem porque estava lá escarrapachado a vivência em Vila Franca e no caldo cultural de então, ou, mais distante, o facto de nele se falar de abusados e explorados, de senhores e abusadores.
Continua a parecer-me, porém, que, fora isso, na forma e no estilo narrativo, as semelhanças serão muito poucas.

Outra coisa bem diferente é alguém pensar-se escritor (e eu não me considero tal), despreocupado da realidade e do seu povo, abusado e sofrido.
E tu sabes disso. Disso e de que não vem mal ao mundo nos sinais de tal alegada influência, apanhada aqui e ali.

E para já... um grande abraço, preferindo enviar o meu comentário ao teu comentário porque, imodestamente me parece pedagógico este exercício, ainda que possa suscitar dúvidas a sua publicação.
José Brás


3. Comentário do Editor:

Caros camaradas
Resolvi publicar hoje mesmo estes comentários do Hélder Sousa e do José Brás, porque nem sempre se trocam impressões a este nível.

Obrigado a ambos.
CV
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4587: Vindimas e Vindimados (José Brás) (4): De bicicleta na guerra

Vd. último poste da série de 26 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4590: Controvérsias (21): O helicóptero do PAIGC, visto na zona do Cacheu pela 1ª vez na madrugada de 13/10/64 (António Bastos)

1 comentário:

Anónimo disse...

E fizeste muito bem Carlos Vinhal.
Subjectivo.
Gostei. Egoísmo meu!
Gostei porque se lê a mastigar, a remoer, a ir atrás no tempo e a entrar em alentejos de desalento,de vidas sofridas.
Leio o Saramago escritor pouco e efectivamente concordo com ele. Os escritores são para se lerem, não para se conhecerem.
Concordo com o José Brás, nas influencias que todos nós sofremos nas mais variadas maneiras de estar na vida. A escrita passa-me um pouco ao lado logicamente. Aqui nestes comentários, por detrás das palavras estão certas formas de vida ou determinadas vidas e, ao ler, fui remoendo, desatando os tais nós da memória de certo tempo passado, comparando até com outro texto que ia reler e, após esta escrita agora mastigada lentamente na leitura, vou deixar para um dia.Nunca talvez. Não li Vindimas no Capim, vou lendo os teus escritos. Fazem falta. Já "escrevi" demais.
Para os dois e para um terceiro que editou um abração e estendo outro a toda esta Tertúlia do, Torcato