1. Mensagem de Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data 18 de Junho de 2009:
Queridos amigos,
É a primeira vez que leio o testemunho de um comunista que foi à guerra e lá viveu o peso das suas opções.
Aqui ficam estes dados para a bibliografia da guerra colonial.
Um grande abraço do Mário
Os comunistas e a Guerra Colonial
Beja Santos
Está profusamente documentado na historiografia do PCP que este partido apoiou desde a primeira hora a independência dos povos das colónias portuguesas. A leitura do jornal Avante! permite confirmar a atitude consequente que os comunistas portugueses tiveram no apoio às lutas de libertação, denunciando situações tão diversas como a exploração do trabalho nas colónias, actos de repressão das populações civis africanas, deserções e descontentamento nos quartéis, cá e lá. Quem procurava fugir e era apanhado, quem manifestava descontentamento, se apresentava como objector ou se revoltava, tinha a disciplina militar à sua espera: a Casa de Reclusão da Trafaria, o Presídio Militar de Elvas, o Batalhão Disciplinar de Penamacor, mas também a entrega à PIDE/DGS.
Armando Sousa Teixeira, dirigente estudantil, comunista, seguiu as directivas do PCP, alistou-se e procurou denunciar por dentro os chamados propósitos colonialistas da guerra decidida pelos regimes de Salazar e Caetano. Foi para Mafra, frequentou o curso de oficiais milicianos, de onde foi afastado; mobilizado como furriel para Moçambique, foi preso em pleno teatro do conflito e entregue à PIDE/DGS; detido no campo prisional da Machava, em Lourenço Marques, daqui partiu para Caxias onde foi torturado pela polícia política; foi julgado e condenado no Tribunal Plenário da Boa-Hora; posteriormente reintegrado no Exército, foi feito prisioneiro no Forte da Trafaria, pelas mesmas acusações; despromovido e remobilizado, partiu de novo para Moçambique com uma comissão agravada de 3 anos. É uma narrativa que começa em 1971, em Mafra, e acaba em 25 de Abril de 1974, em Cabo Delgado, em Moçambique. Este o fio condutor de “Guerra colonial, a memória maior que o pensamento” por Armando Sousa Teixeira, Edições Avante!, Abril de 2009, Preço 14,70 €.
Trata-se de uma narrativa que começa na Rua dos Poiais de São Bento e as memórias da resistência, os registos dos primeiros feridos chegam de África, a partida dos amigos e colegas para a tropa, os protestos contra a Guerra Colonial, a atmosfera dos que estavam a favor e dos que estavam contra. Armando de Sousa Teixeira decidiu entremear o seu testemunho com os dados históricos, certamente na presunção de que esses elementos permitem melhorar a compreensão do leitor. É um critério discutível como tantos outros, ganhamos a situação internacional e nacional, perdemos no vigor da evolução de uma experiência que teve etapas de tão grande sacrifício como as que viveu Armando Sousa Teixeira.
Entramos em Mafra, onde ele vai liderar um protesto que foi a afixação de vinhetas pelos corredores do convento, um apelo para não ir à guerra subordinado à palavra de ordem “Não jures, camarada!” e que provocou enorme bulício nas hostes da Escola Prática de Infantaria. E começaram a aparecer punições na ordem de serviço da unidade do tipo: “...Por ter sido encontrado a manipular uma tarjeta colante das que foram ultimamente espalhadas de forma irresponsável, cujo conteúdo visa minar a confiança dos instruendos na Instituição Militar e pôr em causa os sagrados deveres de defesa da integridade da Pátria, é punido com 5 (cinco) dias de detenção o instruendo do 1º ciclo do curso de oficiais milicianos...”.
O autor parte para Moçambique como furriel, a caminho de barragem de Cabora Bassa. África deslumbra-o, com o seu pôr-do-sol vermelho e laranja, a majestade do Zambeze, sente-se magnetizado pela coluna que rola em direcção ao reino da guerra. Descreve ambientes, a expectativa dos ataques, os aldeamentos circundantes, os tiros espúrios que se ouvem longe, no interior da mata. Imprevistamente, dois agentes da PIDE de Tete vêm buscá-lo e transportam-no para a prisão de Machava. Começa o seu processo, afinal ele fora descoberto durante o inquérito em Mafra, denunciado por outros instrumentos. Em Dezembro de 1972 está de novo em Lisboa, é metido na cadeia de Caxias, sujeito à tortura do sono, é porventura um dos episódios mais dramáticos do livro a descrição dos interrogatórios e o maquiavelismo dos processos. A seguir, vemo-lo no Regimento de Infantaria nº 1 onde é punido com 40 dias de prisão disciplinar agravada por ter desenvolvido as tais actividades de agitação subversiva em Mafra. Despromovido para soldado, é obrigado a uma comissão militar de 3 anos, de novo em Moçambique. Embarca para Nampula e daqui para Nangade, em Cabo Delgado, onde o 25 de Abril o vai encontrar.
É um relato por vezes pungente, quando tomamos à letra os sonhos da juventude desfeitos, enxovalhados, nesse sonho do comunista ciente das suas certezas, convicto no fim do colonialismo; é um testemunho que surte efeito pela sinceridade à flor da pele; mas é um testemunho frágil e inconclusivo, por termos uma amálgama entre o narrador e os dados, eventos e situações já devidamente enquadrados pela História que não nos cabe questionar. Era legítimo esperarmos ouvir em toda a sua representação a experiência militar e o seu trajecto sacrificial. Acredite-se ou não no comunismo, a via-sacra que decorre de uma opção como a que Armando Sousa Teixeira fez merecia a plenitude dos sentimentos e emoções. O branqueamento da História não se contraria só porque se fala dela correctamente. Corre-se o risco de branquear a História quando se cerceia a dimensão, a amplitude do sofrimento humano. Esperamos que Armando Sousa Teixeira ainda queira corrigir a contenção (imerecida) deste seu testemunho, invulgar e indispensável.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 25 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4576: Bibliografia de uma guerra (49): Lista de 77 autores de obras sobre o fim do Império (Manuel Barão da Cunha)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Caro Mário
Dizes no teu comentário ao conteúdo do livro que "é um testemunho que surte efeito pela sinceridade à flor da pele", embora também consideres que "é um testemunho frágil e inconclusivo, por termos uma amálgama entre o narrador e os dados, eventos e situações já devidamente enquadrados pela História".
Quanto a esta última parte, não te sei dizer nada, mas em relação ao facto do "testemunho ser duma sinceridade à flor da pele" posso afiançar que essa situação foi produzida sem qualquer esforço por parte do Armando Teixeira, pois essa era uma das suas características distintivas, que eu já conhecia dos tempos quando éramos colegas no velho Instituto Industrial de Lisboa.
Hélder S.
Nunca é tarde para a primeira vez.
Amigo Mário, quase me recuso a acreditar que com a reconhecida bagagem de conhecimentos sobre a guerra colonial, não tenha de todo conhecimento deste aspecto da mesma. Há mais e mais factos como estes dentro das fileiras, durante a resistencia à politica colonial e ao poder que a dirigia. Embora sem os mesmos pressupostos politicos e/ou partidários a negação da guerra e suas consequencias existia. Permitam que eu acrescente que para além do PC, havia outros enquadramentos ideológicos, que se caracterizavam mais pela diferença das acções e das posturas a tomar ou levar a cabo no seio das FA, que reflectiam variadas linhas politicas, do qual tive experiencia.
Creio ser salutar falar das coisas e dá-las a conhecer.
Um abraço para todos e para cada um.
Carlos Filipe
ex CCS BCaç3872 - Galomaro 71
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