sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1486: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (31): Abelhas africanas assassinas

Guiné > Zona Leste > SEctor L1 > Pel Caç Nat 52 > Outubro de 1968 > Operação Meia Onça > Em primeiro plano, o Alf Mil Beja Santos a caminho de Amedalai e Taibatá... "As minhas filhas descobriram esta foto que alguém me tirou naquele dia 13 de Outubro. Da Meia Onça já se falou no blogue: um fiasco que serviu para nos mortificar, sobretudo a CART 2339 [, Mansambo, 1968/69]. Eu usava estes óculos que ficaram destruídos pela mina anticarro de Canturé, em Outubro de 1969" (BS)

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Texto enviado em 10 de Janeiro de 2007. Continuação das memórias do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).

Caro Luís, aqui vai o texto da semana. Farei a referência a duas obras literárias que seguirão pelo correio, e confesso-te que são graficamente muito belas. Como igualmente faço referência aos bilhetes postais que a família e os entes queridos mandavam, tu farás o registo dos que entenderes. Se me permites alguma sugestão para fotografias, tens aí apontamentos sobre Missirá, seja os recentemente chegados por via do Luis Casanova seja daqueles que te tenho vindo enviar (por exemplo, a dar escola aos milícias). As minhas filhas descobriram uma fotografia a cores, quando eu ia a caminho do Xime para a Operação Meria Onça. Vou digitalizar-te e enviar-te para a semana. Recebe um grande abraço do Mário.


Aquelas abelhas eram sempre assassinas!
por Beja Santos

Os dois tiros rasgaram a noite exactamente quando eu lia o aerograma do Pedro Abranches, dando notícias do estado de saúde do Paulo Ribeiro Semedo. O Pedro Abranches era médico de análises clínicas no HM 241, casado com uma enfermeira colega da minha irmã, e fora visitar o sinistrado do presépio de Chicri. O Paulo acabara de ser evacuado para a metrópole para o Hospital da Estrela e estava fora de perigo. Nessa altura o diagnóstico, segundo o Pedro Abranches, ainda era favorável: "Da vista conseguirá recuperar, depois de um período de expectativa em que parecia que a ia perder. Tem o membro superior esquerdo completamente paralisado devido a estilhaços que lhe cortaram nervos fundamentais. Com fisioterapia poderá recuperar parcialmente".


A honra de macho lava-se aos tiros

Aos dois tiros sucedeu-se uma algazarra, da algazarra passou-se a um formidável coro de tragédia grega, abro a porta da cubata onde se forma um ajuntamento e Trilene Camará, um soldado que os camaradas chamavam "homem curto" (homem baixo) avança para mim com o rosto congestionado:
-Alfero, apanhei a Sali a dormir com o Mamasamba, venha ver a cama!

Perguntei de quem eram os tiros e a resposta do amante enganado foi de que procurara atingir os adúlteros, em vão. Chamo o régulo, a quem entrego a administração desta justiça, e avançamos para a cubata de Trilene, não sem eu ter dito ao Cherno para procurar encontrar Mamasamba e escondê-lo no armazém dos víveres.

O coro grego seguia-nos, vistoriámos um catre com roupa desarrumada, procurei, com o beneplácito de Malã Soncó, tranquilizar o desditoso marido que dentro em pouco nos acompanharia na Operação Andorra. Pedi ao Trilene que não se esquecesse que era soldado, todo o julgamento desta situação ficaria a cargo do régulo, tudo seria apreciado e decidido dentro de dois dias. O desconsolado a tudo dizia que sim de cabeça baixa mas rematou de cabeça erguida:
-Eu quero é que a família dela me dê uma vaca mais 3200 escudos que foi quanto me custou

Pedi a alguns soldados, e sobretudo ao Domingos Silva, que vigiassem Trilene até de madrugada, para evitar disparates e mais tiroteio avulso.


Operação Andorra e a memória de elefante do Quetá Baldé

Voltei para a cubata e pedi para me chamarem Quebá Soncó, o nosso picador. Sentámo-nos e terei dito algo como isto:
- Quebá, está a chegar um pelotão que ficará em Missirá enquanto nós partimos com toda a milícia para fazer um grande reconhecimento nas lalas de Paté Gidé, descer por Sancorlã em direcção ao rio de Biassa e cerca de 12 Km à frente contornar o rio de Ganturandim , atravessar para Salaquinhé e sair em Chicri, acima de Mato de Cão. Prevejo cerca de 40 horas de marcha, dormiremos uma noite muito perto de Madina. Peço-lhe para ir com os olhos muito abertos. Pretendo saber exactamente quantos caminhos saem de Madina até ao Geba. Num deles emboscaremos até um dia. Seja franco comigo, fale sempre verdade comigo, sempre que houver trilhos novos, vestígios da passagem recente de gente que vai aos Nhabijões ou para Santa Helena ou Mero, diga-me logo.

A Operação Andorra deixou marcas em nossas vidas de combatentes: foi penosa, pôs-nos os nervos à prova e terá sido provavelmente a gota de água da luta feroz que a partir daí Madina nos vai desencadear. Pessoalmente, aprendi que existia um inimigo oculto na mata, tão ou mais letal que o fogo: as abelhas. Não há relatório da Andorra e por essa razão recorri à memória prodigiosa de Queta Baldé:
-Lembro que saímos ainda de noite, o capim todo molhado, era capim de época seca, muito alto, molhava até ao pescoço. Havia lua, tínhamos dois cajueiros à direita, frente à porta de armas, e virámos para Cancumba, onde nosso alfero gostava de ver as árvores do pau de sangue. Como sou de Amedelai, negociava muito com a ponta de Sancorlã. Vendiam ali aguardente e amendoim. Fizemos bem o caminho porque eu conhecia os trilhos velhos e indiquei-os ao Quebá. Fomos de Cancumba até Paté Gidé, não havia nada a não ser floresta fechada, à volta da ponta tínhamos laranjeiras, eu conhecia aqueles campos onde antes da guerra se plantava milho, mandioca e arroz. Caminhámos com as fardas molhadas, metemo-nos na lama, depois veio o Sol e depois choveu, e a seguir voltou o sol. Em Sancorlã, também nada. Nosso alfero disse ao Quebá para descer ao rio de Biassa, passando por Tumaná. Se até aí não tínhamos avistado nada, quando saímos para Biassa encontrámos um trilho que tinha usado há algum tempo. Uma hora depois, entrámos no velho trilho onde antes da guerra eu fora fazer comércio a Madina. Mas estava tudo abandonado, só íamos encontrando javalis, cabras de mato e porcos espinhos. Quando eu era menino ia com o meu paizinho por este caminho até Sarauol, que durante a guerra passou a ser um local terrível onde as tropas não iam. Lembro-me também que Cibo Indjai me substituiu nesta altura a orientar Quebá Soncó. À volta de Madina, nas bolanhas, havia sentinelas permanentes e pedimos a nosso alfero para descermos dentro do mato fechado como se fôssemos em direcção a S. Belchior. Caminhávamos para o fim do dia, quando se descobriu um trilho fresco perto de Iaricunda. Atravessámos em direcção a Sinchã Corubal e aí jantámos e montámos emboscada junto do trilho. Foi uma noite sossegada e ao amanhecer subimos para o interior, era um trilho que avançava para Chicri. Foi aí que nosso alfero, quando viu marcas no chão mandou montar nova emboscada.

Abelha, abelha!!!...

Eu olho banzado para este homem a quem só falta perguntar o nome de todos aqueles que ali estavam... na verdade, é acima de um palmeiral em Mato de Cão que usamos a convencional meia lua e no pressuposto que iríamos surpreender um contigente que viesse dos Nhabijões com sal, tabaco e outros produtos necessários à vida em Madina/Belel. As horas passam, as fardas ensopam, a vigilância perigosamente quebra. Eis então que levo uma cotovelada do José Jamanca que cicia ao meu ouvido direito:
-Vem um grupo mas de Madina para Chicri!
-Manda todo o grupo emboscado inverter a posição - respondo-lhe - e passa a palavra de que serei o primeiro a disparar, orientando o fogo de dilagrama e morteiros. Até nova ordem os bazuqueiros não trabalharão dentro daquela mata densa.

É um trilho enorme, bem sulcado e eu avisto à distância de centenas de metros. E quando vários vultos entram na minha mira mando despejar os morteiros sobre a coluna de Madina e disparo uma rajada para o interior da picada, onde avançam vultos em marcha apressada. Mas a coluna vinha preparada para reagir e reagiu desta vez. A floresta é um clamor de descargas, a folhagem desfaz-se, os ramos partem-se, os gritos de fúria e pesadelo misturam-se. Peço a dois apontadores de dilagrama para responderem aos RPG2 que não param de trabalhar.

Respondem e segue-se o alívio de um silêncio sepulcral. Grito para avançarmos e avançamos centenas de metros, até onde estava a cabeça da coluna. Como um mês atrás, encontrámos esteiras, sacos de comida, carregadores e uma arma semiautomática. Chamam-me a atenção para vestígios de sangue, há quem se prepare para uma caça ao homem. Mas a coluna inimiga fincara-se talvez um quilómetro atrás e despejou fogo na nossa direcção. Escondidos atrás das árvores, procuramos ver onde disparam as kalash e as bazucas. É nesse preciso instante se ouvem vozes estridentes que semeiam o pânico:
- Abelha, abelha, toca a fugir!.

É um espectáculo assombroso o que se segue e vejo de pé, impotente, incapaz de qualquer reacção: à distância, os guerrilheiros de Madina gritam e fogem, correndo por mim em pânico, os soldados de Missirá fogem. Fogem sacudindo-se batendo com as mãos no peito e nas pernas. Fogem com uivos de dor. Aquela indecifrável cena apocalíptica levanta-me o ânimo e por pura imitação desato a correr. É mais à frente que consigo que o Quebá me explique o que se está a passar: os tiros destruíram os favos, as abelhas atacam. As abelhas podem matar, irei aprender.

Mais tarde, em Março, quando entrar no HM 241 para ser operado assistirei à chegada de uma companhia de fuzileiros que caíra debaixo de um enxame de abelhas, entraram com o corpo todo inchado, alguns em estado de profundo choque, urrando com aquele sofrimento inusitado de abelhas que atacam quando se sentem perseguidas ou sentem o cheiro do suor ou do sangue.

É nesta atmosfera de dilúvio e derrocada que o soldado Sadibi Camará larga duas granadas e ouve-se uma explosão e a seguir um clamor de sofrimento: Sadjo Seidi tem as duas pernas estilhaçadas por uma granada ofensiva que se desencavilhou. Exactamente como um mês atrás retiramos com um ferido (felizmente menos grave), seguimos de Chicri para Gambaná, atravessamos em passo estugado para Malandim e ficamos em Finete a aguardar um helicóptero que o Teixeira chamara entretanto. Sadjo irá recuperar de uma das pernas, a outra deixou-a coxear para todo o sempre, devido a ferimentos no joelho e calcâneo.


Os livros do mês

Aprendi muito com as abelhas. Elas irão reaparecer no próximo mês, na Operação Anda Cá, onde seremos obrigados a regressar ao local do acidente para recuperar bazucas e morteiros, e também a Mansambo e na região do Xime, como aqui se irá contar. O lastimável disto tudo é que íamos tendo, todos nós, um saber de experiência feito, sem nenhuma indicação, sem sabermos quais as reacções mais adequadas perante esta fúria biológica. Quem diz abelhas diz macaréu, diz travessias de riachos, tornados e até doenças cuja existência nos era completamente desconhecida.


Capa do romance policial de SS. Van Dine, A Série Sangrenta. Lsiboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Vampiro, 30). Capa de Cândido Costa Pinto.
Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Volto para Missirá, onde nos esperam as obras, as aulas, um quotidiano fervente. No regresso ouvimos as explosões das morteiradas com que em Madina se espera um inimigo que já está longe. Em Missirá espera-nos o aconchego do banho e uma carne assada preparada por Jobo Baldé. Com o corpo moído e a convicção que amanhã regressaremos a Mato de Cão, vou para a minha cubata ler o correio que me foi entregue em Finete.

Capa da novela de Ernest Hemingway, O Velho e o Mar. Lisboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Miniatura, 41). Capa (falubosa) de Bernardo Marques.

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Os postais ilustrados dos nossos amigos e familiares

Já vos falei dos bihetes postais que enviei sobretudo a partir de Bissau e Bafatá. Uma palavra para os bilhetes postais que vinham de Portugal até este ponto obscuro da floresta silenciosa:

A Cristina manda-me um marco do correio e insinuações que apontam para um casal de namorados. Se era verdade que suspirávamos pelo correio, convém agora relembrar que as nossas notícias, quando faltavam, ou se atrasavam, quebravam o ânimo dos nossos entes queridos. A minha irmã dá-nos notícias da família e manda-me um avião da TAP a sobrevoar impossivelmente o velho Aeroporto da Portela, como a recordar-me que eu era bem vindo a qualquer momento. O meu irmão agradece lembranças do Natal através do Palácio da Pena, com as pinturas da época. E a minha mãe escreve-me de S. Pedro do Sul com uma panorâmica de Vouzela e um velho comboio a atravessar a ponte. Espero que os historiadores do séc. XXI cuidem da função determinante que estes bilhetes postais tiveram nos nosso ânimos, substituindo palavras, acentuando sentimentos, gritando ausências.

Portugal > Bilhete postal > Edição Lifer - Porto, s/d. Colecção Postales Escudo de Oro > Impresso en España / Print in Spain, Barcelona / Nº 516 > Vouzela (Portugal) > Vista panorâmcia / Panoramic view / Vue panoramique...

Enviado ao Alf Mil Mário Beja Santos, SPM 3778, por sua mãe: "S. Pedro do Sul, 27/8/1969: Meu estimado e querido filho: Estou sem notícias tuas há uma semana. Mas possivelmente [há] atrasos na correspondência... De Lisboa, escrever-te-ei uma longa carta. Peço que rezes pelas minhas melhoras e que as águas produzam o seu efeito na minha saúde. Sigo com o Rudolfo para casa. Estive aqui 15 dias. Vês como é lindo, este sítio ? Muito tenho pensado em ti, meu querido filho. Como estarás de saúde ? (...).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Há entradas e saída no nosso contigente militar. Chegou o Benjamim Lopes da Costa que veio substituir o Paulo. O Benjamim será um camarada inesquecível, mesmo quando, cheio de sofrimento, lhe darei voz de prisão após uma emboscada em que ele perdeu a cabeça e me chamou assassino. Cimentámos uma grande amizade que durou até 1990, ano da sua morte num estúpido acidente. E leio, leio desalmadamente. Primeiro, o épico que é O Velho e o Mar, por Ernest Hemingway. Nunca me cansarei desta narrativa em que um velho marinheiro, de nome Santiago, lá para Cuba, persegue um espadarte com 5 metros de comprimento, ganhando a luta mas perdendo a carne da presa, devorada por tubarões. Luta metafórica da nossa vida, vitória sobre o silêncio e sobre a solidão no alto mar: "Mesmo no alto mar, um homem nunca está só", escreve Hemingway. O herói policial do escritor S. S. Van Dine é o fleumático, super chique e super intelectual Philo Vance. O romance que devorei em duas horas livres é A Série Sangrenta, a tragédia dos Greene, um clã de multimilionários de Nova Iorque que vão sendo abatidos em casa, contrariando toda a lógica, graças a um génio diabólico que se vai revelar impotente perante os dotes de análise desse investigador gastrófilo, amante de porcelanas chinesas, mestre de esgrima e profundo conhecedor da música renascentista. Estes livros suavizam as asperezas do barro do quotidiano, uma roda que não pára de dançar.

Vem aí Fevereiro, mês em que vou ser punido, irei a Quebá Jilã donde traremos um prisioneiro, segue-se a tragédia da Anda Cá e temos por fim a Operação Fado Hilário, uma ida à base de Galoiel, salvo erro na companhia do Torcato Mendonça, e numa operação capitaneada por Laranjeira Henriques, de quem tenho saudades. Vamos então contar.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1461: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (30): Spínola, o Homem Grande de Bissau, em Missirá

Guiné 63/74 - P1485: Bambadinca revisitada... ou os azares de um operador cripto em fim de carreira (Gabriel Gonçalves, CCAÇ 12)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca (vd. mapa da região)

Do lado esquerdo da imagem, para oeste, era a pista de aviação (1) e o cruzamento das estradas para Nhabijões (a oeste), o Xime (a sudoeste) e Mansambo e Xitole (a sudeste).

Vê-se ainda uma nesga do heliporto (2) e o campo de futebol (3), assinalado também cum círculo a vermelho.

A CCAÇ 12 começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento roubado à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole.

De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) e sargentos (8), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9).

Apesar do apartheid (leia-se: segregação sócio-espacial) que vigorava, não só na sede dos batalhões, como em muitas unidades de quadrícula, uns e outros, oficiais e sargentos, tinham uma cozinha comum (19).

Do lado direito, ao fundo, a menos de um quilómetro corria o Rio Geba, o chamado Geba Estreito, entre o Xime e Bafatá. O aquartelamento de Bambadinca situava-se numa pequena elevação de terreno, sobranceira a uma extensa bolanha (a leste). São visíveis as valas de protecção (22), abertas ao longo do perímetro do aquartelamento que era todo, ele, cercado de arame farpado e de holofotes (24). A luz eléctrica era produzida por gerador...

Junto ao arame farpado, ficavam vários abrigos (26), o espaldão de morteiro (23), o abrigo da metralhadora pesada Browning (25). Em 1969/71, na altura em que lá estivemos, ainda não havia artilharia (obuses 14).

A caserna das praças da CCS (11) ficava do lado oeste, junto ao campo de futebol (3). Julgava-se que o pessoal do pelotão de morteiros e/ou do pelotão Daimler ficava instalado no edifício (12), que ficava do outro lado da parada, em frente ao edifício em U. Mais à direita, situava-se a capela (13) e a secretaria da CCAÇ 12 (14). Creio que por detrás ficava o refeitório das praças.

Em frente havia um complexo de edifícios de que é possível identificar o depósito de engenharia (15) e as oficinas auto (16); à esquerda da secretaria, eram as oficinas de rádio (17).Do lado leste do aquartelamento, tínhamos o armazém de víveres (20), a parada e os memoriais (18), a escola primária antiga (19) e depósito da água (de que se vê apenas uma nesga).

Ainda mais para esquerda, o edifício dos correios, a casa do administrador de posto, e outras instalações que chegaram a ser utilizadas por camaradas nossos que trouxeram as esposas para Bambadinca (foi o caso, por exemplo, do Alf Mil Carlão, nosso camarada da CCAÇ 12).

Esta reconstituição foi feita pelo Humberto Reis, completada por mim (LG) e, mais recentemente, pelo Gabriel Gonçalves (GG), que identificou novos sítios: cantina (27), posto de rádio (28), refeitório das praças (29) e centro cripto (assinalado com uma seta no topo do edifício 5).


Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Mensagem do Gabriel Gonçalves (ex-1º Cabo Op Cripto da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71):

Caro Henriques:

Junto devolvo a imagem (que me pediste para ver, comentar e corrigir), com a identificação da cantina (27), posto de rádio (28), refeitório das praças (29) e centro cripto (assinadado com uma seta no topo do edifício 5).

Como tu dizes, realmente eu estive trancado no quartel, mas foi durante 22 meses, porque o meu periquito não chegou e, segundo me constou, o rapaz era sobrinho de um tenente-coronel e deu baixa ao hospital. Quando deram nota da ocorrência para a repartição de sargentos e praças, o responsável que recepcionou a nota esqueceu-se de nomear um substituto e lá fiquei eu a ver-vos partir e a gramar mais dois meses daquela merda.

Aqueles dois meses foram os piores da minha vida... de tal maneira que em dada altura resolvi deixar de alinhar na escala de serviço, com a anuência dos meus superiores, passando apenas a dar apoio aos periquitos.

Como tinha mais tempo disponível passei estupidamente a dedicar-me às bazucas [, garrafas de cerveja de 0,6 ], e dessa forma andava anestesiado o que me trouxe alguns dissabores. Um dia, estava eu sentado na cantina a saborear uma bazuca, quando apareceu o cripto do Xime que me convenceu a ir na coluna que ia para o Xime, porque os gajos tinham lá um grande petisco, tratava-se de um belo cabrito assado com batatinhas.

E lá fui eu todo contente, mas como estava anestesiado esqueci-me de avisar a malta de Bambadinca, que andaram toda a noite à minha procura. Ao fim da manhã do dia seguinte, como eu não aparecia, resolveram comunicar o meu desaparecimento aos superiores, pensando que eu tinha sido apanhado à mão. Quando já iam na direcção do edifício do comando, entrou pelo quartel dentro a coluna do Xime, com o belo do GG ainda não refeito da noitada. Quando os gajos me viram, foram direitos a mim, chamaram-me todos os nomes que lhes veio à cabeça (podes imaginar que nomes é que me chamaram) e o Chaves, o cripto do BCAÇ 2917, pregou-me uma pera na tromba que ainda hoje me doi.

Se os gajos tivessem ido comunicar o meu desaparecimento, as consequência para mim teriam sido bastante graves, pois com o meu desaparecimento todos os PSRT (*) de toda a Guiné teriam de ser destruídos e substituídos e eu, no mínimo, ia de cana com uma valente porrada e em vez de 22 meses ficava a apodrecer na prisa.

Um grande abraço
Gabriel

(*) Publicações do Serviço de Reconhecimento das Transmissões.

Comentário: GG: Não te conheci essa faceta...Sempre foste um gajo muito aprumado e disciplinado. Imagino o inferno que terão mais esses dois meses de Guiné - Março e Abril de 1971, não ? ... Olha, já não me lembrava que lá tinhas ficado à espera do desgraçado teu periquito... Obrigado, por esta revisitação de Bambadinca onde, para o bem e para o mal, passámos um grande bocado dos nossos verdes anos... Um abraço, camarada!

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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores do GG:

26 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1464: Oficiais, sargentos e praças: tropa é tropa, uísque é uísque (Gabriel Gonçalves / Luís Graça)

18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1377: CCAÇ 2590/CCAÇ 12: Apresenta-se o 1º Cabo Operador Cripto Gabriel Gonçalves

Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

Guiné > Região do Oio > Mansoa > Bajuda Balanta > Série de postais ilustrados do tempo da Guiné Portuguesa, s/d nem editor... Colecção do nosso amigo e camarada José Casimiro Carvalho (ex-fur mil op esp, CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1973/74).

Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.


Um estória do Albano Costa (ex-1º cabo da CCAÇ 4150, Guidaje, 1973/74), que já está em arquivo há uns dois ou três meses... Ele vive e trabalha hoje em Guifões, Matosinhos. Se lá forem perguntem pela FotoGuifões... O Albano é a gentileza em pessoa.

Caro Luís:

Quando cheguei à Guiné, fomos logo directos para o Cumeré. Lembro-me de termos chegado a um sábado de manhã. Tudo era diferente, tudo era estranho. Fomos em coluna militar, mas nada parecido com as que fazíamos no mato. A viagem foi feita numa Berliet, íamos acomodados como os porcos, todos a monte. A população local fez uma grande festa no trajecto de Bissau até Safim, a chamar piu-piu, periquito vai pró mato...Para mim tudo era novidade.

Depois de acomodado no Cumeré, uma das minhas primeiras prioridades era vir à cidade encontrar-me com um colega que tinha a informação de estar na Manutenção Militar. E então, quando me encontrei com o velhinho, meu amigo, pedi-lhe para me levar ao Pilão, às bajudas...

Então lá fomos os dois, e no caminho fui avisado sobre os preços que na altura eram praticados:
- Se for guineense, são 50 pesos; se for caboverdiana, são 100 pesos.

E lá fui eu, cheio de vontade. Quando lá cheguei, o meu amigo foi dar a volta dele e eu fiquei um pouco à deriva, sem saber o que fazer...

É que eu estava há 24 horas na Guiné e num sítio que era sempre preciso ter cuidado e, para mais, dava para perceber que era periquito... Então esperei pelo meu amigo, até que ele entretanto chegou e eu falei do que estava a ver, nenhuma me interessava a não ser aquela com quem ele foi mas essa, eu não a queria naquele momento, por razões óbvias...

Fomos a outro bar e aí eu acabei por escolher uma guineense que parecia mais caboverdiana do guineense, mas como o meu amigo me tinha dito que guinenese era só 50 pesos, eu ao puxar pelo dinheiro, lembro-me que não tinha ainda pesos mas sim escudos... Só que, como o apetite era grande, eu não me importava nada de pagar em escudos, mesmo sabendo que valia mais qualquer coisinha...

Guiné > 1971 > Cópia de nota de 50 escudos (pesos) da Guiné. Frente. Banco emissor: BNU. Imagem gentilmente enviada pelo Sousa de Castro (CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74):
Foto: © Sousa de Castro (2005). Direitos reservados.



Entretanto, a companheira furtiva, ao ver notas de 50 e 100 escudos, vendo que eu era periquito, pede-me 100 escudos... Aí eu disse:
- Não, se quiseres são 50 escudos; se não quiseres, vou-me embora.

Ela disse que não, e aí eu vim embora a seco.O meu amigo. quando chego à beira dele tão rápido ficou admirado, e disse
- Já ?! ... Nem deu tempo para tirar a roupa!...

Então, eu contei-lhe o sucedido e ele disse-me:
- Fizeste bem, vamos a outro bar.

Ora bares era o que não faltava no Pilão ou Cupilon... Eu respondi-lhe:
- Agora já perdi a vontade, amanhã eu venho cá outra vez para saciar o desejo... - E assim aconteceu.

Cambiei os escudos por pesos, a diferença não era assim muito mas era alguma coisa, e lá fui com a caboverdiana por cem pesos.

Depois fui para Guidaje, não havia nada, era como já disse uma terra de ningém, só lá existíamos nós e a população civil quase toda ligada aos militares da CCAÇ 19. Era um pouco difícil, não se passava nada, uma autêntica pasmaceira. Mas eu, como fotógrafo, consegui arranjar uma lavadeira, e para todo o serviço. Nunca lhe paguei propriamente os favores sexuais, embora me tivesse ficado mais cara... Julgo que era também por prazer que ela vinha ter comigo ao meu quarto...

Estava só com um colega, ele já sabia, pelo que quando ela vinha buscar a roupa ele ia dar uma volta. E por isso todo o tempo que estive em Guidaje, foi sempre a mesma. Ela era casada. O marido tinha mais de uma mulher e, por motivos de saúde, esteve um tempo ausente, e aí eu estive sempre à vontade.

Quanto ao pré, sei que, como 1º cabo, recebia 750$00, os outros 500$00 ficavam na metrópole, mas eu tinha mais dinheiro que ganhava a tirar fotografias, e dava para tudo, só não deu foi para trazer para casa, mas isso já é outra estória.

Um abraço, Albano Costa

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1483: Blogoterapia (16): Males de amores ou... Tenho um lenço da minha lavadeira ali guardado na gaveta (David Guimarães)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 > 1973 > O Fur Mil de Operações Especiais Casimiro Carvalho com duas bajudas da tabanca.

Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector l1 > Xitole > CART 2716 > 1970 > O Guimarães e a Helena, a sua lavadeira. O Xitole era, tal como Bambadinca, um posto administrativo, pertencente ao concelho de Bafatá. A povoação que lá vivia era, no entanto, menos numerosa do que a de Bambadinca, sede do BART 2917 (1970/72) .
Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.

A história das relações das NT com a população em geral, e com as mulheres, em particular, está por contar. Em muitos casos, a presença de centenas de homens, europeus, brancos, jovens, solteiros, combatentes, a milhares quilómetros de casa e com muitos pesos no bolso, terá tido um impacto considerável na desestruturação social de algumas comunidades tradicionais...

"Tenho um lenço da minha lavadeira, ali guardado na gaveta" (DG) podia ser o título de uma bela estória sobre os (im)possíveis amores em tempo de guerra... Ou sobre os nossos males de amores, que era muitas vezes o preço que se passava por uma noite (suada) de sexo...

O post do Vitor Junqueira (1) já obteve vários comentários, do pessoal da tertúlia, a começar pelo Torcato Mendonça (2). Publicam-se a seguir outros, que já nos chegaram. Devo acrescentar que as estórias de homens e de mulheres em tempo de guerra - muito desiguais em termos de estatuto e de poder, e vindos, se não dos antípodas, pelo menos de culturas muito diferentes - não têm abundado no nosso blogue (3)... Amores de soldados e de marinheiros são levados pouco a sério, e rapidamente esquecidos... Evocá-los, décadas depois, é complicado e é preciso talento, além de bom senso e bom gosto... É difícil contá-las, para mais em público, em grupo, na caserna virtual que é o nosso blogue... Por pudor ? Por preconceito ? Por autocensura ? E, no entanto, erotismo, exotismo e guerra andam muitas vezes de mãos dadas... E tudo indica que, como a do Junqueira, há belíssimas estórias por contar... (LG).

1. Amaral Bernardo (CCS / BCAÇ 2930, Catió, 197o/72):

Acabo de ler o escrito por Vitor Junqueira... Impressionante. É belo e envolve-nos a todos, de um modo ou outro, numa mesma cumplicidade. Lindo!!!

2. Fernando Franco (BIG, Bissau, 1973/74):

Para além de fazer meus, os comentários do Amaral Bernardo, tenho a acrescentar que me revi na mesma situação, só que estava na zona nobre de Bissau, o Pilão. Como nós, devem estar centenas, para não dizer milhares, que viveram a mesma situação, ou de maneira diferente. Quero deixar aqui um agradecimento ao Vitor Junqueira, por me relembrar esses momentos e dar-lhe os parabéns pela forma como escreveu ao pormenor essa situação.

3. David Guimarães (CART 2716, Xitole, 1970/72):

Esta, diria eu.... é a verdadeira história de amor que aconteceu com o Junqueira .... E eu que nem sou piegas - só sou velho - até as lágrimas me vieram aos olhos de emocionado ao lê-la....

Tenho um lenço dado pela minha lavadeira, ali guardado na gaveta, mas decerto que quereria ter vivido uma história de amor como o Junqueira.... Porque pelo que ele escreve, houve sim muito para além do sexo. E isso é lindo...

Um abraço e obrigado, Vitor, deste-me uma lição de humanidade.

Nota - Já li várias vezes o post do Vitor. Lerei mais, pois apetece ler e reler, faz-me bem...

4. Sousa de Castro (CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74):

Linda Estória!... Real, verdadeira, estória mais ou menos igual a tantas outras vividas por ex- combatentes, sentimentos de saudade que muitos de nós não conseguimos relatar, passar para o papel o que nos vai na alma, embora pessoalmente não tenha passado pela experiência do Junqueira (quem me dera!...).

Lembro-me, com saudade, da pele macia, aveludada, as mamas apetitosas e o cheiro característico do perfume que elas usavam. Lembro-me em determina altura no Xime uma Badjuda (minha lavadeira) que, a troco de algum pão e marmelada, me agradeceu com um apetitoso beijo nos lábios que me deixou sem fala... e outras recordações.
__________

Notas de L.G.:

(3) Em tempos eu já aqui tinha evocado a Helena de Bafatá, que sucessivas levas de batalhões conheceram, no sentido bíblico do termo... Ela foi, avant la lettre, uma verdadeira profissional do sexo, e eu ainda hoje acho que lhe devíamos ter erigido, por gratdão, uma estátuta na sua terra natal... Vd. post de 12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá (Luís Graça)

(...) "Amorosa Helena, pequena fula dengosa, ‘salva das garras do Islão’ (sic) por zelosos missionários católicos – mas não da faca da fanateca, que te extirpou, na festa do fanado, o clitóris – para se tornar o colchão de todas as camas, a Vénus negra de batalhões inteiros, a iniciadora sexual de mancebos que as sortes vieram arrancar às saias da mamã, a alegre e traquinas companheira de muitas farras de caserna, correndo nua e lasciva do regaço de tropas bêbedos que nem cachos, para o abrigo mais próximo quando às tantas da madrugada soava o canhão sem recuo!...

"Bela Helena de Bafatá que sabias pôr na ordem os arruaceiros paraquedistas de Galomaro que te batiam à porta a pontapé quando eu estava contigo, deitado na tua liteira, e me dispensavas pequenas gentilezas – um ronco de missangas, vermelhas, ou uma talhada de papaia que trazias do mercado – sempre que eu ia a Bafatá e procurava a tua companhia, na melhor das hipóteses, uma vez por mês, no dia de folga dos guerreiros… Tu e as tuas amigas de Bafatá que tanto trabalho deram que fazer ao competentíssimo furriel enfermeiro Martins, que nunca punha os pés fora da sua enfermaria e que eu duvido que alguma vez tenha ido a Bafatá, o nosso querido Pastilhas que vivia 24 horas dentro do arame farpado, trabalhando incansavelmente, de bata branca, em prol de uma Guiné Melhor, que nos aturou mil e um travessuras, partidas de mau gosto, brincadeiras estúpidas, bebedeiras de caixão à cova e sobretudo nos curou de alguns valentes esquentamentos……

"Destes e doutros males de amores, estás perdoada, Helena. Afinal, quem vai à guerra, dá e leva… Tu curavas-nos dos males da alma, o Pastilhas dos males do corpo… Entretanto, quando a guerra acabar, para mim e para os meus camaradas da CCAÇ 12, não terei tido tempo de te devolver a pulseira de missangas vermelhas nem de te dizer um 'Adeus, até sempre', um adeus sem regresso… Guardarei de ti a doce lembrança das tuas estridentes e saudáveis gargalhadas, do cheiro exótico do teu corpo, das tuas sagradas funções de sacerdotiza do amor em tempo de guerra… Imagino que a tua vida não tenha sido fácil depois da independência, se é que lá chegaste com vida e saúde… Nunca mais tive notícias tuas, mas hoje, revendo a minha primeira viagem, por terra, no interior da Guiné, do Xime até Contuboel onde me esperavam os meus queridos 'nharros', ao longo do interminável dia de 2 de Junho de 1969, o teu nome, o teu rosto e as tuas gargalhadas vieram-me à lembrança...

"Lembrei-te de ti em Ponta Coli, frente à vasta bolanha, agora seara inútil de capim alto, com o cadáver do furriel vagomestre nos braços; lembrei-te de ti e das minhas escapadelas a Bafatá… Também foste, à tua maneira, uma heroína daquela guerra, minha impossível amiga, separada pelos papéis que nos obrigaram a representar na tragicomédia da guerra colonial da Guiné… Daí figurares, contra a toda a ortodoxia (do teu povo fula, dos teus missionários católicos, dos 'tugas' que apenas queriam o teu corpo, dos revolucionários do PAIGC que não te terão perdoado o colaboracionismo com os colonialistas, para mais sendo tu conterrâneo do pai da Pátria, o Amílcar Cabral), daí figurares, dizia eu, na minha galeria de heróis e de heroínas… Com todo o direito, com o direito que ganharam as mulheres do teu país, ofendidas e humilhadas, violentadas pelo sistema, pela guerra, pela dominância dos machos, pelo imperativo da sobrevivência… Aceita esta pequena homenagem da minha parte, onde quer que estejas, na terra, no céu ou no inferno!

Guiné 63/74 - P1482: Guidaje: os mortos da CCAÇ 3518 (A. Marques Lopes / Daniel Matos)

Mensagem do A. Marques Lopes:

Hoje, o Daniel de Matos disse-me mais sobre a sua estadia em Guidaje. Apesar de eu lhe ter dito para ser ele a contar (1).

"Estiveram 2 pelotões da Companhia [, a CCAÇ 3518,] durante cerca de 20 dias trancados em Guidaje na altura da crise. Com efeito, a Companhia tinha vindo de Gadamael para o COMBIS (Bissau), passando a fazer colunas regulares para Farim.

"Uma delas foi prolongada até Guidaje e os dois pelotões por lá ficaram esse tempo, durante o qual tivemos 4 mortos e diversos feridos. Morreram no abrigo de artilharia referido pelo Capitão Salgueiro Maia no seu livro (2), dentro do qual também me encontrava (estávamos 16 lá dentro quando a morteirada o destruiu).

"Elaborei um croquis da localização e da ordem por que ficaram enterrados e entreguei-o no COMBIS, quando regressámos a Bissau. Por meu intermédio, o Notícias da Amadora publicou então os nomes desses 4 camaradas (metade dos que viríamos a enterrar em Guidaje, dado o estado de decomposição em que se encontravam, e em virtude de não haver mais urnas disponíveis e de não termos conseguido efectuar colunas de evacuação até Binta/Farim, - fomos emboscados no Cufeu e tivemos de regressar a Guidaje.

"Os nomes desses militares mortos constam obviamente na Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África 1961-1974, do Estado-Maior do Exército."

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1480: Guidaje e Gadamael: os marados da CCAÇ 3518 (A. Marques Lopes / Daniel Matos)

(2) MAIA, Salgueiro - Capitão de Abril: Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril. Depoimentos, 3ª ed. Lisboa: Editorial Notícias. 1995. Vd. pp. 59-72 ("Crónica dos feitos por Guidage").

Guiné 63/74 - P1481: Tabanca Grande: Carlos Américo Rosa Cardoso, ex-1º Cabo Radiologista (HM 241, 1972/74)

Guiné > Bissau > 1972 > O edifício do Hospital Militar... Os horrores da guerra (os mutilados, os politraumatizados, os feridos graves...) eram ali despejados todos os dias, de helicóptero... O 1º Cabo Radiologista Cardoso mandou-nos documentos fotográficos, inéditos, do fim da linha: restos (macabros) de corpos humanos, restos de camaradas nossos a quem foram amputados braços ou pernas...


Guiné > Bissau > 1972 > A chegada, as primeiras descobertas e emoções...


Guiné > Bissau > 1972 > O primeiro passeio pela cidade...



Guiné > Bissau > 1972 > As primeiras ostras...



O novo membro da nossa tertúlia: Carlos Américo Rosa Cardoso: pertenceu aos Serviços de Saúde Militar, com o posto de 1º Cabo Radiologista. Vive em Lisboa. Trabalhou em artes gráficas. Hoje está reformado. Falei com ele pelo telefone. Dei-lhe as boas vindas... Vamos continuar a falar do inferno do Hospital Militar de Bissau que a maior parte d enós, felizmente, n
ao chegou a conhecer ao vivo... (LG)

Fotos: Carlos Américo Rosa Cardoso (2007). Direitos reservados


1. Mensagem de 29 de Novembro de 2006, enviada pelo ex-1º Cabo Radiologista Cardoso, dos Serviços de Saúde Militar:

Amigo:

Estive no Hospital Militar de Hissau como radiologista de 1972 a 74 e tenho algumas fotos que gostaria que não ficassem no esquecimento. Diga-me como as hei-de mostrar no vosso blogue.
Aguardo notícias

Um abraço
Cardoso

2. Camarada Luís Graça:

Conforme combinado, vão aí as fotos que me pediu. Se as quiser publicar todas ou só algumas, faça o favor. Como lhe disse terei muito prazer em fazer parte da tertúlia e mostrar algumas fotos inéditas.
Sem mais, um abraço

Cardoso, ex- 1º cabo radiologista


3. Apresentação do ex-1º Cabo Radiologista:



Guiné > O Hospital Militar de Bissau: "No meu tempo... Como foi ficando... Como está..."


"O meu Hospital Militar de Bissau:

"Ao navegar pela Internet procurando coisas sobre a Guiné, deparei com este site e achei piada porque acabei por encontrar algo que eu procurava há bastante tempo.

"Felicito ao mesmo empo o camarada Luís Graça por esta brilhante ideia.

"A minha história nada tem de especial: fui para a Guiné em 1972 e estive lá até 1974, como 1º cabo radiologista, em rendição individual.

"Foi neste hospital que fiz o meu serviço militar.

"Ao mesmo tempo aproveito par dizer á rapaziada do hospital que me contacte para ver se conseguimos uns quantos para nos organizarmos e depois aí partirmos - quem sabe ? - um almoço convívio. Telemóvel 939 928 718.

"Um abraço a todos os camaradas. Cardoso RX"

quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1480: Guidaje e Gadamael: os marados da CCAÇ 3518 (A. Marques Lopes / Daniel Matos)

O nosso querido amigo e camarada A. Marques Lopes veio lembrar-me que, sendo coronel DFA, na reforma, já não pode andar fardado, de acordo com as normas... Daí mandar-me uma nova foto, à paisana, que irá figurar na página da nossa tertúlia.

Foto: © A. Marques Lopes (2007). Direitos reservados.


Mensagem do A. Marques Lopes:

Um amigo meu de longa data, e a quem estou farto de convidar para participar no blogue, mandou-me hoje esta mensagem:

"Olá, estás bom? Tenho tido pouco tempo para entrar no blogue e colaborar. Mas uma notícia (telejornal de 2ª feira, não sei em que canal) chamou a minha atenção: a de se pretender recuperar as ossadas de oito militares que ficaram sepultados em Guidaje, em Maio de 73 (1).

"É um assunto que me é caro, pois fui eu quem os enterrou (quem procedeu às cerimónias militares, sem salvas de tiros para o IN não os contar, por ordem do comandante!). Quatro deles são da minha ex-Companhia (Companhia de Caçadores Independente 3518).
Um abraço".

A companhia dele esteve em Gadamael em 1972/73 , eram Os Marados de Gadamael, mas em Maio de 1973 já estavam em Guidaje. Ele chama-se Daniel Matos e o mail dele é: daniel@lis.sitava.pt .

Se alguém for da companhia dele que o convença a vir falar connosco.

A. Marques Lopes

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1453: Ninguém fica para trás: uma nobre missão do nosso camarada ex-paraquedista Manuel Rebocho

Guiné 63/74 - P1479: Questões politicamente (in)correctas (23): O que podemos (ou não) fazer pelo povo guineense (Beja Santos)



Guiné-Bissau > Bijagós > 2007 > Poderá um país soberano viver (quase só) da caridade internacional ? Um pergunta (incómoda e dolorosa) de muitos dos amigos e camaradas da Guiné que fazem parte deste blogue e que não são propriamente um clube de saudosistas, antes pelo contrário gostariam de poder encontrar formas de serem activamenhte solidários para com um povo (irmão) que neste momento sofre, e sofre profundamente.

Fotos: © Jorge Rosmaninho (2007). (Com a devida vénia...). Extraído do seu blogue Africanidades (Vivências, imagens e relatos sobre o grande continente África vista pelos olhos de um branco que, por sinal, é também um portuga do pós-império)

Mensagem de 11 de Janeiro de 2007, enviada pelo nosso camarada Beja Santos:


Caro Luís, caros tertulianos, vou procurar participar na conversação bloguístca face a esta etapa de agressividade e intolerância que se vive de novo na Guiné Bissau. Como somos um fórum, bom seria que apontássemos aonde o blogue pode ir mais longe, contribuindo para a paz e o desenvolvimento do país onde mudámos de mentalidade e aderimos aos ideais de Abril. Estou convencido que virá o dia em que podemos cooperar para a formação de quadros guineenses, ajudando-os nas suas competências e qualificações. Por ora, creio que será um esforço sério aprofundarmos entre todos nós os porquês de uma vida irreconciliável que pode augurar uma tragédia inominável : uma Guiné Bissau inviável, que só resiste ao sabor da caridade internacional. Vosso, Mário Beja Santos



O sofrimento profundo da Guiné-Bissaupor Beja Santos


Trabalhei na Guiné Bissau nos últimos cinco meses de 1991. Portugal subescrevera um protocolo na área do Ambiente e da Defesa do Consumidor, já numa perspectiva de um trabalho conjunto a pensar na Cimeira da Terra, que se realizou no Rio, em 1992. A missão que eu recebi, em Lisboa, era a de apoiar as autoridades guineenses a promover a criação de uma legislação básica e de um serviço público orientado para o fomento de políticas do Estado e do associativismo livre e independente.

Tal missão , e na especificidade da Guiné, obrigou-me a contactar os departamentos governamentais da área económica, agricultura, pescas, saúde, educação e ambiente, pelo menos. Procurei igualmente conhecer os programas das agências das Nações Unidas, das fundações, decorrentes de tratados inter-estados conducentes à melhoria das condições de vida, bem como apurar o que faziam as Organizações Não Governamentais e grupos de interesse público.

Bastou-me um mês para constatar que a Administração Pública estava completamente paralisada, que as autarquias não funcionavam ou eram irrelevantes no que cabe à qualidade de vida, que não havia legislação nem vontade de a preparar, que nos mais altos cargos da Administração não se pretendia beliscar os interesses económicos instalados, claros ou obscuros.

A Bissau onde eu trabalhei desmoronava-se na coesão, na economia clandestina, na divisão entre os ricos do aparelho político e a multidão de sobreviventes. O que procurei fazer foi ouvir a opinião de quem representava o FMI, o Banco Mundial, o PNUD, a FAO, a OMS, os múltiplos programas no terreno, abarcando o saneamento básico, a criação de economia formal, os cuidados de saúde, a formação contínua, por exemplo.

De quase todos os que consultei e auscultei ouvi a mesma opinião: é um partido sem modelo económico, entregue aos altos e baixos do ajustamento estrutural proposto pelo FMI; os programas por mais generosos que sejam, nunca têm continuidade ou qualquer espécie de retorno. Prevalecem os expedientes, decididos e apoiados pela clique presidencial. Não há classe política, não há sentido dos interesses do Estado, os funcionários públicos e os professores não são pagos, enfim, nem na esfera produtiva nem na dos serviços nada funciona.

Este terrível diagnóstico levou-me a propor a criação de um serviço interministerial de defesa do consumidor com um corrdenador permanente, com reuniões mensais de todos os representantes, públicos e privados, com senhas de presença, e com a obrigatoriedade de apresentar um programa bianual de acção a favor de uma melhor cidadania no consumo e responder faseadamente pela sua execução. As autoridades portuguesas comprometiam-se a pagar inteiramente os custos deste funcionamento.

Estes documentos foram assinados pelas autoridades guineense e portuguesa e nunca levados à prática. A única experiência ditosa que trouxe foi na área da comunicação social onde a TV guineense produziu seis programas sobre a problemática do consumo numa óptica de satisfação das necessidades básicas. Depois disso nada mais aconteceu nos domínios do Ambiente e Defesa do Consumidor, continua-se sem leis nem vontade de as executar, os guineenses vivem muito pior depois da guerra e das peripécias político-militares subsequentes.

Serve este preâmbulo para vos dizer que antes de falarmos no posicionamento da Guiné-Bissau no actual espaço da CEDEAO e do franco CFA como nova moeda, e porque é totalmente inútil questionar se os povos da Guiné estão identificados com o Estado ou pôr novamente em tribunal todas as irresponsabilidades praticadas depois da independência, estou em crer que a Guiné tem severas limitações económicas, se deve reflectir como é que o quadro político, social, económico e cultural se devem reconciliar com o país.

A Guiné dos últimos 30 anos procurou desenvolver-se culpando o colonianismo, lançando-se em programas desmesurados e incompatíveis com o seu grau de riqueza, habituou-se à ajuda externa, trocou o modelo proteccionista rígido por uma liberalização que só satisfez alguns grupos de interesses, continua sem infraestruturas, sem sistema educativo, sem classe de funcionários comprometidos com o interesse público, sem saúde, sem potenciar as suas riquezas agrícolas e piscatórias.

Arrancar um país do marasmo não se faz por golpes de mágica. Tem que haver crença nas instituições, seriedade no seu funcionamento, respeito mútuo nos órgãos de soberania, sentir-se a autoridade responsável no saneamento básico, na protecção do ambiente, na desconcentração dos poderes junto de quem aceita o desafio da desconcentração e ousadia nas mudanças socioculturais travando o tribalismo e fomentando a identidade nacional. A Guiné-Bissau mostrará a confiança interna quando aderir a um Orçamento de Estado.

Arrancar um país do marasmo não se pode confinar à permanente negociação da dívida externa e dos auxílios dos doadores. Um programa de Governo (chame-se de unidade nacional ou não) tem que apostar em receber apoios para melhorar a sua produção nos bens onde está apto, desde o amendoim, passando pelo coconote, a extracção sustentável e exportação de madeiras e, sobretudo a colheita e a exportação do cajú. Os tratados económicos nas pescas deviam prever benefícios na formação dos pescadores e melhoria nos equipamentos da frota pesqueira nacional. Uma boa parte da ajuda externa devia estar afectada a planos de formação conjungando os departamentos da educação e formação profissional. A negociação da estabilização económica devia fazer-se à luz deste quadro de desenvolvimento e obter o consenso de credores e doadores.

Aliás, devia ser aq esta luz que Portugal devia restabelecer a sua cooperação, aprovado o modelo de desenvolvimento suportado pela generalidade dos partidos. Só invertendo o definhamento do Estado, só gerando a participação dos operadores económicos e dos agentes sociais, só negociando com garantias e probidade é que a comunidade internacional pode sentir que não se depende da arbitrariedade da fulanização política e vale a pena apostar numa ajuda e cooperação que esteja para lá da pressão a curto prazo e que perspective no longo prazo a coesão do Estado.

Ao nível da nossa modesta intervenção e pensando em tertulianos como o Paulo Salgado (1), devíamos reflectir para onde deve ir a cooperação portuguesa para além da língua e da formação universitária: a criar verdadeiros empresários e industriais, quadros públicos, pessoal de saúde, agricultores e pescadores. E enquanto blogue podíamos dar o exemplo: criando uma bolsa de estudo para alguém que possa contribuir para trazer mais paz à Guiné.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de

11 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1421: Crónicas de Bissau (o 'bombolom' do Paulo Salgado) (14): Um final com homenagem a um homem grande, Fernando Sani

13 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1069: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (13): Para quando África ?

Guiné 63/74 - P1478: Unidades de Guileje: Coutinho e Lima, ligado ao princípio e ao fim (Nuno Rubim)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCav 8350 > 1973 > O helicanhão, num recuerdo do nosso camarada Casimiro Carvalho.

Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.


Mensagem do Nuno Rubim, com data de ontem:

Caro Luís:

Um dia muito produtivo e ... instrutivo, no AHM - Arquivo Histórico Militar (1).

Relativamente às Companhias que estiveram em Guileje verifiquei o seguinte ( ainda há vários aspectos sujeitos a confirmação , até porque não tive oportunidade de consultar todos os processos) :

(i) Afinal e para surpresa minha, ainda sobreviveram documentos oficiais que permitem ter uma ideia bastante aproximada da suas histórias. Mas não existem os relatórios de operações redigidos pelos comandantes, peças essas fundamentais !

(ii) Se a isso juntarmos os testemunhos individuais que têm sido transcritos no teu blogue ( e aqueles que ainda surgirão.. ), já fico muito mais satisfeito, como interessado que sou na nossa história.

(iii) De todas essas unidades a única sobre a qual nada consta é, para minha eterna vergonha, uma das duas que lá comandei, a CCAÇ 1424 ! Mas se se souber o que foi o final da minha 1ª
comissão na Guiné, isso talvez não surpreenda ..., até porque a companhia ainda lá ficou, sendo devolvida ao seu comandante de origem ...

(iv) Embora ainda sob reservas, a história da CCAÇ 3477 (os Gringos de Guileje ), foi a mais completa que me foi dada analisar, detalhada, bem redigida, objectiva, com interessantes pormenores, enfim ... excelente ! A sua redacção foi, sem dúvida, elaborada pelo seu comandante, o Cap Mil Grad Abílio Delgado, ferido em combate em 24 de Julho de 1972.

(v) A 1ª unidade a ir para lá foi um GC [Grupo de Combate9 reforçado da CART 494, em Jan / Fev de 1964. A Companhia estava a instalar o quartel em Gadamael. Só mais tarde é que um grupo da CART 495, em final de Fevereiro, foi reforçar a guarnição até à chegada das primeiras forças da CCAÇ 726, em 31 de Outubro, permanecendo ainda algum tempo em sobreposição.

A CART 494 era comandada pelo então Capitão... Coutinho e Lima, que assim fica para sempre ligado ao início e fim de Guileje (2) ...

Se algum desejar rectificar ou ampliar as informações acima fornecidas agradeço.

Um abraço

Nuno Rubim

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 7 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1408: Vamos salvaguardar a(s) nossa(s) memória(s), apoiando a Liga dos Amigos do Arquivo Histórico Militar (Luís Graça / Nuno Rubim)

Instalações do AHM:

Arquivo Histórico Militar
Largo dos Caminhos de Ferro, 2
1100-105 Lisboa.

COP5 o major de artilharia Alexandre da Costa Coutinho e Lima, comandante do COP 5, na altura da batalha de Guilehe e Gadamael: Vd. posts de

2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael (Afonso M.F. Sousa / Serafim Lobato)

Reprodução da reportagem "Estamos Cercados por Todos Os Lados", de Serafim Lobato.
Público. Domingo, 28 de Dezembro de 2003.

15 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1431: Guileje: Quem (e quando) construiu os abrigos de cimento armado (Pepito / Nuno Rubim)

Pepito escreveu: (...) "Como vou aí na 3ª semana de Fevereiro [de 2007], gostaria de contactar com o [Coronel] Coutinho Lima, último Comandante do quartel de Guiledje [ou, melhor, do COP 5], elemento determinante do nosso projecto.(...) "

Vd. ainda os posts:

14 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1174: Três homens de Guileje: Nuno Rubim, Zé Neto e Pepito (Luís Graça)


15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

12 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P870: Ideias para um diorama do quartel ou quartéis de Guileje (Nuno Rubim)

Guiné 63/74 - P1477: Guileje: CCAÇ 3325 (Alexandre Agra)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 (Jan-Dez. 1971) > Crachá

Foto: © Alexandre Agra (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem de Alexandre Agra:

Amigo e Antigo Combatente,

Bom dia.

Ao fazer uma pesquisa de trabalho fui cair em Guileje!

Agradavelmente surpreendido, começo por dar o meu primeiro contributo para a história de Guileje enviando o crachá da CCAÇ 3325, que lá esteve entre Janeiro e Dezembro de 1971, sucedendo à famosa Companhia dos Magriços de Guileje [, CCAÇ 2617,] e antecedendo a [CCAÇ] 3477 (1). De lá partimos para Nhacra.

Um forte abraço.

Alexandre Agra

2. Comentário de L.G.: Obrigado, Alexandre. O nosso puzzle vai-se compondo. Diz-nos mais coisas da tua unidade e do tempo que vocês passaram em Guileje. Estás, naturalmente, convidado para ingressar na nossa tertúlia, se for esse o teu desejo.

Falei hoje com o ex-enfermeiro da CCAÇ 3325, Vitor Manuel Rodrigues Fernandes - mais conhecido na época como o Fininho. Mora na área da Grande Lisboa e é gráfico. Não conhece o nosso blogue. Não tem Internet em casa. Mas ficou entusiasmado com as notícias que lhe dei a nosso respeito. Costuma reunir-se com a malta da sua unidade todos os anos, e está regularmente com o Coronel Jorge Parracho. Estiveram juntos no verão passado, ele , o Pepito e o Parracho. A história da unidade ainda não está pronta. Dentro de dias vou contactá-lo de novo. Conhece o Alexandre Agra.
__________

Nota de L.G.

(1) As unidades sediadas em Guilele, por ordem cronológica (e respectivo contacto):

CCAÇ 495 (Fev 1964/Jan 1965)
CCAÇ 726 (Out 1964/Jul 1966) (contactos: Teco e Nuno Rubim)
CCAÇ 1424 (Jan 1966/Dez 1966) ( contacto: Nuno Rubim )
CCAÇ 1477 (Dez 1966/Jul 1967) (contacto: Cap Rino)
CART 1613 (Jun 1967/Mai 1968) (contacto: Cap Neto)
CCAÇ 2316 (Mai 1968/Jun 1969) (contacto: Cap Vasconcelos)
CART 2410 (Jun 1969/Mar 1970) (contacto: Armindo Batata)
CCAÇ 2617 ( Mar 1970/Fev 1971) > Os Magriços (contacto: Abílio)
CCAÇ 3325 (Jan 1971/Dez 1971) (contacto: Jorge Parracho)
CCAÇ 3477 (Nov 1971 / Dez 1972) > Os Gringos de Guileje (contacto: Amaro Munhoz Samúdio)CCAV 8350 (Dez 1972/Mai 1973) > Os Piratas de Guileje (contacto: José Casimiro Carvalho )


Vd. post de 15 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1431: Guileje: Quem (e quando) construiu os abrigos de cimento armado (Pepito / Nuno Rubim)

Guiné 63/74 - P1476: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça (4): Mulher tua

Luís Graça

Acabei de ler o que o Vítor Junqueira escreveu, sobre uma Mulher que foi sua na Guiné (1).

Confesso que, só depois de ler este texto lindo, compreendi o Vitor Junqueira. Estava enganado. Pensava que ele era diferente… nunca lho disse. Li coisas que ele escreveu e não gostei. Hoje emocionei-me, estou emocionado e turva-se a visão das teclas.

Sabes, senti algo do meu passado a vir, a instalar-se aqui e agora, junto de mim… Nem só de África, sei lá.. Tantas vidas!

É tarde, não quero escrever mais… deixo-me embalar no que, após a leitura, senti…Obrigado Vítor… Não se julgue ninguém de modo precipitado… Uma desculpa.

Um abraço para os dois do,

Torcato Mendonça
Fundão

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação (Vitor Junqueira)

Guiné 63/74 - P1475: Histórias de Vitor Junqueira (7): A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação

Guiné > Região do Cacheu > Biambe > Bajuda Papel, cristianizada > Uma homenagem à beleza da mulher guineense... Um "verdadeiro monumento ao amor", escreve o Vitor Junqueiro, neste post, a propósito da sua Fanta Faldé....

Série de postais ilustrados do tempo da Guiné Portuguesa, s/d nem editor... Colecção do nosso amigo e camarada José Casimiro Carvalho, outro tuga enfeitiçado... (ex-fur mil op esp, CCav 8350, Guileje e Gadamael, 1973/74)


Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.

Texto do Vitor Junqueira, ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), médico, residente em Pombal, membro da nossa tertúlia (1). Enviado em 17 de Janeiro de 2007.

Comentário (prévio) de L.G.:

(i) Amigos e camaradas: o que vão ler, é um dos mais belos textos que um homem pode escrever sobre uma mulher em tempo de guerra. O estilo é puro e duro, o título enganador... Há uma tremenda ternura subliminar que me emocionou, e que só pode honrar o homem, o médico e o português que é o Vitor Junqueiro. É um texto que nos honra a todos. É uma homenagem a todas as Fantas Baldés da Guiné que climatizaram os nossos pesadelos, e que dormiram connosco na cama...

(ii) É um texto corajoso, escrito na primeira pessoa do singular, sem máscaras, sem defesas, que muitos de nós gostariam de ter escrito. É um escrito da maturidade, um escrito que revela uma grande nobreza de alma, sensibilidade e humanidade...

(iii) É um post que definitivamente vai figurar na antologia dos melhores posts do nosso blogue...

(LG)
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Luís,

Mantenhas p'ra bó.

Como as promessas se fazem para cumprir, aqui vai um pedaço de prosa da minha lavra que gostaria de ver publicado no Blogue.

Assim como aquele texto que te enviei ontem, já tarde (2). Se for possível e quando for possível. E caso não seja, agradeço que me dês conhecimento.

Saudações cordiais,
Vitor Junqueira

A minha puta ...
por Vitor Junqueira

1. Reflexão:

Toda a gente tem a sua puta. Que nem sempre é a doce puta-amante. Na maioria das vezes é uma bem amarga puta de vida, ou uma puta de sorte ...

Não sendo um expert em matéria de putedo, tenho sobre este assunto algumas ideias próprias, nem sempre consensuais com a moral e os bons costumes prevalecentes na família portuga. Começo por dar conta de um facto: Há muita gente que, com a maior naturalidade, visiona no leitor de DVD ou televisor da sua sala, filmes contendo cenas raiando o mais puro hard core, e no entanto, se numa conversa de circunstância o tema descamba para o lado das meninas, lá vem o inevitável e embaraçoso constrangimento. Tal como proclamava o nosso bem conhecido cónego Remédios, “não havia nechechidade” ... também estes benzetas não se coíbem de grunhir moengas contra estas sem-vergonhices. Repudio os seus argumentos bacocos, moralistas e reaccionários, quase sempre eivados de indisfarçável hipocrisia.

Afinal, todos sabemos que as putas como as cadeias existem, porque existem homens e mulheres. Reconheço contudo que entre nós, este continua a ser um tema meio tabu, com conotações geralmente negativas. Veja-se, a título de exemplo, algumas designações aplicadas às principais linhagens de putas:

Entre as plebeias, assumem posição de relevo as putas do c... São uma estirpe comum que pode desabrochar virtualmente no seio de qualquer honrada família. Porém, o grosso do efectivo é constituído pelas putas reles, putas manhosas e putas rafeiras. Há quem se refira a uma variante urbana particularmente desqualificada, como putéfia de merda, também conhecida como gatinha do Cacém. Não possuindo forçosamente qualquer vínculo nobiliárquico, as reais putas, cuja patrona-mor até foi por mero acaso uma conhecida princesa, são intocáveis, quase sagradas aos olhos dos milhões de putas sérias que por aí andam e com quem dormimos habitualmente!

As putarronas têm experiência, têm estatuto e acima de tudo possuem bons amigos. Sabidonas, cuidado com elas! As minhas preferidas são as refinadas putas. São o que são e não enganam ninguém. Distinguem-se pelo seu elevado grau de profissionalismo. Fora deste elenco, ficam as putas finas. Como dizia uma comadre minha tentando defender a honra da filha: são tão putas quanto as outras, mas sabem escrever à máquina! Têm carreira própria e à pala de umas cambalhotas com peixe graúdo, tornam-se alpinistas. Olhem em redor, e vejam até onde algumas conseguiram trepar!...

Por mim, rejeito qualquer expressão ou atitude classicista ou discriminatória em relação a um grupo profissional tão antigo quanto a humanidade. Que, por sinal, até tem merecido a atenção de alguns dos maiores pensadores e poetas que a humanidade já produziu. Como argumento final e para não me esticar em demasia, direi apenas que dentro de cada um de nós, existe certamente uma putinha adormecida.

Isto não significa que não fique deveras chateado se algum chifrudo me apelidar injustamente, de filho da puta. E se o mandassem para a puta que o pariu, como é que o meu prezado amigo reagiria? Como eu, mal. Pois é, paradoxos ...

2. Vamos à estória:

Era eu um chavaleco de merda na casa dos vinte e poucos anos, quando conheci na Guiné uma refinada puta. Tão puta, que suspeito que tenha nascido já sem cabaço. Ou se o teve, foi por pouco tempo! Não era uma puta comum. Esta veio ao mundo por uma causa, com uma missão. Tinha o seu código de honra e levava-o muito a sério: À sua beira, ninguém deveria padecer à míngua de sexo, ainda que estivesse teso!

A Fanta Baldé era uma mandinga retinta, grande, de feições fortes quase viris, voz meiga e riso espalhafatoso. Nunca soube qual era a sua idade, mas julgo que seria idêntica à minha. Ouvi-a dizer que nasceu lá para os lados de Binta, e por lá se manteve até ter peso suficiente para um tuga lhe fazer um mulatinho, o Mário. Já a criança era nascida quando à cata de melhores oportunidades de negócio montou estaminé num tugúrio em Farim.

Aí, acolheu no aconchego do seu corpo torrentes de esperma, em troca dos pesos que tanta falta lhe faziam para criar o seu rebento. Mais tarde, acabou por atravessar o Cacheu vindo a fixar residência em Saliquinhedim (K3), dedicando-se à prestação de serviços em regime de exclusividade aos Barões da CCAÇ 2753 (1).

Foi aí que nos encontrámos pela primeira vez e, desde logo, uma forte antipatia nasceu entre nós. Armado em cão com pulgas, eu via naquela mulher uma fonte de complicações. Já imaginava o mais do que provável abandalhamento da Companhia com quebra na disciplina e, sabe-se lá, a possibilidade da prática de actos de rebelião na hora de sair para o mato. Assim como a exploração, a favor do IN, de fontes de informação às quais tinham acesso privilegiado os nossos militares, seus clientes, sobre os quais possuía notório ascendente. O que, diga-se, representava uma enorme e inaceitável desvantagem estratégica das nossas forças face às tropas do PAIGC.

O tempo veio a demonstrar que era apenas uma mulher e mãe. Uma boa mãe. Como nenhum daqueles temores se concretizou, acabámos por nos tornar amigos íntimos. Demasiado até, tendo em conta as marciais regras do decoro e bons exemplos!

Mas ela assim quis, e quando a mulher quer, Deus ordena. E foi assim que moenga aconteceu:

Como assíduo frequentador da tabanca, situada arames meios com as instalações militares, procurava na convivialidade com a população local o alento para o stressante dia a dia dos golpes de mão, das colunas, patrulhamentos, emboscadas, em suma, da vida em estado de guerra. Sentados no chão ou estendidos sobre esteiras, gozando a frescura relativa da tarde sob a ramagem frondosa das mangueiras, a modorra tomava conta dos corpos enquanto a neura se apoderava das mentes. Entediados por meses de permanência naquele buraco do fim do mundo, amarfanhados pela saudade dos familiares e amigos que tinham ficado na metrópole, aquelas eram as tardes mais longas de todas as tardes, como no poema do Ary dos Santos (3).

A noite, porém, metamorfoseava aquele escafundó num pedacinho de paraíso. No tabancal, quase não havia homens, pois estavam praticamente todos exilados nos pelotões da milícia de Binta e Bigene. Deles, só se sabia quando apareciam para gozar uns dias de férias e esvaziar os sacos da saudade! Talvez por isso, os lusos eram muito bem recebidos. As esposas e namoradas, carentes como se compreende, lá se amanhavam com os nossos bacanos. Mas também as mães, primas, amigas ou irmãs que nos lavavam os camuflados, o pescoço e a alma em troca de quase nada.

Depois do jantar, que era geralmente servido ao lusco-fusco, distribuíam-se as armas aos putos que tinham a seu cargo a auto-defesa da tabanca. Eram na sua maioria adolescentes, a quem os nossos antecessores tinham ensinado o manejo da G3 e do morteiro. Recolhiam as armas da mão da tropa ao fim da tarde e entregavam-nas pela manhã do dia seguinte. E sempre souberam dar conta do recado.

Quanto a nós, magníficos representantes do marialvismo nacional, uma vez montada a segurança, o objectivo passava a ser bajudame e cada um se safava como podia. No terreiro da aldeia, localizado no centro de um aglomerado de 20 ou 30 moranças, ardia uma fogueira alimentada com lenha que todos ajudavam a recolher e transportar. Espantava os mosquitos, aquecia e alegrava o ambiente. Ao seu redor, apertavam-se os nossos à molhada com os indígenas.

Havia lugar para todos e todos tinham o seu lugar. Lado a lado, brancos e pretos, fulas e mandingas, homens, mulheres grandes, jovens adultos e crianças, escutavam interessados o relato feito por alguém, que em tom jocoso, dramatizava o acontecimento social ou peripécia desse dia. Via de regra, havia sempre uma vítima, alvo de dura chacota. Que ninguém levava a mal.

Às tantas, um ritmo de batuque, cantoria e risos de mulher enchiam o ar fresco da noite com cheiro a África. Para tanto, bastava que alguém desse início a um som com as palmas. E logo as palmas de muitas mãos acompanhavam aquele ritmo. Qualquer velha lata ou cabaceira, primorosamente percutidas por mãos experientes ou improvisadas baquetas, produzia uma música a que os corpos não resistiam, e recusando o controlo da vontade, gingavam ao ritmo da batida. Para o centro da roda, saltava então uma mulher, depois outra e outra. Curvadas para a frente, muitas vezes com os pequenitos na costa, batiam o chão, forte e compassadamente, com os pés nus. E logo a pequenada toda, as bajudas, honradas mães de família e outras menos honradas, toda a gente participava naquela dança quase frenética em que os cânticos entoados por conhecedores transformavam num ritual cataléptico que podia durar horas, e só terminava quando os corpos trémulos e suados pediam descanso, ou o quadro que fornecia luz à tabanca era desligado. Na esteira ficavam apenas os coxos e o mija na escada, moi, eu!

O convívio continuava então, mais terno, mais íntimo, com a cumplicidade da escuridão traída por esquivos reflexos das labaredas moribundas. Numa dessas noites, quando a maioria do pessoal já havia recolhido a penates, a Fanta aproximou-se de mim, risonha, e num crioulo palpitante disse-me:
- Zunqueira (tinha problemas com a dicção do meu nome), preciso falar contigo.
- Então fala, diz o que é que queres, respondi.
- Zunqueira, aquilo que tenho para te dizer ... tem de ser em minha casa. Vem por favor - disse ela. Disse-o como se fosse uma ordem, e num passo ligeiro e silencioso, pôs-se a caminhar à minha frente.

Fiquei intrigado, receoso mesmo. Ocorreu-me que quisesse pedir qualquer coisa para o filhote. Ou estaria ela a tramar alguma armadilha, a mando do IN? Mas, dado que noblesse oblige ..., senti-me impelido a seguir-lhe a silhueta através do labirinto de moranças, àquela hora escuro e deserto. Chegados à sua porta, no extremo oposto da tabanca quase junto ao arame farpado, accionou a taramela que garantia a segurança da sua espartana habitação.
- Vem, disse em voz ciciada, afastando-se para me deixar passar.

Instintivamente agarrei a coronha da [pistola] walter que levava escondida no bolso do dólmen. Contudo, o seu sorriso descomprometido tranquilizou-me. Entrei.

A casa tinha apenas uma divisão com chão de terra batida. Do lado esquerdo, arrumado à parede, um leito de ferro sobre o qual um colchão de espuma coberto com uma colcha cor de rosa impecavelmente limpa, sem uma ruga. Um pequeno caixote servia de mesa de cabeceira e evidenciava a singeleza do local. Em cima dele, um luxo, um candeeiro a petróleo cuja luz subiu. Pude então destrinçar junto à parede oposta um camita de madeira onde dormia placidamente o pequeno Mário. Esta visão acabou com os meus receios, senti-me completamente descontraído.

No pouco espaço disponível entre as duas camas, a Fanta volta-se para mim e apontando com o queixo para o pequenito, apoiou o indicador sobre os lábios em sinal de silêncio. Ostentava um sorriso enigmático a que luz velada do candeeiro realçava o brilho dos olhos e a brancura dos dentes. Acheia-a diferente, parecia uma garota.

Num gesto rápido fecha a porta, e sem uma palavra aproxima-se mais. Sinto-lhe o hálito, as formas e o calor do corpo. Delicadamente, como a pedir licença, envolve-me com os braços e aproxima a sua boca da minha. Um beijo rápido, carregado de promessas que me deixa paralisado. Balbucio uns nãos pouco convictos que só servem para reforçar o ímpeto com que se atira à tarefa de me despojar da farda e das botas. Sinto as suas mãos percorrerem-me o corpo à procura de fechos e botões enquanto me vai tocando com os lábios.

Sei que estou arrumado. Cheio de princípios e convicções, já não disponho de forças nem vontade para bater em retirada. Vejo-a pegar no cinturão carregado de artilharia, que atira sem cerimónias para cima das roupas caídas no chão. Troça despudoradamente:
- Zunqueira, para que andas com isto? Se eu quisesse fazer-te mal de que é que estas coisas te serviriam?

Xeque-mate, sem discussão! Num abrir e fechar de olhos, está nua. À volta dos quadris, um cordão de cheirinho, realça-lhe a feminilidade. Trata-se de uma enfiada de pequenas bagas escuras colhidas no mato que libertam uma oleosidade perfumada. Afasta a colcha e estende-se sobre o lençol branco. O contraste com a cor do seu corpo tem um efeito estonteante. E que corpo, Senhor! Que coxas, que mamas! Fico ali, ridículo, confuso, convulso, com tusa, em três pernas.

Aí, ela estendeu-me a mão e num convite cheio de sensualidade, puxou-me para junto de si. Acaricio-lhe a pele macia e aveludada com que a natureza brindou as mulheres negras. Percorro-lhe a pentelheira de um crespo sedoso, perfeitamente recortada, na busca dos recantos mais secretos daquele verdadeiro monumento ao amor. Claramente excitada, o seu corpo procura o meu que, tomado por uma espécie de frenesim, já só pede os finalmente.

A Fanta porém, conhecedora do seu ofício e com o saber fazer que o profissionalismo confere, com a docilidade e delicadeza que lhe eram próprias, lá foi tomando conta das operações. Controlando-me os gestos e moderando o impulso, ensina-me a beber repetidamente da cantarinha.

Alta madrugada, enrosca-se, envolve-me, retém-me o mais que pode. Faço-a entender que o meu regresso ao aquartelamento é imperioso. Submissa cede, e acompanhando-me à porta sussurra:
- Zunqueira, logo espero por ti.
- Não sei Fanta. Vou precisar de descansar porque o dia vai ser duro - respondi de forma evasiva para não criar falsas expectativas.

E abalei, ciente de que aquele só poderia ter sido deslize único que de forma alguma poderia repetir-se. À vista da sentinela, passo pela suprema humilhação de ter que me identificar:
-Quem vem lá faz alto! - diz o cabrão, perdido de gozo!

Sorrateiramente, para não acordar o camarada com quem partilhava o quarto, enfiei-me debaixo do mosquiteiro. Adormeci que nem uma pedra a pensar que aquela (volto a citar o Ary):

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram... Aquela e as seguintes. Porque durante mais de um ano, foram poucas as noites em que não dormi entre as pernas da Fanta. O caso assumiu foros de escândalo. O alferes Junqueira que alguns consideravam o homem mais disciplinado e disciplinador da Companhia, caíra de joelhos numa rendição incondicional, vencido pelo feitiço de uma mulher ... pública. Inacreditável. Ela deu-lhe alguma mezinha a beber, diziam uns, ou o caso tem mistério afirmavam outros. Nada disso, garanto eu. O que houve foi uma luta desigual. De um lado, os atributos físicos e a juventude de uma mulher simples, extremamente doce e feminina na cama. Do outro, a fraqueza da carne, bem rija na altura.

A Fanta nunca frequentou a escola mas possuía uma notável sabedoria de experiência feita. Acho que era sábia. Tinha tiradas de índole filosófica que me deixavam de cara à banda. Com ela aprendi bastante. Sobre a vida, o mundo e as pessoas. E o sexo, já agora! Fiquei a saber, por exemplo, que até as coisas têm alma, podendo continuar a existir mesmo depois de materialmente terem desaparecido!

Avizinhava-se o final da comissão. Havia uma data prevista para a rendição, com entrega das instalações a uma Companhia de periquitos. Por maior sigilo que se quisesse guardar quanto a estas movimentações, o segredo era invariavelmente quebrado como se sabe. No entanto, talvez por dever, mas certamente por cobardia, eu nada disse à mulher com quem tinha literalmente vivido nos últimos meses. Mas ela sabia de tudo havia tempo, mas nunca tocou no assunto. No dia da partida, pouco depois do sol nascer, estava eu ainda deitado quando bateu à porta, pedindo licença para entrar. Levantou o mosquiteiro e sentou-se a meu lado. Estávamos sós. Voltou-se para mim e sorriu, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe corriam pela face.
- Zunqueira, tu ias embora sem te despedires de mim!? - O tom era de mágoa e tristeza.

Senti-me um verme. Gaguejei sem saber o que dizer, mas lá arranjei arte para arquitectar umas mentirolas:
- Estás maluca Fanta, vou lá embora agora ...

Bem, eu devia meter dó, porque foi isso que li nos seus olhos. Limpou as lágrimas e passando-me para a mão um pequeno embrulho, foi dizendo:
- Zunqueira, quero que leves esta lembrança. É coisa pouca, mas acho que vais gostar.

Fiquei siderado. Pela atenção e carinho que não merecia. Pelo remorso. Desfiz o embrulho e retirei uma lanterna eléctrica daquelas de tipo espalmado, com uma grande pilha rectangular, dentro de uma caixa metálica cor de tijolo. Devia tê-la mandado vir de Bissau, com a devida antecedência. Muito tempo antes, eu tinha deixado escapar que, ao regressar todas as madrugadas ao quartel, tinha alguma dificuldade em orientar-me por entre as tabancas (moranças) na noites mais escuras.

Durante todo o tempo em que dormi com a Fanta, ela nunca me pediu nada, nunca aceitou nada. A não ser algumas latas de leite condensado Néstlé, meia dúzia talvez, que lhe levei para o filho ainda bebé. Terá vivido julgo eu, de economias, porque durante esse período se absteve completamente do negócio. Se aquele pequeno objecto valia uma fortuna para uma população que praticamente não tinha acesso ao dinheiro, para ela então, teria sido uma autêntica extravagância.
- Fanta, eu não posso aceitar. Desculpa, mas não posso mesmo. Na casa onde compraste, talvez te possam fazer a troca por qualquer coisa útil para o teu filho, insisti.

Dei-lhe a entender que se por um lado, aceitar o presente me deixava embaraçado, por outro, aquilo era um desperdício... dinheiro perdido.

Cada cavadela, cada minhoca, como se vê. A emenda estava a sair pior que o soneto. Nesse momento a expressão da Fanta tornou-se séria e fixando-me nos olhos, retorquiu:
- Sabes, Zunqueira, só se perde e deixa completamente de ter valor, aquilo que consumimos para satisfazer o nosso egoísmo. O que oferecemos ou partilhamos com os outros, existirá para sempre. Porque mesmo depois de já se ter transformado em pó, continuará a existir na cabeça e no coração daqueles de quem um dia gostámos.

Não voltei a encontrar a Fanta. Confesso que durante muito tempo, após a passagem à disponibilidade, continuava a lembrar-me dela, com saudade. Tive vontade de regressar à Guiné para a visitar, saber se precisava de alguma coisa. Encontrei sempre desculpas para não o fazer.
Aproveito agora para comunicar a quem possa interessar que a Fanta Baldé faleceu em Julho de 2005 no Bairro Militar, em Bissau.

Como diz o povo na sua bondade: Paz à sua alma e que a terra lhe seja leve.

Quanto ao filho Mário, estive com ele há uns três anos. Era então um jovem robusto de trinta e quatro anos de idade, pouco dado ao trabalho, casado, com um filho pequeno. A vida não lhe corria nada bem, pois uma espécie de Bar-Discoteca que geria em Farim, havia falido uns sete ou oito meses antes.

Descobri entretanto que o pai é um ex-militar de uma Companhia que chegou a Binta por volta de 1969/1970, de nome Mário Figueiredo. Originário da zona de Mangualde, encontrava-se na altura (2003), emigrado no Reino Unido.

Dedico esta narrativa absolutamente naïve, ao estilo de conto da revista Maria, à memória da Fanta. Com este despretensioso texto, pretendo também homenagear todas as Putas do mundo, muito em particular aquelas que conhecemos enquanto combatentes na guerra colonial.

Mulheres anónimas, a quem a sociedade continua a aplicar o labéu de fáceis, franquearam-nos a alma enquanto nos vendiam corpo. Foram amigas e confidentes discretas. Ofereceram-nos o colo ou simplesmente um ombro sereno que nos ajudou a apaziguar a torturante saudade de esposas, namoradas e, porque não admiti-lo, até das mães. Não posso prová-lo, mas estou convicto de que, sem o seu oportuno apoio, alguns teriam sucumbido àqueles tempos difíceis e não seriam os cidadãos equilibrados e válidos que são hoje.

Vitor Junqueira

Pombal, 17 de janeiro de 2007
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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes da série de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto

5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida

(2) Vd. alguns dos post anteriores:

11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

7 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1255: Dicas para o viajante e o turista (1): A experiência e o saber do Vitor Junqueira

(3) Vd. post de 17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1439: Questões politicamente (in)correctas (19): Os rambos só existem no cinema (Vitor Junqueira)

(4) Extracto de: Estrela da tarde,de Ary dos Santos

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!


In:
José Carlos Ary dos Santos > As palavras das cantigas (organização, coordenação e notas de Ruben de Carvalho). Lisboa: Editorial Avante. 1989, p.58.

terça-feira, 30 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1474: O capelão Mário Oliveira, de Catió, que ia a Bedanda (Mário Bravo)

1. Mensagem do Mário Bravo, médico

Luís Graça

Acabei de falar com o Bernardo Amaral, o meu colega, que me acabou com as dúvidas acerca do tipo que está na fotografia e que se chama Mário Oliveira (1). É mesmo o tal capelão que ia a Bedanda [, CCAÇ 6], mas estava estacionado em Catió [, CCS/BCAÇ 2930].

Digo-te que já gastei muitos minutos a ver e ler o blogue. Ontem, falei com um amigo meu da Figueira da Foz e que esteve em Jabadá e, como lhe dei o endereço, lá foi matar saudades.

Aproveito a ocasião para te dizer que o meu número de TM é 936259162, que está ao teu dispor e daqueles que entenderem fazer contacto.

Cumprimenta

Mário Bravo

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 28 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1469: Bedanda, manga de saudade ou uma dupla sinistra, o padre e o médico (Mário Bravo, CCAÇ 6)

Guiné 63/74 - P1473: Álbum das glórias (6): A 'dolce vita' de Bolama (Joaquim Mexia Alves, CART 3492)

Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > Bolama > CART 3492 > 1972 > "No jeep. Da frente para trás: Alf Canas, Alf Novais, Alf Lima (Secretaria?), Alf Rodrigues (meu camarada de curso, também que era da CCS e veio depois para o Xitole, por troca com o Alf Gonçalves Dias se não me engano), Alf Martins (CART 3493, Mansambo) e eu".


Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > Bolama > 1972 > CART 3492 > "Eu e o Furriel Nunes, do 4º pelotão, se não me engano"



Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > Bolama > 1972 > CART 3492 > "Num jipe à porta do Hotel Turismo".

Fotos e legendas: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados.

Álbum do Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, que de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973 passou por três unidades no TO da Guiné (1):

(i) pertenceu originalmente à CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas),
(ii) antes de ingressar no Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão)
(iii) e depois na CCAÇ 15 (Mansoa ).

A CART 3492 pertencia ao BART 3873.
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Nota de L.G.

(1) Vd. posts de:

5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1401: Com a CART 3492, em Bolama, no Reino dos Bijagós (Joaquim Mexia Alves)

12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)