1. Em mensagem do dia 3 de Março de 2015, o nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), enviou-nos este texto de homenagem a seu Pai Joaquim Dias Gaspar.
Meu Pai, meu Velho, meu Camarada
Meu Pai
(… ) “Pai. Quero que saibas,
cresce uma luz fina sobre mim que sou sombra,
luz fina a recordar-me de mim,
ténue, sombra apenas.”
José Luís Peixoto
O meu pai, Joaquim Dias Gaspar, nasceu na aldeia de Casegas, concelho da Covilhã. Era um dos nove irmãos. Família de padeiros – trabalho fulcral da família – e depois de um trabalho árduo, iam crianças ainda, a pé, meu pai e meus tios frequentemente à Covilhã, transportar grandes quantidades de carvão para ser vendido, visto terem nascido numa terreola muito pobre. Os seus habitantes viviam do trabalho na agricultura, na pastorícia, da venda do carvão, eram almocreves e trabalhavam noutros ofícios. Mas a fonte principal de trabalho vinha da emigração para outros países, procurando igualmente trabalho nas colónias portuguesas.
A partir do século XX começaram muitos dos seus habitantes a trabalhar nas Minas da Panasqueira, isto devido procura do volfrâmio, para as ligas metálicas do armamento, motivado pela 2.ª Grande Guerra Mundial, muito embora esta empresa mineira tenha iniciado a laboração em fins do século XIX.
Três dos meus tios emigraram para a América, trabalhando na construção dos caminhos-de-ferro. Aqueles que emigravam, normalmente voltavam à sua terra natal, comprando com o dinheiro amealhado, terrenos de cultivo, pinhais e construindo as suas casas no povoado. Foi o sucedido com estes meus tios. O meu pai tinha três irmãs que viveram sempre na aldeia. Os outros partiam para Lisboa e arredores, e sendo padeiro analfabeto, meu pai, ainda criança, partiu no comboio a caminho do Poço Bispo, onde trabalhava um irmão. Como era um óptimo trabalhador, esteve com outros patrões – e os tempos eram difíceis para se conseguir sobreviver sem emprego – mas nunca esteve desempregado.
Casou-se, e enviuvou, a mulher faleceu com a tuberculose, não tendo filhos da mesma.
Trabalhava no Poço de Bispo e conheceu a minha mãe, filha de um abastado comerciante, ficando a morar numa casa que dava para o apeadeiro dos Olivais, onde nasceram os meus irmãos, na freguesia de Santa Maria dos Olivais.
E um dia, o meu pai, que se encontrava na padaria onde trabalhava, foi confrontado por um cauteleiro amigo, que lhe queria vender jogo, era o único vício que tinha: comprava uma cautela por semana, e àquele cauteleiro. Este insistiu, insistiu, e o meu pai sempre a recusar.
Meu Pai, Mãe, irmãos e eu (Bebé)
E um dia, o meu pai, que se encontrava na padaria onde trabalhava, foi confrontado por um cauteleiro, que lhe queria vender jogo, era o único vício que tinha: comprava uma cautela por semana, e àquele cauteleiro. Este insistiu, insistiu, e o meu pai sempre a recusar. Vestia ainda roupa de trabalho, calça e casaco branco. Foi para casa descansar. Depois de dormir e regressar ao trabalho, surgiu o cauteleiro, que lhe diz baixinho:
- Senhor Joaquim tem a sorte grande!
O meu pai respondeu:
- Como posso ter a sorte grande se a cautela que me vendeu está branca?
O cauteleiro retorquiu:
- Então veja no seu bolso!
É quando o meu pai vê que realmente tinha uma cautela dobrada no bolso do casaco.
- Tem aí a sorte grande! – Disse o cauteleiro.
E era verdade, o meu pai ganhara o primeiro prémio da lotaria. Falou com o patrão – o Castanheira de Moura, um industrial com sucesso – e este deu-lhe sociedade. Mas, porque não recebia lucros, decidiu depois de analisar a situação, propor a venda da quota e trabalhar por conta própria. Teve de solicitar a um amigo um empréstimo monetário e tomou de trespasse uma padaria em Sintra. Não tinha clientela, mas como bom trabalhador e com a ajuda da minha mãe – que se encontrava grávida – conseguiu diminuir a dívida.
Mas estávamos em plena 2.ª Guerra Mundial e havia dificuldades em comprar farinha, que não era fornecida pelas moagens em quantidades exigidas. O meu pai comprou uma mula e uma carroça, e percorria toda a zona saloia procurando moleiros que lhe vendessem tal preciosidade.
Nasci eu.
Um outro industrial, invejando o sucesso do meu pai, fez queixa às autoridades. O meu pai tinha de comparecer em tribunal. Revoltado, faltou. Trespassou a padaria em Sintra e foi para À-dos-Loucos, no alto de Alhandra, tendo de seguida tomado de trespasse uma padaria em Alhandra, com pouca clientela.
Como a minha mãe herdara uma quinta em À-do-Barriga, concelho de Arruda dos Vinhos, dividia a sua vida, trabalhando na padaria – que progredia de dia para dia – e na quinta, onde trabalhava o resto do tempo. Era um industrial analfabeto mas em progressão, e pouco tempo lhe restava para descansar. Entretanto, eu com doze anos, ensinei-lhe a ler e a escrever, tendo feito o exame da 3.ª classe, comprou um carro e construiu uma vivenda na quinta. No dia que comprou o carro, comprou lotaria na Rua Arco da Bandeira, junto ao cinema Animatógrafo, tendo-o acompanhado. Entretanto viu-se obrigado a entrar para uma Sociedade por quotas, no Concelho de Vila Franca de Xira, depois de nós, os três filhos, nos termos recusado a fazermos a vida como industriais de panificação. A vida foi dura, para um padeiro duro, beirão e analfabeto, que teve sempre com ele uma mulher – a minha mãe, e minha heroína – que inteligente como era lutou com ele.
Na véspera da minha partida, com destino à Guiné – pelas 24 horas do dia 10 de Janeiro de 1967 – quando me despedia da minha mãe, e contra tudo o que pensava, a minha mãe manteve-se serena, e pela primeira e única vez vejo o meu pai chorar. Julgava que ele não tinha lágrimas, e que simplesmente lhe jorrava no corpo o suor, sobre as massas, quando enfiava pazadas de pão no forno. Mas o meu pai chorou, e eu como combatente… Chorei para o interior. Sofreram os 22 meses da minha comissão.
Anos depois, no Hospital de Santa Maria – após operação à próstata – perguntou-me:
- Quando estiveste na Guiné sofreste, não sofreste? - Sabes que no dia que foste com o pai comprar o carro me saiu um prémio grande na lotaria?
Calei-me. Ele foi um grande homem, sempre pronto a ajudar, principalmente os pobres que não lhe podiam pagar o pão. Um dia, meu pai pediu que ficasse na padaria. Estava no interior e vi um pobre tirar um pão de dezassete tostões do balcão e deixei que ele o levasse. Disse ao meu pai e respondeu-me:
- Era um pobre não faz mal.
A minha mãe morreu, e passado não muito tempo, meu pai foi-lhe fazer companhia.
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de março de 2015 >
Guiné 63/74 - P14354: Meu pai, meu velho, meu camarada (42): 1.º Cabo Manuel de Assunção Peres (1912-1997), meu sogro, que fez tropa em Elvas... Um dia, quando teve uma curta licença para férias, foi a pé até Castro Verde (, o que em linha reta são mais de 200 km)... (José Colaço)