Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/67) > Tânia (*), Maria do Céu (**), Miriam (***)... algumas das mulheres do "Calças de Palanco", aliás, "Vagabundo", aliás "Ranger", aliás "Mamadu"... Umas cuidavam das feridas do corpo, outras as das feridas da alma...
Foto: © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Do mesmo autor já aqui publicámos, em 2008, em dez postes, o seu fascinante
livro "Pami N Dondo, a guerrilheira", ed. de autor, Estoril, 2005, 112 pp. (****)
Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. Foto em baixo, à direita, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais, março de 2016]
Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XXIII Parte > Cap XIV (pp. 81-83)
por Mário Vicente
Sinopse:
(i) faz a instrução militar em Tavira (CISMI) e Elvas (BC 8),
(ii) tira o curso de "ranger" em Lamego;
(iii) é mobilizado para a Guiné;
(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na
Guerra");
(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;
(vi) chegada a Bissau a 17:
(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;
(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;
(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;
(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):
(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;
(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;
(xiii) chega a Cufar o "periquito" fur mil Reis, que é devidamente praxado;
(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno;
(xv) "Vagabundo" passa a ser conhecido por "Mamadu"; primeira baixa mortal dos Lassas, o sold at inf Marinho: um T6 é atingido por fogo IN, na op Retormo, em setembro de 1965;
(xvi) a lavadeira Miriam, fula, uma das mulheres do srgt de milícias, quer fazer "conversa giro" com o "Vagabundo" e ter um filho dele;
(xvii) depois de umas férias (... em Bissau), Mamadu regressa a Cufar e á atividade operacional: tem em Catió, um inesperado encontro com o carismático capelão Monteiro Gama...
(xviii) Op Tesoura: dezembro de 1965, tomada de assalto a tabanca de Cadique, cujas moranças são depois destruídas com granadas incendiárias.
(xix) Cecília Supico Pinto e outras senhoras do MNF visitam Cufar no início do ano de 1966 e Mamadu é internado no HM 241 (Bissau).
(xx) um mês depois, regresso a Cufar, regresso à guerra. Põe o correio em dia. Lê e relê a carta de Maria de Deus [MiMê], uma paixão escaldante dos tempos de "ranger" em Lamego e por quem estava quase para desertar, antes da data de embarque para a Guiné; a jovem morrerá prematuarmente, em França, aos 24 anos.
Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXIII Parte: Cap XIV: Regresso à guerra (1) (pp. 81-83)
XIV Regresso à Guerra [1]
Passado um mês, e aí está Mamadu, embora sem forças e mais magro que um cão, com cinquenta e cinco quilos apenas, na sua bela Cufar para entrar na má vida. Aos poucos, com os caldos de galinha de Miriam, vai recuperando e passados quinze dias, é dado como operacional.
Tinha correio para ler para mais de um mês, pois Maria de Deus continuava a escrever todos os dias, mandando poesias e dando sugestões pelas recebidas. Foi tempo de pôr a escrita em dia. Seus pais andavam alarmados pela não recepção de notícias, mas não lhes iria contar o que acontecera. Como o António de Salzedas, com ele tudo estava bem, tinha sido só uma distracção, coincidente com problemas de correios pela época Natalícia.
Mas, no mato há sempre a tentação do retorno a pensamentos anteriores. Salta da cama, vai à mala e retira uma carta daquelas que se lêem muitas vezes, e, estendendo-se novamente sobre a cama, relê:
................
"2 Fevereiro de 1966
"My love:
Espero encontrar-te completamente restabelecido fisicamente, e que psiquicamente te mantenhas forte.
Meu Bem!
Esperava que a tua fuga em frente se desse em breve mas, de facto, não tão rapidamente. Piamente reconheço, teres absoluta razão.
Seria neste momento ideal a metamorfose da envolvente existência dos nautas desta caravela. Mas é impossível pois, eu não posso metamorfosear-me em Tânia, nem tu em Jorge ou vice-versa.
Somos a peculiar expressão da vontade de alguém superior, que nos exige expiação pecaminosa, na própria existência neste vale de lágrimas. Continuo no Colégio. Há pouco, à saída da missa matinal, falei sobre tudo isto com a nossa Comadre. Enquanto não temos a primeira aula, vim para o quarto falar um pouco contigo.
Sim, não há dúvida que estás certo. A tua deserção e a concomitante minha menoridade, ir-nos-ia levantar sérios problemas.
Ainda bem que a corrente em que Tânia te envolveu é inexpugnável.
Enquanto orava na missa, ia pensando em nós e cada vez mais confirmo que cometemos e estamos cometendo adultério. Mais grave! Considero incestuosa a nossa ligação. Como tu dizes, é verdade que estamos no fim da picada.
Meu bem, fomos amantes, somos e seremos eternamente amigos, mas mais que tudo isso, é real existir entre nós um relacionamento como irmãos.
Eu reconheço que voltaria na minha vulnerável forma de ser, a pecar de novo. Adúltera assumo, novamente adoraria abrir-te a camisa, e repousar a cabeça na almofada do teu peito, sentindo o teu coração bater e as tuas mãos em doce "chamego" acariciarem a minha cabeça.
É adorável recordar! Fragilizada, choraria de novo no teu peito. Está retida como se neste momento fosse a tua calma e suave voz, depois de me enxugares os olhos com os teus melífluos lábios: "MiMê! Como é? Tens o mar nos olhos? São cristais de sal as tuas lágrimas!?"
Como foste doce e meigo, meu irmão! Não consigo compreender! Como consegues homem para a guerra, transformares-te em doação total?
Meu bem, estás com o pensamento noutro local?
Não! ... Não ... tenho ciúmes de Tânia, assim como sei que não tens ciúmes de Jorge.
Só que ... Pronto! Esqueçamos, meu bem!
A vida pregou-nos esta partida, mas a culpa é totalmente minha, fui eu, reconheço-o perfeitamente, e reafirmo eu!
Pratiquei incesto em espírito! Que Deus me perdoe, porque tu, meu querido irmão, sempre me tens perdoado. Não forçaste nada, apenas eu me doei!
Querias ser missionário, não era? Estou portanto em confissão! Segredo!
Brincadeira... não ligues, como poderia um missionário transformar-se em guerreiro? Não é? Mas é dúvida onde ainda não cheguei.
Tenho de terminar por agora. O sino tocou para as aulas. Logo continuo ...
Cá estou de novo. Agora, já noite, posso estar contigo o tempo que quiser.
Levei todo o dia a pensar nas tuas últimas cartas e vou rebatê-las com uma certa dureza. Não penses que são ciúmes, é a pura verdade. Palavra de MiMê!
Meu querido, se Tânia gostasse de ti, meu tonto, já te tinha dado um sinal! Não sejas ingénuo, meu bem. Perdes a inteligência com Tânia? Agora que temos as coisas bem definidas e que para mim és mais que tudo um irmão, ouve o que em momento puro de loucura tenho para te dizer:
A única forma de saíres da quadratura em que estamos envolvidos, é fazeres a guerra, meu amigo! A guerra, meu irmão!
Já viste?! ...
Se morreres aí, ainda que no caixão venha um preto em substituição, por tu teres ficado feito em picado, ninguém dá por isso. E será maravilhoso! Ficas um herói. A dor do teu pobre pai será exposta ao mundo Português no Terreiro do Paço recebendo a Cruz de Guerra a título póstumo. Terás o nome inscrito numa rua da tua terra na tua planície. Os teus amigos e conterrâneos acompanhar-te-ão até à última morada, onde terás honras militares com descargas e tudo. E porque não a própria banda dos excluídos que dizes existir na Escola de Reeducação onde trabalhaste, não te acompanhará, tocando marchas fúnebres!?
E quem sabe? A própria Tânia se vestirá de preto e estará presente, depositando uma rosa branca sobre a bandeira nacional que cobrirá o teu féretro?! ... Já viste coisa tão linda, poética e sentimental?
Para ti é que seria o pior, partirias. Se morreres ... apagou-se! Meu irmão e amigo.
Desculpa a morbidez! Mas também hoje não sou eu!
Estou completamente fragilizada, extenuada! Como deves reparar pelos borrões na carta, estou a chorar.
Quereria fazê-lo no teu peito. Amei-te, doei-me total e incondicionalmente a ti, homem transformado em ídolo.
ln this moment, I need you, my friend, my brother. Forever yours,
MiMê! Finalmente Maria de Deus terá compreendido!
Embora preocupado com a forma louca como escreveu tudo isto, Mamadu não teve dúvidas em que continuariam bons amigos. MiMê, quem seria Mamadu para não te perdoar, ou para te jogar a primeira pedra? São reconhecidas as tentativas de fuga às encruzilhadas tecidas, na teia da vida. Mas um ser superior traçou estes percursos. Mesmo descalços, coração sangrando, percorram-se esses destinados caminhos. O odor do corpo de Mimê, voltou como loucura às narinas do furriel.
Regredindo, voltou aos momentos de volúpia e de total entrega entre dois seres na alvorada da vida, fez um esforço de negação, e o homem guerra, sentiu a rala barba orvalhada, por pérolas saindo dos olhos e o coração doeu. Mamadu reflectiu e teve reconhecimento perante a dádiva de tantas outras, mulheres grandes quase crianças, da obra que fizeram levando o seu alento junto daqueles jovens, homens fabricados à força e perdendo os melhores anos da sua juventude, vivendo nas mais miseráveis e terríveis situações.
Não!... Não haverá palavras para agradecer a todas elas aquilo que levaram junto do soldado Português.
(Continua)
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(...) Tânia, comigo irão sempre a tua franzina figura e teus negros olhos cintilantes. A tua negação ficará eternamente cicatriz aberta, dentro do peito do cigano errático em que me transformei. O resto será aventura. Olhou para os amigos e lembrou-se das palavras de Niotetos: nunca mais seria a mesma pessoa. Um abraço a todos e até ao meu regresso. Esperem pelo Vagabundo, gritou, sem nenhum som lhe sair da garganta. (...)
(**) Vd. poste de 8 de maio de 2016 >
Guiné 63/74 - P16063: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - IX Parte: VI - Por Terras de Portugal: (iii) Lamego, Oeiras...
(...) Os esgotos da cidade [de Lamego] tomam-se caminhos conhecidos pela matula, em noites de percursos fantasmas, com petardos de trotil pelo meio. Aqui existe outra mulher especial na vida do ranger que consegue incutir força para a resistência. Apesar dos seus dezoito anos, Maria de Deus explica ao jovem militar a razão das coisas, mas não consegue influenciá-lo a fugir das terras para Norte. No entanto aqui começou uma louca doação. Ao aquartelamento de Cufar na Guiné chegarão, mais tarde, montes de cartas e aerogramas, trocar-se-ão poemas, falar-se-á da vida, da guerra e da morte. Haveria que fazer qualquer coisa!... A jovem incute no militar a aventura da fuga para França durante as férias. O militar prepara-se para a loucura, mas… há os velhotes e, nas terras para os lados do Norte, Tânia essa estranha força mais forte que o vento, não deixa voar o pensamento acorrentado de Vagabundo. Tão forte na guerra e tão frágil pela imagem de uma mulher que nunca será sua!... Uma mulher, que possivelmente até a sua existência já desconhece. (...)
(...) – Furiel!... tu é Mamadu, home balente, bó na bai na mato e cá tem medo, Miriam gosta de furiel. Eu sabo tu é branco, a mim preto! Miriam quer fazer cumbersa giro com furiel Mamadu! (...)