Guiné-Conacri > Conacri > A antiga catedral do arcebispo católico Raymond-Marie Tchidimbo: a pedido do Vaticano, este homem, que simpatizava com a "causa nacionalista" do PAIGC, intercedeu, junto de Amílcar Cabral, em 16/9/1970, com vista a obter notícias do nosso camarada Geraldino Marques Contino, aprisionado pelo PAIGC em 3/2/1968. (*).
Fonte: página Campo Boiro > Memorial > Bibliothèque (com a devida vénia)
1. Comentário do nosso colaborador permanente, Jorge Araújo, ao poste P10076 (*);
Camaradas,
Na sequência dos comentários produzidos no final da Parte I [P18027] (**) prometi dar-vos conta, após a publicação desta segunda parte, sobre o porquê da prisão do Arcebispo de Conacri, verificada um mês depois da «Operação Mar Verde», facto que consideramos de relevante valor historiográfico no contexto da guerra, pois essa operação acabou por influenciar as novas formas de acção e o sentido de cada uma delas ao longo dos tempos que se seguiram, traduzido no reforço da aliança entre Sékou Touré e Amílcar Cabral.
Com efeito, a justificação para o seu cativeiro foi retirada [e traduzida] do livro «Noviciat d’un évêque: huit ans et huit mois de captivité sous Sékou Touré» [«Noviciado de um bispo: oito anos e oito meses de cativeiro sob o regime de Sékou Touré»], Paris: Fayard, 1987. 332 p., obra escrita em francês da autoria de Raymond-Marie Tchidimbo [1920-08-15/2011-03-26] – o prisioneiro.
O texto que seguidamente se apresenta, com tradução da nossa responsabilidade, serve apenas para enquadrar a problemática acima.
TRADUÇÃO
Porque fui preso?
Após a minha libertação em [7 de Agosto de] 1979 [uma semana antes de completar cinquenta e nove anos], deram-me a oportunidade de realizar diversas conferências sobre a experiência de cativeiro na presença de audiências interessadas. Em cada uma delas, punham-me a mesma questão: «porque foi preso?».
Mas em cada uma também, perante esses públicos atónitos, eu respondia, em primeiro lugar, que era uma pergunta que nunca formulei em cativeiro. Porquê? Porque, simplesmente, uma resposta – e a única verdadeira – já havia sido dada nos anos 30, por aquele que me escolheu dois mil anos depois para servir na sua presença. […]
O que nos diferenciou então, entre os meus companheiros prisioneiros e eu, era que eu sabia porque me encontrei com eles nas prisões. Eu sabia-o, inicialmente, no dia da minha ordenação sacerdotal. Eu sabia disso mais precisamente após a expulsão de todos os missionários em 1967; um acto injusto que eu não tinha entendido/ligado e que valeu a irritação do «guia iluminado» da Guiné; como os seus “griots” [indivíduos com a responsabilidade de preservar as tradições, transmitindo histórias, factos históricos e conhecimentos do seu povo] e cortesãos gostavam de chamá-lo.
Eu sabia exactamente, desde 2 de Dezembro de 1970, que seria preso no fim do mês, se não deixasse o território da Guiné antes dessa data fixada por Sékou Touré [1922-1984], ele mesmo.
Dois médicos – um amigo, antigo ministro, e um primo – foram informados da minha prisão por pessoas muito próximas de Sékou Touré. Imediatamente, eles fizeram questão de me informar por prevenção, para evitar qualquer risco. Porque todos sabiam em Conacri que, durante vários meses, os arredores da chancelaria e a residência do arcebispo de Conacri estavam sob vigilância monitorada, e ainda mais, depois de 22 de Novembro de 1970, data do desembarque de opositores guineenses residentes no exterior.
Fui informado por um dos meus primos, ao qual, para além disso, lhe digo que informaria imediatamente o Papa Paulo VI; mas que deixaria a Guiné apenas por ordem expressa deste último. Agir de outra forma seria da maior traição: todo o bispo teve que jurar na véspera da sua ordenação episcopal permanecer fiel à sua posição, seja o que for que aconteça. O Papa Paulo VI foi informado por mim em 2 de Dezembro de 1970. E é a alma em paz que aguardava a visita do Senhor.
Em 23 de Dezembro de 1970, ao meio-dia, fui preso em casa, com a dupla acusação de colaboração com a oposição externa e delito de opinião. Fui levado para o campo militar de Alpha Yaya [Diallo], situado [nos arredores do aeroporto internacional] a dez quilómetros de Conacri. E aí, depois de confirmar a minha identidade, fui algemado, e fico trancado num quarto semi-escuro. As «férias grandes» começaram finalmente para mim.
O belo pretexto da minha prisão foi atribuído a Sékou Touré pelo desembarque em Conacri, durante a noite de 21 para 22 de Novembro de 1970 [«Operação Mar Verde»], de militares portugueses que vierem resgatar os seus nacionais detidos numa prisão em Conacri, e que haviam sido presos pelas tropas nacionalistas da Guiné-Bissau. A estes militares portugueses juntaram-se alguns elementos armados da oposição guineense que viviam no exterior.
Este desembarque – bem-sucedido no que diz respeito ao plano dos portugueses, e abortado quanto à acção dos opositores – permitiu que Sékou Touré se livrasse de todas as pessoas que o incomodavam e estabelecer um regime totalitário. […]
Mas, na realidade, Sékou Touré teve razões secretas para me prender: eu o desapontei sobre mais um plano e este «ressentimento» por vocação esperava o momento propício para se vingar.
Desculpo profundamente Sékou Touré! Jovem missionário de regresso à Guiné [-Conacri] em 1952, eu o apoiei e o encorajei na sua acção sindical, para a criação de uma sociedade mais justa e humana, no contexto colonial francês. E, devido a esse apoio de 1952 a 1956, Sékou Touré pensou ter encontrado em mim um aliado incondicional que abraçaria todas as suas ideias, e executaria todos os seus planos e instruções.
Mas eis que: em 1956, as eleições municipais permitiram que o partido de Sékou Touré [RDA - Reunião Democrática Africana] ocupasse todos os lugares dos municípios do território da Guiné Francesa. E esse foi o início da guerra surda contra a Igreja da Guiné. Este deveu-se, neste contexto viciado, para afirmar a sua identidade e a sua autonomia, respeitando as leis mas sem receio, na dignidade superior da sua vocação. Então, Sékou Touré começou a descobrir-me. E aquele que ele pensou ver como um puro revolucionário socialista tornou-se gradualmente aos seus olhos um assustador reaccionário burguês.
Fim.
Para consulta na íntegra ver:
http://www.campboiro.org/bibliotheque/tchidimbo/huit_ans_captivite/tdm.html
Boa semana.
Com um forte abraço,
Jorge Araújo.
(**) Vd. poste de 30 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18027: (D)o outro lado do combate (14): A Igreja Católica na vida dos prisioneiros de guerra: o caso do Geraldino Marques Contino, 1º cabo op cripto, CART 1743, Tite, 1967/69 - Parte I (Jorge Araújo)
1. Comentário do nosso colaborador permanente, Jorge Araújo, ao poste P10076 (*);
Camaradas,
Na sequência dos comentários produzidos no final da Parte I [P18027] (**) prometi dar-vos conta, após a publicação desta segunda parte, sobre o porquê da prisão do Arcebispo de Conacri, verificada um mês depois da «Operação Mar Verde», facto que consideramos de relevante valor historiográfico no contexto da guerra, pois essa operação acabou por influenciar as novas formas de acção e o sentido de cada uma delas ao longo dos tempos que se seguiram, traduzido no reforço da aliança entre Sékou Touré e Amílcar Cabral.
Com efeito, a justificação para o seu cativeiro foi retirada [e traduzida] do livro «Noviciat d’un évêque: huit ans et huit mois de captivité sous Sékou Touré» [«Noviciado de um bispo: oito anos e oito meses de cativeiro sob o regime de Sékou Touré»], Paris: Fayard, 1987. 332 p., obra escrita em francês da autoria de Raymond-Marie Tchidimbo [1920-08-15/2011-03-26] – o prisioneiro.
O texto que seguidamente se apresenta, com tradução da nossa responsabilidade, serve apenas para enquadrar a problemática acima.
TRADUÇÃO
Porque fui preso?
Após a minha libertação em [7 de Agosto de] 1979 [uma semana antes de completar cinquenta e nove anos], deram-me a oportunidade de realizar diversas conferências sobre a experiência de cativeiro na presença de audiências interessadas. Em cada uma delas, punham-me a mesma questão: «porque foi preso?».
Mas em cada uma também, perante esses públicos atónitos, eu respondia, em primeiro lugar, que era uma pergunta que nunca formulei em cativeiro. Porquê? Porque, simplesmente, uma resposta – e a única verdadeira – já havia sido dada nos anos 30, por aquele que me escolheu dois mil anos depois para servir na sua presença. […]
O que nos diferenciou então, entre os meus companheiros prisioneiros e eu, era que eu sabia porque me encontrei com eles nas prisões. Eu sabia-o, inicialmente, no dia da minha ordenação sacerdotal. Eu sabia disso mais precisamente após a expulsão de todos os missionários em 1967; um acto injusto que eu não tinha entendido/ligado e que valeu a irritação do «guia iluminado» da Guiné; como os seus “griots” [indivíduos com a responsabilidade de preservar as tradições, transmitindo histórias, factos históricos e conhecimentos do seu povo] e cortesãos gostavam de chamá-lo.
Eu sabia exactamente, desde 2 de Dezembro de 1970, que seria preso no fim do mês, se não deixasse o território da Guiné antes dessa data fixada por Sékou Touré [1922-1984], ele mesmo.
Dois médicos – um amigo, antigo ministro, e um primo – foram informados da minha prisão por pessoas muito próximas de Sékou Touré. Imediatamente, eles fizeram questão de me informar por prevenção, para evitar qualquer risco. Porque todos sabiam em Conacri que, durante vários meses, os arredores da chancelaria e a residência do arcebispo de Conacri estavam sob vigilância monitorada, e ainda mais, depois de 22 de Novembro de 1970, data do desembarque de opositores guineenses residentes no exterior.
Fui informado por um dos meus primos, ao qual, para além disso, lhe digo que informaria imediatamente o Papa Paulo VI; mas que deixaria a Guiné apenas por ordem expressa deste último. Agir de outra forma seria da maior traição: todo o bispo teve que jurar na véspera da sua ordenação episcopal permanecer fiel à sua posição, seja o que for que aconteça. O Papa Paulo VI foi informado por mim em 2 de Dezembro de 1970. E é a alma em paz que aguardava a visita do Senhor.
Em 23 de Dezembro de 1970, ao meio-dia, fui preso em casa, com a dupla acusação de colaboração com a oposição externa e delito de opinião. Fui levado para o campo militar de Alpha Yaya [Diallo], situado [nos arredores do aeroporto internacional] a dez quilómetros de Conacri. E aí, depois de confirmar a minha identidade, fui algemado, e fico trancado num quarto semi-escuro. As «férias grandes» começaram finalmente para mim.
O belo pretexto da minha prisão foi atribuído a Sékou Touré pelo desembarque em Conacri, durante a noite de 21 para 22 de Novembro de 1970 [«Operação Mar Verde»], de militares portugueses que vierem resgatar os seus nacionais detidos numa prisão em Conacri, e que haviam sido presos pelas tropas nacionalistas da Guiné-Bissau. A estes militares portugueses juntaram-se alguns elementos armados da oposição guineense que viviam no exterior.
Este desembarque – bem-sucedido no que diz respeito ao plano dos portugueses, e abortado quanto à acção dos opositores – permitiu que Sékou Touré se livrasse de todas as pessoas que o incomodavam e estabelecer um regime totalitário. […]
Mas, na realidade, Sékou Touré teve razões secretas para me prender: eu o desapontei sobre mais um plano e este «ressentimento» por vocação esperava o momento propício para se vingar.
Desculpo profundamente Sékou Touré! Jovem missionário de regresso à Guiné [-Conacri] em 1952, eu o apoiei e o encorajei na sua acção sindical, para a criação de uma sociedade mais justa e humana, no contexto colonial francês. E, devido a esse apoio de 1952 a 1956, Sékou Touré pensou ter encontrado em mim um aliado incondicional que abraçaria todas as suas ideias, e executaria todos os seus planos e instruções.
Mas eis que: em 1956, as eleições municipais permitiram que o partido de Sékou Touré [RDA - Reunião Democrática Africana] ocupasse todos os lugares dos municípios do território da Guiné Francesa. E esse foi o início da guerra surda contra a Igreja da Guiné. Este deveu-se, neste contexto viciado, para afirmar a sua identidade e a sua autonomia, respeitando as leis mas sem receio, na dignidade superior da sua vocação. Então, Sékou Touré começou a descobrir-me. E aquele que ele pensou ver como um puro revolucionário socialista tornou-se gradualmente aos seus olhos um assustador reaccionário burguês.
Fim.
Para consulta na íntegra ver:
http://www.campboiro.org/bibliotheque/tchidimbo/huit_ans_captivite/tdm.html
Boa semana.
Com um forte abraço,
Jorge Araújo.
[Tradução de JA / Seleção de fotos, legendagem e título do poste: LG]
___________
Notas do editor:
(*) Último poste da série > 11 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18076: (D)o outro lado do combate (15): A Igreja Católica na vida dos prisioneiros de guerra: o caso do Geraldino Marques Contino, 1º cabo op cripto, CART 1743, Tite, 1967/69 - II (e última) Parte (Jorge Araújo)