domingo, 10 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8078: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (7): Operação Inquietar II - Manga de Ronco

 1. Mensagem José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 7 de Abril de 2011:

Camaradas
Independentemente do desgaste sentido na implantação de Gandembel, esta é a Operação que mais marcou a Cart 1689. Com apenas 68 dias de Guiné, já havia experimentado situações de extremo sofrimento e, ao mesmo tempo, já havia conquistado o galardão máximo do CTIG.

Este pequeno registo refere-se ao essencial, comprovado pela própria história oficial da Companhia. Porém,
outras se desenvolveram em paralelo que, por certo, virão a merecer a sua divulgação.

Um abraço do
Silva


Outras memórias da minha guerra (7)

Operação Inquietar II – Manga de ronco

Terminada a Op. Inquietar I, na qual os objectivos não foram atingidos e o sofrimento dos militares foi ao extremo, logo o Comando Operacional de Bafatá aproveitou para ordenar a sua repetição. Foi a opinião desse Comando que a nossa CART 1689, pertencente ao BART 1913 e ali adoptada como Companhia de Intervenção, não havia aproveitado “o Plano elaborado era consequência dum estudo cuidadoso do inimigo e da situação”. Foi pena que tanto estudo não tivesse contemplado a vida e a resistência dos militares perante a deficiente orientação, a ausência de reabastecimento de água e a falta de apoio.



05 de Julho de 1967
Saímos de Banjara de madrugada e, quando chegámos a Gendo (cerca das 10H00), já não encontramos ninguém. Destruídas as casas (cerca de 40), seguimos para a zona de Samba Culo. Por volta do meio-dia fomos atacados durante cerca de 10 minutos, tendo ficado ferido o Soldado Manuel de Jesus. Continuámos em zigue-zague, fora do trilho, tendo-se avistado um elemento IN, de camuflado, que fugia e foi abatido.

06 de Julho de 1967
Logo ao amanhecer, a nossa Companhia seguiu a direcção traçada. Logo que a cabeça da coluna surgiu numa clareira, junto da Serração Amaro, ouviu-se um tiro de sentinela. Foi, então, que o Furriel Simões, que seguia nos primeiros lugares, se abeirou do guia/prisioneiro lhe deitou a mão esquerda às goelas e, com a faca de mato na mão direita, lhe apontou o bico ao pescoço e lhe gritou:

- Ó filho da puta, trouxeste-nos para a clareira, para sermos vistos. Se morrer algum de nós, mato-te!

Era evidente que as tropas IN estavam a contar connosco e, depois de recuadas de Gendo e de avisadas aqui, na Serração Amaro, se preparavam para nos atacar.

Voltamos à progressão em zigue-zague e fora do trilho (Tambicó-Canjambari). Porém, cerca das 11 horas, “caímos” num trilho defendido frontalmente por uns 6 ou 7 elementos IN, que se puseram em fuga, depois de “queimarem” alguns cartuchos das Pistolas Metralhadoras e da forte resposta das NT, mas deixando-nos ferido o Cabo António Maria Martins de Matos. Avançámos uns 10/15 metros e caímos numa emboscada.

As tropas IN estavam instaladas em forma de ferradura e dentro de abrigos, construídos à entrada do que depois se verificou ser o acampamento. (Constava que já lá tinha caído nessa forma de armadilha, uma Companhia de Comandos e que teve de recuar). Foi um tiroteio incrível! O Simões e os seus militares que estavam a descoberto e muito na frente, no interior da “ferradura”, não foram atingidos porque o IN tinha receio de atingir as suas próprias tropas, posicionadas frente a frente. Esgotadas as munições, o Simões poisou o queixo sobre as mãos cruzadas e esperou o pior. Apenas sentia algumas folhas de árvore a caírem.

Houve uma pausa e os militares deste pequeno grupo correram para trás, esperando conseguir alguma coisa que servisse de abrigo. O IN reagia sempre que fazíamos menção de avançar.

Os minutos e as horas iam passando (foram mais de 3 horas e meia) e as munições já eram escassíssimas. Durante esse cerco, foram atingidos os soldados António Seixas de Sousa e José Ribeiro de Araújo.

O PCV sobrevoava a zona, mas não atendia aos pedidos do nosso Comandante, feitos através do rádio, dizendo repetidas vezes:

- Preciso novas asas. Preciso novas asas, Só com novas asas. Preciso novas asas. Parecia-nos que estava a gozar com a situação, porque, possivelmente, aproveitando os (referidos) insucessos anteriores, o PCV de Bafatá respondia, também vezes sem conta:

- Não dramatize, siga para objectivo, não dramatize, objectivo está aí na frente.

Nesta altura, alguém do Comando da Operação teria contactado os elementos da CCAÇ 1685, reforçada com um Pelotão da CART 1690, para nos vir ajudar. Foi o que nos valeu. Ouvimos o tiroteio, a norte, perto de nós e sentimo-nos mais aliviados.

Desta vez levantámo-nos e não houve fogo IN. Avançamos então sobre o acampamento, que alguns iam incendiando. Era um acampamento onde ainda ninguém das NT tinha conseguido entrar. Havia casas de construção definitiva e ruelas bastante batidas e limpas, devido ao movimento dos seus habitantes.

Como se estava a perder muito tempo a incendiar e a admirar o nível de organização daquela população, o Capitão Maia abeirou-se de mim e disse:

- Oh Silva, estamos fodidos, porque eles vão-se juntar e vão-nos atacar. - E apontando com o braço: - Banjara fica nesta direcção, são só uns 17km. Vamos avançar.

Havia muitos arbustos pequenos e fechados e fomo-nos vergando entre eles, seguindo por um pequeno trilho. Logo ali, a umas dezenas de metros, apareceu-nos uma arrecadação cheia de armas, munições e outras coisas invulgares; desde paramentos de padre, cigarros cubanos, livros de leitura de escola, panos, rendas, e, até, um gira-discos.

Cada um escolhia a arma ou as armas que queria transportar. O Capitão estava eufórico a distribuir armas por toda a gente. E os soldados, depois de apanharem os cigarros, agarravam entusiasmados em duas e três armas, que colocavam em bandoleira. Toda a gente trouxe material. Incendiou-se a arrecadação e, pouco depois de abandonarmos o local, logo se assistiu a um festival de rebentamentos contínuos que até metia medo. Pensa-se que em cima só estava o material disponível para uso imediato e que por baixo estava o paiol.

O meu Pelotão, ao avançar, viu uma jovem ferida com um tiro numa perna, acompanhada de uma ou duas crianças. Ela apontava para o buraco na perna e nós seguimos, pensando que o enfermeiro, que vinha mais atrás, lhe iria tratar da ferida.
Parámos mais à frente, porque, entretanto, já não faltavam “novas asas” - Fiats, helicópteros, etc. - nem água e, pasme-se: até uma enfermeira trouxeram. Confesso que só depois soube dessa fartura de apoio.

Seguimos, já com receio da noite, mas ainda ouvimos umas rajadas das NT. Entretanto, chegou-nos, à frente a informação de que as miúdas haviam sido massacradas por alguns “heróis” que esqueceram o respeito pela vida de civis desarmados e os ensinamentos da “Psico”. Não foi pessoal da nossa Companhia.

Procuramos regressar rapidamente, servindo-nos agora de um trilho. Foi nessa altura que foi accionada uma armadilha, cujo rebentamento atingiu o quarto elemento da fila - o Serafim Martins Delíndro. Safei-me, porque seguia em segundo lugar, a “segurar” o guia/prisioneiro.

Com receio de emboscadas ou novas armadilhas, optamos por sair do trilho, o que nos sacrificou imenso. O tempo foi passando, o cansaço tomou conta dos militares e os que não tinham conseguido beber da água de reforço, voltaram a sentir enormes dificuldades. À medida que íamos avançando também se notava que os militares se iam deixando para trás as armas e granadas IN apanhadas na arrecadação, porque não aguentavam o esforço.


07 de Julho de 1967
Durante a noite, não havia orientação. Quando apareceram os primeiros raios da manhã, já andavam militares a lamber as ervas húmidas. Digamos que estávamos a ficar na mesma situação de desorientação e desespero, sentida na Operação anterior, com a agravante de que esperávamos a todo o momento ser atacados, como vingança.

Com apenas uns 70 dias de Guiné e já com experiências aterradoras e repetidas, sentimos um desânimo enorme. Para quê continuar se ainda estávamos no princípio e já havíamos sofrido tanto? E, em pouco tempo, apercebo-me que grande parte dos militares já exibia um lenço branco, pronto a acenar e que alguns tinham flores brancas enfiadas nos canos da G3. Ouviam-se murmúrios, desejando que o inimigo aparecesse pacificamente. E voltaram a ser descobertos cantis com urina para beber.

Quando se ouviu barulho, constatámos que estávamos perto de Banjara. Que alívio e que satisfação!
Agora, reposta alguma força anímica, chegavam os guerreiros, exibindo o resto do espólio conseguido em combate. Ainda eram muitas armas, mas menos de 1/3 do que havia sido distribuído. Mesmo assim, esta Operação Inquietar II, ficou para a história como uma das maiores vitórias nas nossas tropas, no contingente militar da Guiné. Como consequência desse sucesso, a nossa CART 1689 foi agraciada com a Flâmula de Honra em Ouro do CTIG, a maior distinção atribuída a Unidades, em combate. Por sua vez, o nosso Capitão Maia, que viria a ser ferido em Gandembel, apetrechou o seu currículo, que o levaria a General.

Entrega da Flâmula de Honra em Oiro, em Catió, no dia 26 de Janeiro de 1968

Seguramente que outras unidades, colando-se a este sucesso, também mereceram louros de destaque. Estou a imaginar agraciados os pilotos e Comandantes das “outras asas”, bem como a enfermeira, que acompanhou o bidão da água, mal distribuída. Seria mesmo curioso, saber-se quem e quantos mais foram “reconhecidamente beneficiados” por este sucesso militar.

Silva da CART 1689
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8059: Efemérides (64): Freguesia de Mar-Esposende: Homenagem aos ex-Combatentes no dia 1 de Maio de 2011 (José F. Silva/Fernando Cepa)

Vd. último poste da série de 13 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7609: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (6): O Valente era mesmo valente

2 comentários:

Manuel Joaquim disse...

Camaradas

Que dizer? Estou de "boca aberta", espantado. Interpretem como quiserem (há várias pistas a seguir e a analisar). Há uma ou várias conclusões a tirar ou não se chega a conclusão nenhuma no que se refere à qualidade da execução operacional?

Caro camarada José Ferreira da Silva, as minhas palavras não te são dirigidas mas referem-se ao que está no texto que, sinceramente, acredito corresponder à realidade. Referem-se à execução operacional e ao tipo de resultados que ela atingiu, inclusivamente às consequências (não as estou a valorar).
Um abraço

Silva da Cart 1689 disse...

Exactamente, camarada Manuel Joaquim. Cada um pode analisar o que entender. Pode ainda imaginar que este texto bem trabalhado, daria uma boa, muito boa ou brilhante história. História dos valentes patriotas que deram o melhor das suas vidas naquela guerra estúpida e sem lógica (como as demais). Pois é, mas (para mim) para além disso, o que conta é o que se passou e o que eu pude observar. Quero ser fiel à verdade, para que possamos avaliar melhor o que realmente por lá se viveu em tempos de morte. Um abraço