sexta-feira, 15 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8108: Notas de leitura (229): Visão - África, 30 anos depois, reportagem de Pedro Rosa Mendes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2011:

Queridos amigos,
Não se pode fazer vista grossa à reportagem publicada no número especial da Visão “África 30 anos depois”, com data de 2005.
Pedro Rosa Mendes mostrou os seus créditos, soube olhar e escutar.
É um trabalho de grande qualidade, a despeito de alguma informação enviesada e deficitária.
Vamos assim enriquecendo o nosso acervo informativo, para uso luso-guineense.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau numa reportagem de Pedro Rosa Mendes (2005)

Beja Santos

A Visão assinalou com uma publicação de grande envergadura o 30º aniversário da independência dos países africanos de expressão oficial portuguesa, em 2005. O jornalista e escritor Pedro Rosa Mendes e o fotógrafo Luís Barra cobriram o acontecimento numa reportagem de indiscutível significado. Vale a pena sintetizar o que ali se escreveu.

Pedro Rosa Mendes começa por observar que, ao contrário do que repetidamente é dito, Amílcar Cabral foi alvo de uma longa morte, ao longo de mais de 30 anos. Essa Guiné envolta em tantos nomes: “A todos responde e em todos se esconde. Nome paterno Escravo, nome de exílio Santiago, nome de padrasto Portugal, nome de solteiro Kaabú, nome de Pátria Pindjiquiti, nome de guerra Boé, nome de quintal Moscovo, nome de regime Traição, nome de deus Irã, nome de palácio Ladrão, nome de tabanca Porco, nome de bolanha Fome, nomes de festa Vinho, Palma, Mancarra, nome de fortuna Maomé, nome de insulto Burmedjo, nome de código Preto Nok, nome de gala Amílcar, nome de família Guiné. Nome próprio: Bissau”.

Não é fácil tocar no verdadeiro rosto do país e do povo, este é pacífico e afável, percorre-se pelo lúmpen de Bissau com verdadeiro à-vontade, no entanto a classe política e os seus partidários entregam-se a uma violência brutal, sem limites, sucedem-se em cadeia as deposições, as conspirações e as purgas. É verdade que há uma violência que vem de longe, precede a presença colonial portuguesa. Autóctones, invasoras e ocupantes, têm-se dilacerado ao longo dos séculos. É um texto bem escrito, à altura de um romancista de gabarito que ainda recentemente nos deu um romance de altíssima qualidade “Peregrinação de Emmanuel Jhesus” cuja acção decorre em Timor Leste. Pena é que de vez em quando, acaloradamente, profira dislates ou imprecisões históricas. Amílcar Cabral não foi assassinado por jagunços, como ele escreve, mas sim por guerrilheiros que ainda hoje não se sabe a mando de quem. Amílcar Cabral não enfrentou nem eliminou um motim no I Congresso do PAIGC, em Cassacá, enfrentou sim um conjunto de torcionários, como vem descrito, de forma convergente, por autores irrecusáveis como Luís Cabral ou Aristides Pereira. Mas é verdade, como o repórter escreve, que muitos dos crimes perpetrados ficam na impunidade: “A única justiça na Guiné é feita pelas próprias mãos: Nino afastando Luís Cabral; Ansumane Mané expulsando Nino para o exílio; Kumba Ialá permitindo que as patentes balantas eliminassem Ansumane; os militares derrubando Kumba e matando, por sua vez, um ano depois, o líder deste golpe, o general Veríssimo Seabra…

Bissau na década de 60, a guerra longe e perto
(Fotografia o Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC)

Nesta vertigem, desenha-se uma particularidade da política guineense: as vítimas de golpe reservam-se o direito de voltar ao cargo. Basta que não se deixem matar”. O repórter anota que o Estado está cada vez mais volátil, a própria soberania está tão frágil e permeável que permite a influência descarada dos países vizinhos. E observa: “Paradoxo guineense, a geração que lutou nas matas rapidamente se esqueceu de onde vinha a sua força e para onde ia a sua coragem. O horizonte de um povo inteiro foi encolhendo dentro do seu pequeno país. A Guiné foi-se acantonando em Bissau. Nino Vieira e a sua corte geriram o país como um grupo económico mais ou menos informal e mais ou menos oficioso”. Nino exerceu uma ditadura paternalista em conluio com os seus homens de confiança, tutelava os negócios da cerveja, da castanha de caju, da vida portuária, das telecomunicações, como qualquer outro Grande Irmão mandava censurar as imagens enviadas a partir da RTP em Bissau. Um país frágil, em que a marinha tem os seus poucos barcos encalhados e a Força Aérea deixou de voar há muitos anos, os 6 MIG ficaram rapidamente no chão por falta de peças.

A ausência de memória histórica impressiona nacionais e estrangeiros: “A casa onde Amílcar Cabral nasceu, em Bafatá, está em ruinas há muitos anos – desde que o PAIGC ficou com a custódia do imóvel. É, basicamente, uma latrina ocasional. De outro local histórico, em Madina do Boé, onde o PAIGC proclamou unilateralmente a independência, em 1973, resta apenas outra ruina, engolida pelo mato”. Pedro Rosa Mendes conversou com Carlos Schwartz (Pepito), falou-se do projecto museológico de Guileje, hoje uma realidade singular num mundo de amnésia histórica.

Os meninos guineenses continuam a olhar esperançados para o futuro
Uma linda fotografia de Luís Barra

Numa viagem ao interior do PAIGC, de algum modo ainda hoje a coluna vertebral do país, o repórter recorda as execuções, o desaparecimento da documentação histórica fundamental, as lutas fratricidas. Fala no massacre dos Comandos e refere o número de 40 mil, certamente que lhe deram uma informação errada, este número refere-se a todos aqueles que combateram à sombra da bandeira portuguesa. O PAIGC da luta acabou por se envolver na gestão do aparelho colonial, juntou-lhe uma estrutura securitária e repressiva dirigida por figuras sinistras, inesquecíveis como António Buscardini, os irmãos Baciro e Iaia Dabó, basta lembrar a desumanidade com que foram tratados Paulo Correia e outros alegados conspiradores presos em Outubro de 1985.

A reportagem termina com uma peça de excelência intitulada “Braima, o menino de Amílcar”, Pedro Rosa Mendes conversa com Saco Sambó, filho de guerrilheiros que adquiriu elevadas competências militares em Cuba e na Rússia. Quando regressou à Guiné em 1987, disseram-lhe que não havia lugar para doutores, pediu para sair das Forças Armadas, dedicou-se à formação. Acha o PAIGC irreconhecível e comenta: “É inevitável fazer uma comparação entre a Guiné e Cuba. Lá, a Revolução triunfou, apesar de ser feita por analfabetos, ou quase. Depois do triunfo, todos foram responsabilizados e obrigados a estudar. As coisas eram muito claras: um herói da luta podia ocupar um cargo, mas tinha um período de tempo para se ir preparando para essa posição, porque havia objectivos definidos. Cabral cria o mesmo sistema na Guiné. Mas aqui essa política de quadros não funcionou. Os dirigentes e, com eles, os responsáveis de segunda linha, eram totalmente ou quase analfabetos. Mesmo entre os universitários houve muitos que nunca acabaram a sua formação (…) O que se passou depois da independência é que a ignorância se somou à corrupção, à ambição e ao individualismo. O Kumba Ialá queimou uma oportunidade e, no fim, estamos todos no mesmo saco. Hoje, a sociedade guineense não tem referências. Vive em anemia. Os líderes jogam com a pobreza. As pessoas querem verdade. E é de verdade que precisamos na Guiné”.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8093: Notas de leitura (228): Poemas, de Artur Augusto da Silva (Mário Beja Santos)

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