terça-feira, 9 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23508: (In)citações (213): Testamento, de Ana Luisa Amaral (1956-2022)... E homenagem a uma grande voz feminina da língua portuguesa (Luís Graça / Laura Fonseca)


Ana Luisa Amaral, Matosinhos,  Leça da Palmeira, 30 de setembro de 2014. 
Foto: Rita Amaral Ribeiro, 
Cortesia de Wikimedia Commons


1. Até sempre, poetisa! (*)
 por  Luís Graça

Quando morre um poeta ou uma poetisa,
morremos todos nós um pouco.
Ou morre um pouco de todos nós,
que de poeta e louco todos temos um pouco.

Não punhamos rótulos nos poetas ou nas poetisas,
porque são inclassificáveis,
não há poet...istas,
há só poemas, poemários,
há poetas, homens, mulheres,
novos, velhos, serôdios ou retardatários,
e sobretudo artesãos da(s) palavra(s),
talvez a mais bela invenção desse primata
que é o homo sapiens sapiens,
tão besta em tantas outras coisas
como a guerra, a violência, a intolerância, a estupidez.

A poesia é pura liberdade,
liberdade livre, disse outro poeta,
e a liberdade, quando é livremente livre,
é capaz de irritar, 
tão  ou mais que uma manada de elefantes a pisar a relva do jardim,
quem só vê as coisas através do manual da sua escola
ou do muro do seu quintal.

Ana Luisa Amaral
morreste, aos sessenta e seis anos,
porque eras mortal,
e tinhas medo de andar de avião,
mas gostavas tanto da vida
e das causas e das coisas e dos outros
que fazem a vida valer a pena.

Ficam os teus poemas, 
as tuas palavras magicamente concatenadas,
e eles e elas, os teus poemas e as tuas palavras,
serão, afinal, a tua prova de vida,
permanente.

Desculpa-me ter-te descoberto tão tarde 
(ou melhor, eu é que me penitencio),
só há dias fui à biblioteca municipal
requisitar o teu último livro, "Mundo".
E não o desgostei,
numa primeira leitura, avulsa, rápida, superficial, em diagonal.
Há demasiado ruído à nossa volta,
Ana Luísa Amaral,
e tanta coisa bela e essencial que nos escapa.

Nunca falariam tanto de ti, 
a comunicação social 
(e as redes sociais que tu detestavas),
se uma rainha espanhola, Sofia,
não te tivesse chamado ao paço
para te dar um prestigiado prémio... de poesia.
Sofremos, neste pequeno rectângulo ibérico,  
da síndrome do estrangeirado.
Que tristeza!

Nunca falariam tanto de ti
se agora não tivesses morrido,
assim tão de repente,
assim tão sem jeito,
sem tempo para gozares a fama e o proveito
de seres uma grande voz, feminina, da poesia em língua portuguesa.
 
Deixa-me então, reproduzir aqui, poetisa,
o teu "Testamento",
que leste há dias, uma semana antes de morreres, na RTP 3,  
no programa Grande Entrevista, do Vitor Gonçalves.

Leste-o, o teu "Testamento",
com grande beleza interior e serenidade e encanto.
E senti que já estavas no Olimpo dos poetas.
Leste-o premonitoriamente, 
sem poderes saber ou adivinhar
que o teu coração-avião já te tinha condenado à morte,
e ia falhar ou implodir no dia 5 de agosto.

Ana Luisa Amaral,
nem a tua Ritá nem nós, teus leitores, 
te vamos esquecer.
E tu serás a primeira a concordar
que  a poesia tem de se partilhar,
e chegar a todo o lado,
sem respeito pelas fronteiras ou outras barreiras
como os semáforos vermelhos.
Precisamos urgentemente do TGV da poesia
a percorrer a autoestrada da vida
mesmo em contramão,
mesmo em contravenção,
excedendo o limite legal dos 120 km/hora de velocidade.

Mas que pachorra,  este nosso comboio 
que, no seu ramerrame, pouca terra, pouca terra, 
mal faz pela vidinha!

E foste tu a dizer, há dias,
que os futuros jovens professores,
saídos das nossas faculdades de artes e letras, 
teus alunos, afinal, 
mestres e doutores de Bolonha, 
sabem quão coisa séria e grave é a poesia
a tal ponto que têm medo de a ensinar e de a dizer....
Por vergonha.

Há fome de poesia no mundo, 'priga'
(como se diz na minha terra natal)
mas, por favor, Ana,
que não nos venham fazer crer, Luísa,
que é tudo tetras,
e que a poesia não enche barriga, 
oh poetisa  Amaral!

Luís Graça, Lourinhã, 7 de agosto de 2022

2. Testamento

por Ana Luisa Amaral (1956-2022)

Vou partir de avião 
E o medo das alturas misturado comigo 
Faz-me tomar calmantes 
E ter sonhos confusos 

Se eu morrer 
Quero que a minha filha não se esqueça de mim 
Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada 
E que lhe ofereçam fantasia 
Mais que um horário certo 
Ou uma cama bem feita 

Dêem-lhe amor e ver 
Dentro das coisas 
Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes 
Em vez de lhe ensinarem contas de somar 
E a descascar batatas 

Preparem minha filha para a vida 
Se eu morrer de avião 
E ficar despegada do meu corpo 
E for átomo livre lá no céu 

Que se lembre de mim 
A minha filha 
E mais tarde que diga à sua filha 
Que eu voei lá no céu 
E fui contentamento deslumbrado 
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas 
E as batatas no saco esquecidas 
E íntegras.

In Ana Luisa Amaral - "Inversos. Poesia 1990-2010" (Lisboa, Dom Quixote, 2010, 656 pp.)  (Esgotado)

3. Mensagem da nossa amiga (minha e da Alice Carneiro),  Laura Fonseca, socióloga, especialista em Estudos sobre as Mulheres (Faculdade de Letras, Universidade do Porto), natural da Lixa, Felgueiras, a viver no Porto, que conheceu (e conviveu com) a Ana Luisa Amaral:


Laura Fonseca, Porto (by email)
8 ago 2022 20:14

Olá, Luís

Ainda não digeri a morte deste grande ser humano, poeta, colega, mulher de causas e também de algum relacionamento pessoal, feminista, académica de excelência. Partilhei com ela, nos anos 1990/2000(?), a direção da APEM - Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres. Estava ainda no início do seu reconhecimento poético e no final do seu doutoramento. O que nós partilhávamos e apreendíamos!!!

Na verdade, o teu amigo Adão Cruz (*) faz um texto belíssimo, que exprime bem o que penso e sinto em relação a esta mulher: tão culta, tão solidária, tão inquieta e subversiva perante os problemas humanos. E fazia-o sempre e tinha sempre tempo, com a sua presença, a sua poesia.

Admirava a sua cultura, o seu empenho, o caminho de maturidade poética que estava a trilhar, sem perder o pé na terra nas pequenas e grandes coisas. Ana Luisa adorava partilhar o seu trabalho, fazer e dizer poesia, divulgar o trabalho de outras mulheres e homens. Não se cansava de dizer sim e ser generosa, mesmo que crítica com tudo o que fosse errado para as pessoas e a natureza neste mundo.

É uma pessoa que nos deixa muito. Mas é também uma pessoa que nos vai fazer muita falta, ao mundo, ao país, ao Porto, à academia, à ciência, ao movimento cívico e político, aos amigos e à sua adorada filha Rita,  sempre sua companheira e sua inspiração de amor e de humanidade.

Obrigada, Ana Luísa, obrigada, Adão Cruz, pelo seu maravilhoso texto de homenagem. (**)

____________

Notas do editor:


 

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23507: Agenda cultural (819): No passado dia 2 de Julho de 2022, foi apresentado, na Casa Pia de Lisboa, o livro "Alfredo Ribeiro – História, Memória, Saudade - O Universo Casapiano", da autoria de Luís Vaz. Alfredo Ribeiro foi Furriel Miliciano na CCAÇ 4150/73 (Albano Costa)

1. Mensagem do nosso camarada Albano Costa (ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 4150 (Bigene e Guidaje, 1973/74), com data de 5 de Agosto de 2022:

Boa tarde Vinhal
No passado dia 2 de julho foi feita a apresentação na Casa Pia de Lisboa do livro sobre a vida de um casapiano que passou pela guerra do ultramar, na Guiné, o Alfredo Ribeiro que foi furriel-miliciano na minha Companhia.

O título do livro é:
"Alfredo Ribeiro – História, Memória, Saudade - O Universo Casapiano", por Luís Vaz.

Agradeço a publicação
Albano Costa



SINOPSE

Sobre o livro:

Alfredo Ribeiro era um homem empenhadamente trabalhador, humano e de uma honestidade rara. É recordar o período posterior - a Abril de 1974.
Estamos perante alguém que não capitulou sob as vicissitudes da vida, enfrentando-as com estudo, trabalho, dedicação e alegria, desde criança até à sua morte.

Detalhes do produto:

Alfredo Ribeiro de Luís Vaz
ISBN 9789727808144
Edição/Reimpressão 07-2022
Editor: Âncora Editora
Idioma: Português
Dimensões: 149 x 229 x 18 mm
Encadernação: Capa mole
Páginas: 312
Tipo de Produto: Livro
Classificação Temática: Livros em Português > Literatura > Memórias e Testemunhos
Preço: 16,20€

Com a devida vénia a Wook.pt

____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23490: Agenda cultural (818): apresentação, às 17 horas, em Ferrel (dia 8) e no Baleal (dia 15), de dois novos livros de Joaquim Jorge (ex-alf mil at inf, CCAÇ 616, Empada, 1964/66): (i) Versos ao Acaso; (ii) Baleal: Beleza, Encanto, Fascínio!

Guiné 61/74 - P23506: Notas de leitura (1472): "Histórias da C. CAÇ. 2533" - Os belos testemunhos da gentes da CCAÇ 2533 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Agosto de 2022:

Queridos amigos,
É uma edição de amigos, não tem data, nem o nome do organizador, nem de tipografia, terá sido obra a pensar nos elementos da Companhia, uns carolas juntaram-se para coligir texto e imagens, o resto foi trabalho de reprografia. E no entanto, que estupendo depoimento de uma Companhia de Caçadores que esteve em Canjambari e Farim entre 1969 e 1971 e que deixou legado, cimentou amizades. Um testemunho que merece a nossa reflexão, não há para ali nada de farronca nem bravura exaltada, contam-se pilhérias, bebedeiras e não se escondem saudades de casa. Que bom, ter descoberto esta pérola na Biblioteca da Liga dos Combatentes.

Um abraço do
Mário



Os belos testemunhos das gentes da CCAÇ 2533 (1)

Mário Beja Santos

Em 2016, o blogue deu notícia desta edição, publicando alguns fragmentos e imagens. Só agora, e graças à Biblioteca da Liga dos Combatentes, é que tive acesso à integralidade do documento. Toca-nos pela singeleza, são muitos os depoimentos, são muitas as ilustrações, e logo o então Capitão Sidónio Martins Ribeiro da Silva fala da sua nomeação, da preparação da companhia e não esconde as suas exigências: “Estava consciente da minha falta de experiência e de conhecimentos sobre uma guerra de guerrilhas. Capitão recém-promovido tinha, na prática, passado de comandante de pelotão para comandante de companhia em zona de guerra”. E tomou a decisão de dotar com a melhor instrução possível os seus homens: “Estava determinado em cumprir à risca a velha máxima: mais suor e lágrimas e menos sangue”. Os problemas começaram a surgir quando foi recebendo os quadros da companhia. Chegou um aspirante a oficial com a especialidade de minas e armadilhas, informou-o de que era Objetor de Consciência. “Aquando do julgamento, tive então a oportunidade de informar o coletivo de juízes da minha convicção de que o acusado agia por imperativo de consciência. Mais declarei que toda a sua conduta e por sua expressa vontade foi determinante para que a situação não transvazasse para o domínio público. Ainda hoje desconheço a decisão do tribunal militar. Pela coragem demonstrada e pela convicção das suas ideias, este episódio constituiu o exemplo de um HOMEM que não vacila perante uma lei que não reconhece a razão da consciência”.

A CCAÇ 2533 embarca no Niassa, o capitão vai mais tarde, tudo uma questão de vacinas. Vão rapidamente para Canjambari, de nome completo Canjambari Morucunda. Encontrou um quartel em estado lastimável, legou instalações completamente remodeladas, uma enfermaria para duas companhias, um heliporto e uma nova povoação constituída por vinte moranças e escola, tudo dentro de um perímetro de defesa anexo ao aquartelamento. Para além de pequenas obras que foram do matadouro aos paióis, tudo à custa de mão-de-obra do pessoal da Companhia. O estado das viaturas não era nada animador: das vinte viaturas recebidas apenas três estavam operacionais. Procurou manter do princípio ao fim hábitos assentes em disciplina e acuidade, as formaturas e toques de corneta nunca foram dispensados. Houve acidentes no percurso, ossos do ofício, um minitornado deixou o aquartelamento num estado desolador.

Quem diz Canjambari é só uma questão de olhar para o mapa e pensar nos riscos à volta. O Capitão Vasco Lourenço estava em Norte-Cuntima, havia Fajonquito, Farim e diferentes pontos de passagem utilizados pelas gentes do PAIGC. Toda esta área era coordenada por um Comando Operacional, um major, que apareceu no aquartelamento com obus e que se fartou de bombardear uma certa área, terminado o bombardeamento, despediu-se com uma certa ironia:
Agora aguenta! “Está claro que não demorou muito tempo que o nosso quartel fosse também bombardeado”. Ali estiveram catorze meses e depois foram transferidos para Farim. Recorda o malogrado alferes Ambrósio falecido em combate, durante uma interdição no Corredor de Lamel. Invoca os falecidos e contabiliza os ensinamentos: “Longe de mim a ideia de que a guerra foi um mal que veio por bem. Muitos foram os que ficaram a padecer de males físicos e psicológicos. Mas a guerra preparou-nos para enfrentar os problemas da vida. Aprendemos a graduar o nosso sofrimento. Ensinou-nos o que é a solidariedade vivida dia a dia”.

E prosseguem os testemunhos ingénuos, parece que arrancados à literatura oral, fala-se de praxes, há as recordações da chegada a Canjambari, tudo ressaltado por imagens concludentes; há as recordações também dos aniversários, das primeiras patrulhas e dos primeiros contatos. Ali relativamente perto, em Canjambari Praça, havia a presença do PAIGC; há lembranças de cobras e de um espetáculo com o artista Horácio Reinaldo, de alguém que escapou por pouco com uma mina antipessoal; há as pilhérias como o roubo de um galo do 1.º Sargento Pinheiro, até se fala de um porco que estava doente e foi enterrado e alguém da população foi desenterrar e se regalou com o repasto.

O Alferes Armando Mota agradece ao Capitão Sidónio por ter mantido, sem desfalecimentos, as preocupações com a disciplina. Há uma emotiva página dedicada ao Soldado Condutor Guilherme, com uma fotografia tirada momentos antes da sua morte, contado também pelo Alferes Armando Mota:
“Passados alguns quinze minutos chegámos ao Bolumbato, onde avistámos a equipa da picagem. Decidi que a coluna esperaria ali, pois era mais seguro do que seguir em andamento lento atrás do pelotão da picagem. Lembro-me de tirar uma fotografia ao Soldado Guilherme, condutor da minha viatura, a Berliet que seguia à frente. Seriam umas 9h20 quando se ouviu uma grande explosão seguida de vários rebentamentos. Percebi que os nossos camaradas haviam caído numa emboscada. O nosso pessoal subiu rapidamente para as viaturas e arrancámos a toda a velocidade.
Recordo-me do Guilherme às tantas me dizer que não se avistava a segunda viatura, mas dadas as circunstâncias disse-lhe para não se preocupar e acelerar, pois sabia que vinham logo atrás. Entretanto continuava a ouvir-se intenso tiroteio e rebentamentos. Disse ao Guilherme que quando o mandasse parar, metesse a viatura no mato fora da estrada, por segurança.
Só próximo do fim da reta que antecede a rampa para Lamel, avistei o último dos elementos do 3.º pelotão que nos fazia sinais para encostar. Pedi para parar e entrar no mato à direita, pois o IN estava a atacar do lado esquerdo.

Ouvi perfeitamente três ou quatro tiros na nossa direção, que não nos atingiram, saltei para o chão, atravessei a estrada e instalei-me enquanto o resto do 1.º pelotão tomava também posições. Íamos começar a avançar quando o Fonseca me disse que o Soldado Guilherme estava caído e ferido. Fui buscar o nosso enfermeiro que me confirmou que era muito grave. Decidi evacuá-lo imediatamente para Farim. Desloquei-me à segunda viatura para conseguir ajuda no transporte do ferido, mas ao aperceber-se do drama e para facilitar, o Soldado Solipa ofereceu-se, pois não tínhamos condutor, para conduzir a viatura dali para Farim, e corremos os dois para junto do grupo que protegia o ferido. Ainda debaixo de fogo o Solipa manobrou a Berliet e carregámos o Guilherme já inconsciente. Partimos, eu, o enfermeiro e mais três soldados rapidamente para Farim. Recordo-me de lhe segurar a cabeça para não se magoar no chão da viatura, enquanto com a outra mão me segurava à estrutura da viatura. No outro extremo, o Evangelista segurava-lhe as pernas, também deitado e agarrado ao banco com uma mão. Acreditávamos que ia valer a pena…

O Soldado Solipa foi louvado pela atitude de solidariedade com o camarada, debaixo de fogo. Enviei à família do Soldado Guilherme uma nota de sentimento com a foto que lhe tirei vinte minutos antes de falecer, descrevendo a ação onde caiu. Não obtive resposta e nunca mais comunicámos”.


(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 de Agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23495: Notas de leitura (1471): "Memórias de um Tigre Azul - O Furriel Pequenina", por Joaquim Costa; Lugar da Palavra Editora, 2022 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23505: A nossa guerra em números (21): o esforço financeiro global, de 23 mil e 900 milhões de euros (em valores de 2008), dividiu-se por Angola e Moçambique (25%) e pela Metrópole (75%)

 


Vidas, ilustração digital (Luís Graça, 1999)


1. Algum dia saberemos ao certo quanto é custou a Portugal e aos portugueses (mas também aos angolanos, guineenses, moçambicanos, cabo-verdianos, são tomenses, macaenses e timorenses) a guerra do ultramar / guerra de África / guerra do Ultramar (1961/74) ? (*)

Acho que nunca o saberemos, para mais  se, aos custos diretos, acrescermos os custos indiretos e sobretudo os custos ocultos (anos de vida perdidos com as mortes de combatentes e de civis,  encargos com o tratamento e reabilitação dos feridos, stress pós-traumático de guerra, encargos financeiros dos empréstimo contraídos, quebra no investimento produtivo, danos para a imagem internacional do país, etc.)

Mas fiquemos só pelos custos diretos, os “encargos orçamentais”, com a guerra, a parte mais propriamente financeira, a que diz respeito, afinal,  ao "vil metal"... ou pelo menos por aquilo que se pode apurar da contabilidade nacional… 

Para esse efeito, vamos revisitar um artigo que já tem mais de uma dezena de anos, da autoria do tenente-general na situação de reforma Victor Manuel Mota de Mesquita (1932-2016), publicado na Revista Militar,  nº 2511, abril de 2011, pp.  O autor foi Director do Departamento de Finanças do Exército,  tendo passado também como militar pelos TO de Angola e Moçambique.

 Este artigo resultou de uma palestra proferida em 20 de fevereiro de 2009, no auditório do ISEG - Instituto Superior de Economia e Gestão, em Lisboa, integrada no Ciclo de Conferências da Cooperativa Militar. Está disponível no sítio da Revista Militar, em formato digital, sem numeração de página.

E o autor começa por dizer-nos aquilo que  no fundo é um segredo de Polichinelo, mas vai contra o mito, alimentado no Estado Novo, sobre as "contas limpinhas", a sacrossanta regra do equilíbrio orçamental, segundo a qual só se podia gastar o que se tinha: 

“ (…) Também não foi fácil a vida das Forças Armadas sob o ponto de vista financeiro, onde a coluna do débito foi sempre superior à do crédito e só artifícios de toda a ordem permitiram conduzir uma pesada cruz por caminhos cheios de dificuldades.”

Por outro lado, “no início da guerra em Angola, em 1961, as finanças militares encontravam-se estruturadas para a paz e, portanto, dispunham apenas dos meios indispensáveis à sua gestão normal.” (...)


2. Há ideias falsas sobre quem pagou a guerra… Ainda hoje há quem pense que Angola era tão rica que a sua riqueza chegava para pagar a guerra durante muitos e muitos anos. Claro que Angola também contribuiu para o esforço de gerra, tal como Moçambique, a Guiné e os demais territórios então sob admimistração portuguesa (e hoje países independentes, com exceção de Macau, que voltou à soberania da Cahina, tendo desde 1999 o estatuto de Região Administrativa Especial da República Popular da China). 

Por exemplo, o nosso querido amigo e camarada António Rosinha, o último dos africanistas, comentou, no poste P23462(*):

(…) “Uma guerra tão longa e desgastante ? Não era tão desgastante (economicamente) assim, Luís Graça.

No grande território de Angola seria saturante e entediante para os 24 meses de arame farpado dos praças e milicianos, mas não o desgaste (económico), porque este era compensado com as riquezas naturais que dali saíam: petróleo, diamantes e agriculturas diversas e pecuária e pescas.

“Notícia de última hora: foi encontrada um pedra na região do rio Lukapa uma pedra considerado o maior diamante bruto no mundo nestes últimos 300 anos. (Jornais, atenção que os angolanos têm a mania das grandezas.)

“Só essa região que era na Luanda, distrito do tamanho geográfico de 3 ou 4 Guinés, laborava-se sem proteção militar direta durante os treze anos de guerra.

“Estamos a falar da zona da Diamang. A Guiné era a Guiné, e Março de 61 Norte de Angola, foi o que foi e os dois últimos anos do norte de Moçambique foi o que foi.

“No meio disso tudo, falta contar ‘muito deixa andar’ em muitos Cus de Judas que iam desde a ilha de Luanda até às coutadas da Gorongoza.” (27 de julho de 2022 às 13:35).

3. Seria ocioso falarmos aqui, em detalhe, sobre os complexos mecanismos da gestão financeira da guerra. Mas há coisas que convirá sabermos, como esta,  mais que evidente: aquela guerra apanhou-nos de calças na mão, não foi planeada, programada, preparada (sob todos os pontos de vista).

(...) “Até ao ano de 1960 as forças militares em serviço no Ultramar, mais propriamente, as forças privativas de cada Província eram sustentadas pelos orçamentos das respectivas Províncias e as forças extraordinárias, ou de reforço, pelos orçamentos gerais da Metrópole, Orçamento Geral do Estado (OGE) como então se designava" (...)

A partir de 1960, a gestão financeira das forças privativas passou a ser da responsabilidade da Metrópole, através do Departamento da Defesa Nacional. Todavia, a gestão financeira das forças extraordinárias (que vão reforçar a tropa dos territórios ultramarinos), continua a ser   gerida pelo departamento de cada um dos três ramos, os quais são verdadeiros feudos, pensando e agindo como verdadeiras grandes corporações em copetição umas com as outras por recursos escassos…

Na prática, o Departamento da Defesa Nacional era “um ministro sem ministério”, dispondo, como “staff”, de um Secretariado Geral, criado para “coordenar” os três Ramos das Forças Armadas (Exército, Força Aérea e Marinha).

Esta descentralização financeira funcionou praticamemte durante toda a guerra, acabando por originar crescente endividamento das Forças Armadas, incapacidade para responder com prontidão às necessidades sobretudo logísticas, engenharias financeiras de toda a ordem, recurso a empréstimos bancários (Caixa Geral de Depósitos e outras fontes), criação de novos impostos, como o Imposto de Transações (na Metrópole), e, não menos grave, ao crescente protagonismo do Ministério das Finanças… Ou, por outras palavras, também na guerra o "economicismo" terá condicionado o desempenho operacional, e a mordernizaçao das Forças Armadas (e nomeadamente da FAP) não se pôde fazer "just in time"...

(...) “Só quem passou pelos problemas pode dar valor à luta travada com o Ministério das Finanças, que tudo subordinava à obediência a um sistema financeiro fiel à regra do equilíbrio orçamental, como se o País estivesse em tempo de paz.” (...) 

Como consequência, chegámos a ter uma situação financeira "de tal modo grave que as Unidades seguiam para o Ultramar com as suas dotações orgânicas reduzidas a 25%, e as que se encontravam em operações tinham, em muitos casos, dotações inferiores a 50%.” (...).

Só para dar mais um exemplo:

(...) "No ano de 1966, nas receitas do Orçamento Metropolitano, 36,03 % eram absorvidos pela guerra, enquanto em Angola representavam 11,07 % e em Moçambique 12,07 %.

(...) "Cabe aqui referir que neste ano de 1966 o Chefe do Governo [ António de Oliveira Salazar] desconhecia o custo das operações de guerra, nem tão pouco conhecia as dificuldades financeiras existentes.

"Até então os responsáveis pelo Departamento da Defesa não lhe davam conhecimento da situação, atitude para a qual não se encontrou explicação que não fosse esconder a realidade que se vivia". (...)

Mas fiquemos, por agora,  com  o resumo das contabilidade da guerra, segundo o autor acima citado (Mesquita, 2011):

  • Nos treze anos de guerra, Angola contribuiu com 12 milhões e 300 mil contos, o que corresponde, em valores actuais (2008, tendo o artigo sido escrito em 2009), a cerca de 3 mil e 300 milhões e 300 mil euros;
  •  e Moçambique com 10 milhões e 200 mil contos,  correspondendo, em valores actuais, a cerca de 2 mil 700 milhões e 600 mil euros;

(...) Podemos, pois, dizer que a valores actuais
[ 2008], o esforço financeiro das duas Províncias foi cerca de 6 mil milhões de euros (...), a que se juntarmos o que a Metrópole despendeu no montante de cerca de 17 mil e 900 milhões de euros (...), totaliza cerca de 23 mil e 900 milhões de euros (...) de encargos financeiros com a guerra no Ultramar. (***)

A estes valores haverá que acrescentar as despesas efectuadas em 1974 e 1975 com a saída das Forças Armadas dos três teatros de guerra, despesas estas que não me foi possível obter. (...)

Grosso modo, a contribuição ultramarina para o esforço financeiro de guerra foi de 25%, cabendo à Metrópole a fatia maior do bolo: 75%.

(Negritos: LG)

(Continua)
_________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 1 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23481: A nossa guerra em números (20): Meios e operações da FAP - Parte II: Armamento das aeronaves: o papel da OGMA e outras empresas portuguesas


(...) A estimativas das despesas para o caso da Guerra Colonial é de cerca de 21,8 mil milhões de euros, ou seja, 10,8% do PIB atual (2018). Este valor representa um custo médio anual de aproximadamente 1,6 mil milhões de euros. (...)

domingo, 7 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23504: (In)citações (212): As voltas do tempo!... (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR)

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873 (Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 4 de Agosto de 2022:


As voltas do tempo!...

O tempo… o tempo passa depressa, e o que ontem era lindo hoje pode já não ser.

A vida, por vezes, leva-nos para sítios em que nós não imaginávamos que nos pudesse vir a acontecer. Mas acontece…

Não raramente, torna-se necessário fazer mudanças radicais no nosso comportamento e tentar um novo rumo. Para tal, é preciso: primeiro, arrumar bem o passado e não ocupar demasiado tempo a lamentar aquilo que se fez. O que podia ter feito, mas não aconteceu… será melhor esquecer!

Procure para companhia alguém com pensamento positivo. Não se deixar subjugar por vícios, eles são uma das causas maiores para uma possível derrota que, sem eles, seria possível minimizar ou mesmo evitar.

Procure escutar pessoas que sabem daquilo que falam. Evite aqueles que sabem tudo…, mas quando algo corre mal a culpa é sempre dos outros.

Escolha coisas que o ajudem… por estranho que pareça, muitas vezes, pode encontrá-las nas grandes dificuldades porque passou. Lembre-se que quando alguém cai no fundo de um poço não pode descer mais. Mas voltar ao cimo, ainda pode ser possível!... Se assim não proceder fica preso a um tempo, que no seu tempo jamais voltará.

António E. Ferreira

____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23485: (In)citações (211): Quando o ontem e o hoje pode não ter nada a ver (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR)

Guiné 61/74 - P23503: Blogpoesia (780): "Se eu fosse um avião", "A dor" e "Um sopro de vento", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887

1. Poemas, ilustrados, enviados ao regularmente ao Blogue pelo nosso camarada Adão Cruz, (ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68), médico cardiologista, pintor e escritor. Hoje, mais três intitulados: "Se eu fosse um avião", "A dor" e "Um sopro de vento".

© Adão Cruz

Se eu fosse um avião

Se eu fosse um avião
com um motor em cada mão
voava…
não sei para onde
mas voava à procura da ilusão.
Se eu fosse um avião
com um sonho em cada mão
voava…
não sei para onde
mas voava para fora da ilusão.
Ai… se eu fosse um avião
com um copo em cada mão
voava… voava…
não sei para onde
mas sempre rentinho ao chão.


adão cruz


********************

© Adão Cruz

A dor

A dor vestiu-se de mulher de terra e flores
e voou para lá das nuvens onde mora o vento.
A vida é um lugar muito longe
lá para as bandas do sonho
nas margens do silêncio
na arte do encontro-desencontro
na alegria de ser triste.
Nesta Galiza de poetas e água e céu e solidão
onde um mar de rias baixas desagua dentro de nós
pinta Jordi um rosto de mulher
a ocre, terra-siena e carmim.
...Que os cabelos e os jardins
querem-se soltos e naturais
como as aves e as manhãs!
Um homem nu toca Mussorgsky ao vivo
como se Jordi pintasse Quadros de uma Exposição.
Bem perto daqui
há muito foi sonhada a Nostalgia
mas ninguém viu a luz vermelha fendendo as águas verdes
e a dor já se vestia de terra e flores
e a dor já fugia para lá dos montes
onde moram mulheres de vento.


adão cruz


********************

© Adão Cruz


Um sopro de vento

Um sopro de vento na janela entreaberta
depôs no chão uma folha desajeitada.
Ela assustou-se
apertou os olhos e espremeu uma lágrima.
Serenamente
vestiu a saia e disse que não voltava.


adão cruz

____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23491: Blogpoesia (779): "Universo", por José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381

sábado, 6 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23502: In Memoriam (444): Poetisa Ana Luísa Amaral (Lisboa, 5 de Abril de 1956 - Porto, 5 de Agosto de 2022) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887)

IN MEMORIAM

Ana Luísa Amaral (Lisboa, 1956 - Porto, 2022)

© Adão Cruz


PARA ANA LUISA AMARAL

Como a vida te apagou, também apaguei o teu e-mail.

Lá para os confins do mundo molecular do Universo, não tenho possibilidade de comunicar contigo, mas irei falando para mim mesmo sobre tanta coisa que deixaste.

Aprendi com outros e também contigo que a cultura tem de fazer parte integrante da estrutura do ser humano, da sua solidez e profundidade, da sua autenticidade, da sua verdade e da sua intrínseca sabedoria.

Aprendemos que a cultura com que te irmanaste e que cedo a morte ceifou é construída através da vida como qualquer mecanismo de adaptação, mas apenas quando assenta nos fortes alicerces do conhecimento científico e na aprendizagem dos emaranhados mecanismos neurobiológicos da mente criativa.

Também aprendemos que a verdadeira cultura, a cultura do saber autêntico, a cultura do ser são indissociáveis da nossa língua e de toda a linguística onde sempre foste mestra.

Como todos sabemos, a língua não é apenas um mero instrumento de comunicação, mas uma parte inseparável do todo que somos e da riqueza anímica que construímos.

Um bom perfume deve ser sentido como parte integrante da personalidade de uma mulher e não como um cheiro. Uma boa decoração deve ser sentida pelo bom ambiente, pelo conforto e bem-estar que cria e não por dar nas vistas apenas pelo estilo e pela configuração dos objectos.

A cultura não é um enfeite, uma cosmética, uma roupagem mais ou menos vistosa, nem pode ser confundida com a cultura-folclore, com a prolixa cultura política ou com a cultura do enciclopedismo balofo dos nossos dias.

Adeus Ana Luisa. Guardarei como recordação o difícil livro que me aconselhaste: PAISAJES COGNITIVOS DE LA POESIA, de Amelia Gamoneda e Candela Salgado Ivanich

adão cruz

____________

Nota do editor

Último poste da série de 6 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23501: In Memoriam (443): Maria Aldina G. O. Marques da Silva (Fafe, 1946 - Lourinhã, 2022), esposa do Jaime Silva (ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72): o funeral é em Fafe, amanhã, domingo, às 12h00

Guiné 61/74 - P23501: In Memoriam (443): Maria Aldina G. O. Marques da Silva (Fafe, 1946 - Lourinhã, 2022), esposa do Jaime Silva (ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72): o funeral é em Fafe, amanhã, domingo, às 12h00


Lourinhã > Ribamar > Porto Dinheiro > Tabanca de Porto Dinheiro > 12 de julho de 2015 > O Jaime e a Dina, ambos professores, já então reformados, e dividindo o seu tempo entre a Lourinhã e Fafe. Ela era de Fafe, ele, do Seixal, Lourinhã. Em Fafe o Jaime Silva foi autarca, tendo tido o pelouro da cultura e desporto no respetivo município. O casal vivia nos últimos anos no Seixal, Lourinhã.  E, apesar da doença que a afetava, a Dina ainda acompanhava o marido e convivia com os amigos, até 2019. Sempre impecavelmente cuidada, resguardada  e protegida  pelo seu "anjo da guarda". 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Lourinhã > Praia da Areia Branca > 7 de julho de 2018 > Dina e Jaime

Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Lourinhã > Seixal > 17 de julho de 2019 >   A Dina, na festa do 73º aniversário do Jaime


Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. A Dina acaba de morrer esta noite. De seu nome completo, Maria Aldina Gonçalves de Oliveira Marques da Silva, nascida em 24 de fevereiro de 1946, em Fafe. Há dois anos e tal, desde o início da pandemia de Covid-19, que estava internada, no Lar Vida Maior, na Maceira, união das freguesias de A-dos-Cunhados e Maceira, Torres Vedras,  Sofria, há mais de dez anos, de uma doença crónica degenerativa, a doença de Alzheimer (perda progressiva da função mental, caracterizada pela degeneração do tecido do cérebro). 

O corpo seguiu hoje para a sua terra natal, Fafe, Depois do velório, será celebrada amanhã, dia 7, missa de corpo presente às 12 horas, na Igreja Matriz  de Fafe. Os seus restos mortais ficarão sepultados no cemitério local. 

 Deixa viúvo o nosso amigo, conterrâneo e camarada Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72), membro da nossa Tabanca Grande e da Tabanca do Atira-te ao Mar (... e Não Tenhas Medo) (com sede em Porto das Barcas, Atalaia, Lourinhã).

Tinha 76 anos. O Jaime foi um herói e um santo, e um exemplo para todos nós, cuidando dela de modo inexcedível, ao longo de mais de uma dezena de anos. Ela era de Fafe, professora do ensino secundário, depois de ter leccionado antes na Lourinhã, como professora do ensino primário nos primeiros anos da década de 1970. O Jaime viveu em Fafe  durante cerca de 4 décadas, fez lá sua vida, como professor de educação física, e foi autarca com o pelouro do desporto e cultura. O casal tem dois filhos, ambos doutorados, e um neto.

Vou dar ao Jaime, que eu tratao como mano, um abraço solidário na dor, que espero seja partilhado pelos membros do blogue onde ele tem bons camaradas e amigos. Chegou ao fim o sofrimento da família. É altura agora de fazer o luto e guardar, para a posteridade, as melhores memórias de uma vida, cheia de alegrias mas também de tristezas. E deixo aqui, no blogue dos amigos e camaradas da Guiné, dois textos dedicados a ambos, um escrito há quatro  anos por  oacasião do 72º aniversário da Dina, e outro mais recente (e inédito),  um poema escrito para ser cantado, com a música da chilena Violeta Parra, por ocasião 
do 76º aniversário do Jaime, em 17/7/2022.


2. “A balada do amor” foi uma gracinha do Luís Graça, uma pequena homenagem à Dina e ao Jaime, em dia de festa de 72º aniversário da Dina, em 24 de fevereiro de 2018, celebrada no Restaurante Braga, Vimeiro, Lourinhã,,,

"Porque recordar é preciso, é viver duas vezes!",  disse eu nesse dia. E lembrei, perante os presentes (dezenas de familiares e amigos), o seguinte:

(...) "Conheço o Jaime há mais tempo do que a Dina, mas conheci a Dina primeiro que o Jaime, pelo mero acaso das circunstâncias: eu tinha vindo da guerra da Guiné, um ano antes, em março de 1971; o Jaime acabou a sua comissão de serviço militar em 1972 mas ficou em Angola até 1974; a Dina viera trabalhar para a Lourinhã e cá acabou por deixar o seu coração . (...)

(...) A verdade é que, um belo dia, roubou-nos o Jaime e levou-o para Fafe… Felizmente, para nós, seus familiares e seus amigos quase quatro décadas depois, ela devolveu a "encomenda" (o Jaime, claro, inteiros e  mais ou menos bem conservado) à sua origem, à sua terra natal. Mas para que não se perdesse, pelo caminho, acompanhou-o e por cá, pelo Seixal da Lourinhã,  tem ficado…

(...) São dois grandes amigos, nossos, meus e da Alice, as duas são nortenhas, e nós dois sulistas… (com u). E tem sido um privilégio conviver agora mais, com eles, nestes últimos anos.

Permitam-me, pois, estas liberdades poéticas que resultam da cumplicidade da amizade, e têm o propósito de homenagear, de maneira singela, neste dia, dois grandes seres humanos, numa fase da vida deles, em que mais do que nunca precisam dos nossos miminhos e carinhos.

Pessoalmente fico muito feliz por ver aqui a sua grande família, toda junta, a nortenha e a sulista, a de Fafe e da Lourinhã, Irmãos, cunhados, filhos, genro e nora, sobrinhos, sem esquecer o ai-Jesus que  agora é neto, o rei David, e todos os demais amigos do peito.

Aqui vai a melhor prenda que eu lhes posso dar, a eles e a todos vós, e que são os meus versinhos (...) Neles vão todo o meu afeto, a minha amizade e  o meu apreço por este casal de professores, cuja vida foi (e é) uma grande lição de grandeza humana, generosidade e amor. (...)

Não se assustem, são apenas 12 quadras, de sete sílabas métricas, 48 versos, que o tempo e a inspiração não deram para mais…


Balada do amor: para a Dina & o Jaime

1. 
Hoje há festa no Vimeiro,
Faz anos a nossa Dina,
E o Jaime é o primeiro
A saudar sua … menina.

2. 
A saudar sua menina,
Que de Fafe é cidadã,
E que, lesta e ladina,
Veio cedo p’ra… Lourinhã.

3. 
Veio cedo p’ra Lourinhã,
Terra de mouro encantado,
E sem ter um grande afã,
Encontrou um bravo… soldado.

4. 
Encontrou um bravo soldado
Que lá da guerra voltava
E que logo foi emboscado,
Quando as feridas… sarava.

5. 
Quando as feridas sarava,
Mais da alma que do corpo,
Logo a Dina lhe ensinava
Que o amor é um… heliporto.

6. 
Que o amor é um heliporto,
Em Fafe, terra afamada,
Onde há cultura e desporto,
… “Mas só volto mulher… casada!”

7. 
“Mas só volto mulher casada,
Com a bênção dos meus pais,
Trata lá da papelada,
Que eu tenho pressa… demais”!

8. 
Que eu tenho pressa demais,
Ó meu querido paraquedista,
E até escrevo p’rós jornais,
Que és bom rapaz e… sulista.

9. 
Que és bom rapaz e sulista,
E melhor apessoado,
Cuidado, cortam-te a crista,
Se fores mal… comportado.

10. 
Se fores mal comportado,
Lá na festa de Antime,
Nunca s’rás avô babado,
De um neto como o … David.

11. 
De um neto como o David,
Que há de ser um campeão,
Já veste calções e bibe,
É do amor uma lição.

12. 
É do amor uma lição,
Este par Dina & Jaime,
Parabéns, chicoração,
E eu acabo… “just in time”!

Luís Graça

Lourinhã, Vimeiro, restaurante Braga, 24 de fevereiro de 2018.

3. Homenagem ao Jaime, por ocasião do seu 76º aniversário natalício (17 de julho de 2022)

Gracias a la vida, Jaime…

Gracias a la vida que te ha dado tanto…
Deu-te uma família, tão linda e querida,
E de quem bem cuidas, com enlevo e encanto,
Mesmo que, por vezes, de alma sofrida.
... Gracias a la vida que te ha dado tanto!

Gracias a la vida que te ha dado tanto…
Das boas e más memórias da infância,
Mais do seminário, da guerra... e nem santo,
Nem herói te fez a tua circunstância.
...Gracias a la vida que te ha dado tanto!

Como é bom chegares à idade serena
Em que todo o sonho não é pesadelo,
Tudo afinal ainda vale a pena.
E como é bom, Jaime, ouvires este canto,
Sentindo este verso como vero e belo:
Gracias a la vida que te ha dado tanto!

Tabanca do Atira-te ao Mar, Porto das Barcas, Lourinhã, 
em data a anunciar (a surpresa, por parte dos amigos, sendo a ideia inicial da sua filha Sofia,  estava prevista  para o dia 24 de julho de 2022, um semana depois da festinha em família, mas o aniversariante ficou de cama com a Covid-19, e a filha partiu para o Norte com o rei David...)

Letra: Luís Graça / Joaquim Pinto Carvalho / Rogério Ferreira

Música: Adaptada,  com a devida vénia, da canção Gracias a la vida (1966), da chilena Violeta Parra (1917-1967)

Voz:  Rogério Ferreira / Acompanhamento à viola: Joaquim Pinto Carvalho e Rogério Ferreira

__________


Nota do editor:

Último poste da série > 5 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P22496: In Memoriam (442): ex-alf mil médico Francisco Pinho da Costa (1937-2022), CCS/BCAÇ 1888 (Fá Mandinga e Bambadinca, 1966/68); oftalmologista, tinha 85 anos, vivia em São João da Madeira

Guiné 61/74 - P23500: Consultório Militar do José Martins (75): O Cartão do Antigo Combatente não dá direito a entrada gratuita em Museus na dependência de entidades particulares (José Martins)

1. Mensagem enviada ao Blogue no dia 3 de Agosto de 2022 pelo nosso camarada Fernando Barata, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2700/BCAÇ 2912 (Dulombi, 1970/72):

Caro Carlos
Não sei se este meu lamento tem cabimento no nosso espaço tertuliano, mas aqui vai.
Há dias ao visitar o Museu do Tesouro Real e "garbosamente" ao apresentar o Cartão de Antigo Combatente na expectativa de obter a entrada gratuita fui informado, pela senhora que se encontrava ao balcão que o Museu era explorado por entidade privada não havendo, portanto, lugar a semelhante benesse.
Espanta-me e choca-me que um Museu que se encontra situado no Palácio da Ajuda, portanto pertencente ao Estado português, sendo o seu acervo fundamentalmente constituído por peças que pertenceram aos mais variados reis deste rincão seja privado e não Nacional.
Fica o lamento e tristeza por ver o património e a maior parte da estrutura produtiva deste país alienada desta forma.

Aceita um abraço do
Fernando Barata


********************

2. Instado a pronunciar-se sobre o caso vertente, o nosso colaborador permanente em assuntos militares, José Martins, mandou-nos esta mensagem:

Boa tarde Carlos e Fernando
Sobre o que deriva do Estatuto do Combatente, continuo a pensar que foi mal pensado e pior executado.
Culpados? Claro, inclusivamente os prováveis beneficiários.
Adiante.
O estado só pode dispor daquilo que dirige. Se os museus estão na dependência do Ministério da Cultura, pode dar borlas, porque é mais um ou menos um visitante. Provavelmente, se não for de borla, não vai. É o espirito português.
Portanto, quando pensaram, não pensaram por inteiro. Resumindo: NÃO PENSARAM!
Portanto, aí nada feito. Há o recurso ao bilhete da 3.ª idade ou às borlas, nalguns, ao domingo de manhã.
E não vale a pena pensar em propor alterações.
Primeiro porque quem pode mudar, não está interessado; os outros se propuserem, só estão a pensar em S. Bento.
Repito o que escrevi no início. Ninguém está interessado em fazer, seja o que for, para valorizar os combatentes; estes por sua vez, estão mais interessados em criar dissensões entre os mesmos, até porque nunca foi possível haver um entendimento mínimo entre os grupos que, por todo o país, foram sendo criados para "proveito e valorização própria"!


3. Podes acrescentar o mail que recebi do Ministério da Cultura:

"Exmo. Senhor José Marcelino Martins,
No seguimento da questão que coloca sobre os museus e monumentos relativamente aos quais existe protocolo para entrada gratuita, cumpre informar o seguinte:

1. Nos termos do art.º 18 Lei n.º 46/2020, de 20 de agosto a entrada é gratuita para os antigos combatentes e sua viúva ou viúvo;
2. A Direção-Geral do Património Cultural, naturalmente, deu cumprimento a esta norma e disponibiliza o bilhete designado “ ANTIGO COMBATENTE” Antigo combatente do ultramar e respetiva(o) viúva(o)” que pode ser adquirido em qualquer dos equipamentos culturais tutelados por esta direção. Segue lista infra.
3. Importa, no entanto, ter presente que a entrada é gratuita em qualquer dos equipamentos constantes na lista, contudo no caso de existirem exposições temporárias pagas, estas estão excecionadas da referida gratuitidade, apenas a entrada e as exposições permanentes estão abrangidas pela gratuitidade nos museus, monumentos e palácios.
De um modo geral o bilhete das exposições temporárias é de € 5 e encontra-se circunscrita a um espeço reservado dentro do referido equipamento, não impedindo a visita no equipamento cultural em causa.
Segue a lista de equipamentos culturais tutelados por esta Direção-Geral:


1. Alcobaça: Mosteiro de Alcobaça
2. Batalha: Mosteiro da Batalha (Mosteiro de Santa Maria da Vitória)
3. Coimbra, Condeixa-a-Velha: Museu Monográfico de Conímbriga - Museu Nacional
4. Coimbra: Museu Nacional de Machado de Castro
5. Évora: Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo
6. Lisboa: Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves
7. Lisboa: Mosteiro dos Jerónimos
8. Lisboa: Museu de Arte Popular
9. Lisboa: Museu Nacional da Música
10. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia
11. Lisboa: Museu de Arte Antiga
12. Lisboa: Museu Nacional de Arte Contemporânea
13. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia
14. Lisboa: Museu Nacional do Azulejo
15. Lisboa: Museu Nacional do Teatro e da Dança
16. Lisboa: Museu Nacional do Traje
17. Lisboa: Museu Nacional dos Coches
18. Lisboa: Palácio Nacional da Ajuda
19. Lisboa: Panteão Nacional
20. Lisboa: Torre de Belém
21. Mafra: Palácio Nacional de Mafra
22. Peniche: Museu Nacional da Resistência e da Liberdade
23. Porto: Museu Nacional de Soares dos Reis e Casa Museu Fernando de Castro
24. Tomar: Convento de Cristo
25. Viseu: Museu Nacional Grão Vasco


Com os melhores cumprimentos
Sónia Paulo Soares
Directora de Departamento
(em regime de substituição)
Departamento de Apoio à Gestão de Museus, Monumentos e Palácios |DAGMMP
Direção-Geral do Património Cultural
Palácio Nacional da Ajuda, 1349-021 Lisboa
Tel. Direto (00 351) 21 3614373 - Geral (00351) 213 650 800
E-mail: soniasoares@dgpc.pt
Site: http://www.patrimoniocultural.gov.pt"


4. Acrescenta mais este mail:

"Caro Senhor José Martins,
Saudações do Castelo!
Agradecemos o seu contato e informamos que para usufruir da gratuitidade deverá fazer-se apresentar na bilheteira do Castelo com o seu cartão de Antigo Combatente.
As entradas deverão ocorrer entre as 9h30 e as 17h30, no horário de funcionamento do Castelo.

Informamos ainda:

Existem atualmente condicionamentos devido a obras a decorrer no Largo de São Pedro, pelo que é recomendável o estacionamento de veículos no Parque de Estacionamento do Estádio Municipal e a subida ao Castelo através do elevador Norte (gratuito), acesso a meio da Avenida 25 de Abril.

Com os melhores cumprimentos,
Ana Santos
Município de Leiria I Divisão de Museus e Património Cultural
Castelo de Leiria I Igreja de São Pedro
Telefone: 244 839 670
Correio eletrónico: castelo@cm-leiria.pt"

E mais estes:
Todos os museus dependentes do Ministério da Defesa (Museus Militar, Marinha, Ar), incluindo os Museus do Combatente na Batalha e em Lisboa

Convém que quem queira visitar um museu ou monumento se informe se está ou não incluído no "espirito do decreto", uma vez que muitas autarquias aderiram, sem publicidade.
Além disso há museus/monumentos que a visita efetuada aos Domingos de manhã, são gratuitas. Os visitantes com mais de 65 anos estão sujeitos a um desconto que ronda os 50%.

Abraço para ambos e, se for caso disso, boa estadia fora do local habitual (atenção: nós não temos férias)
Zé Martins

____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 de Agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23494: Consultório Militar do José Martins (74): Nas Forças Armadas Portuguesas nunca existiram capelães milicianos, desde o início da República que os capelães são graduados em alferes

Guiné 61/74 - P23499: Os nossos seres, saberes e lazeres (517): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (62): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 7 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Nisto das viagens não há chegada que não tenha partida, neste caso parte-se inconsolável, ainda por cima era a 1ª viagem depois da pandemia, houvera passamentos na ilha, gente muito estimada, caso de uma comadre, uma grande afeição, caso de um médico oftalmologista, alguém que cuidara dos meus olhos em Bissau, depois da explosão de uma mina anticarro, amizade para sempre. E logo no dia da partida, não ter conseguido despedir-me do professor António Machado Pires, meu professor de Cultura Portuguesa, que me recebia sempre com atenção e desvelo e um livro de oferta, uma grande perda, exímio mestre, a cultura seguramente que dará pela sua falta. Escusado de referir que estou pronto a regressar, haja circunstância, é tudo uma questão agora de bombear essa circunstância, dou-me bem nesta atmosfera de paz, de pontas, picos, águas em cascata, a bagacina a estalar sobre os pés. Adeus, até à próxima viagem!

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (62):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 7


Mário Beja Santos

É o meu último dia em São Miguel e pesa-me a consciência, nada de remorsos, viajante que se preza sabe que há limites entre o chegar e partir, mas este mais de meio século a calcorrear esta terra de feteiras, lagoas, faróis a apontar para o vasto oceano, pontas de sossego e desassossego, variações cromáticas a perder de vista, o exotismo dos parques, a constante afabilidade dos encontros, quer com amigos quer aqueles a quem se pede uma informação, toda esta escorrência de sons da água e do vento, aqui chegam comigo, e onde quer que esteja, depois de um avião aterrar em Lisboa, é a sempre e obsidiante vontade de aqui tornar, cada um de nós determina o Paraíso na terra, faz parte da sacrossanta autonomia da vontade, gostos não se discutem.
Pedira no Hotel Terra Nostra para voltar a visitar o espaço do antigo casino, dou-me bem com o regionalismo pictórico de Domingos Rebelo, não era possível, só que gente muito amável da receção cumpriu o prometido, recebi imagens que vou religiosamente guardar, de festas e panorâmicas com que o artista embelezou este belo espaço Arte Deco, tão bem conservado. Conforme as gravuras juntas.

É o último passeio pelo Parque Terra Nostra, mas é sempre o primeiro, deambulo com a saudade afogueada, imagino que já percorri todo o Nordeste, que estive sentado no jardim da Povoação, que conversei com um amigo do Faial da Terra, que aqui mesmo nas Furnas assisti a uma procissão com visita aos enfermos, posso fechar os olhos e antever o que o autocarro me irá oferecer de panorâmicas até Ponta Delgada, tenho uma visita surpresa ainda a fazer. Aqui ficam algumas imagens soltas da vegetação do parque, da casa sobranceira à piscina vigiada pelo busto de Thomas Hickling, a quem indubitavelmente devemos origem deste espaço edénico, só falta ouvir-se o murmúrio das águas, e depois o caminho da lagoa das Furnas e a vegetação que se avista do Parque José do Canto, chega de lágrima no olho, caminha-se para a paragem de autocarro, irresistível não registar a bruma que se levanta, pois adeus e até à próxima, e lembranças aos amigos que nos guardam estima e uma pequena oração para todos os que já partiram.
Não há visita a São Miguel que não inclua o bater à porta do meu querido professor de Cultura Portuguesa, António Machado Pires. Vimo-nos 1 ano antes da pandemia, era sempre uma questão de ritual, uma visita à Igreja do Colégio, uma entrada apressada na Biblioteca Municipal, por cima do Jardim Antero de Quental, para cheirar novidades editoriais, atravessado o jardim batia-lhe à porta. Tinha seguramente problemas sérios de visão, os olhos já entaipados com lentes escuras, conversámos de tudo e de nada, recebi prenda, Páginas Sobre Açorianidade, voltámos ao passado, quando me apresentei como estudante-militar para fazer a cadeira, sempre com aquele timbre de voz modulada, sem excitações, que lhe conheci ao longo destas décadas, deu-me o fardos das matérias, tudo bem organizado, foi um gosto preparar-me para tal exame, e ficou o encanto de nos revermos, sentia que gostava da minha companhia, a visita de um antigo aluno, de outras eras.
Bati à porta, com alguma insistência. Passou alguém e disse-me que o Sr. Professor já não vivia ali, na rua mais acima, e deu-me o número e a indicação de uma campainha. Ninguém atendeu, por absurdo não levava agenda. Mais tarde, o meu amigo Mário Reis disse-me que nesse preciso dia falecera a mulher, e que o professor tinha a saúde abalada, era o que sabia.
E agora, no preciso instante em que me despeço desta viagem, a sentida dor de uma perda, era um professor de comunicação rara, ouvi-lo falar sobre a cultura novecentista e ir mais atrás ao sebastianismo, era puro deleite, sempre a voz compassada, a gesticulação medida. Tudo isso perdemos, dou sempre comigo a pensar nos gigantes da cultura que aqui se ergueram, e permanecem, é uma dádiva do Espírito Santo, com certeza. E até à próxima viagem!

____________

Notas do editor

Poste anterior de 30 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23473: Os nossos seres, saberes e lazeres (514): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (61): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 6 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 4 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23493: Os nossos seres, saberes e lazeres (515): Visita de um grupo de sócios do Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes à exposição "O Cristo das Trincheiras", em Fátima, em Abril de 2015 (Abel Santos)

Guiné 61/74 - P23498: Parabéns a você (2088): Coronel Inf Ref Fernando José Estrela Soares, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2445 (Cacine, Cameconde e Có, 1968/70)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 de Agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23489: Parabéns a você (2087): TCor Inf Ref Rui Alexandrino Ferreira, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1420 e ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 18 (Fulacunda, Bissorã e Mansoa, 1965/67; Aldeia Formosa, 1970/72)