terça-feira, 9 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23508: (In)citações (213): Testamento, de Ana Luisa Amaral (1956-2022)... E homenagem a uma grande voz feminina da língua portuguesa (Luís Graça / Laura Fonseca)


Ana Luisa Amaral, Matosinhos,  Leça da Palmeira, 30 de setembro de 2014. 
Foto: Rita Amaral Ribeiro, 
Cortesia de Wikimedia Commons


1. Até sempre, poetisa! (*)
 por  Luís Graça

Quando morre um poeta ou uma poetisa,
morremos todos nós um pouco.
Ou morre um pouco de todos nós,
que de poeta e louco todos temos um pouco.

Não punhamos rótulos nos poetas ou nas poetisas,
porque são inclassificáveis,
não há poet...istas,
há só poemas, poemários,
há poetas, homens, mulheres,
novos, velhos, serôdios ou retardatários,
e sobretudo artesãos da(s) palavra(s),
talvez a mais bela invenção desse primata
que é o homo sapiens sapiens,
tão besta em tantas outras coisas
como a guerra, a violência, a intolerância, a estupidez.

A poesia é pura liberdade,
liberdade livre, disse outro poeta,
e a liberdade, quando é livremente livre,
é capaz de irritar, 
tão  ou mais que uma manada de elefantes a pisar a relva do jardim,
quem só vê as coisas através do manual da sua escola
ou do muro do seu quintal.

Ana Luisa Amaral
morreste, aos sessenta e seis anos,
porque eras mortal,
e tinhas medo de andar de avião,
mas gostavas tanto da vida
e das causas e das coisas e dos outros
que fazem a vida valer a pena.

Ficam os teus poemas, 
as tuas palavras magicamente concatenadas,
e eles e elas, os teus poemas e as tuas palavras,
serão, afinal, a tua prova de vida,
permanente.

Desculpa-me ter-te descoberto tão tarde 
(ou melhor, eu é que me penitencio),
só há dias fui à biblioteca municipal
requisitar o teu último livro, "Mundo".
E não o desgostei,
numa primeira leitura, avulsa, rápida, superficial, em diagonal.
Há demasiado ruído à nossa volta,
Ana Luísa Amaral,
e tanta coisa bela e essencial que nos escapa.

Nunca falariam tanto de ti, 
a comunicação social 
(e as redes sociais que tu detestavas),
se uma rainha espanhola, Sofia,
não te tivesse chamado ao paço
para te dar um prestigiado prémio... de poesia.
Sofremos, neste pequeno rectângulo ibérico,  
da síndrome do estrangeirado.
Que tristeza!

Nunca falariam tanto de ti
se agora não tivesses morrido,
assim tão de repente,
assim tão sem jeito,
sem tempo para gozares a fama e o proveito
de seres uma grande voz, feminina, da poesia em língua portuguesa.
 
Deixa-me então, reproduzir aqui, poetisa,
o teu "Testamento",
que leste há dias, uma semana antes de morreres, na RTP 3,  
no programa Grande Entrevista, do Vitor Gonçalves.

Leste-o, o teu "Testamento",
com grande beleza interior e serenidade e encanto.
E senti que já estavas no Olimpo dos poetas.
Leste-o premonitoriamente, 
sem poderes saber ou adivinhar
que o teu coração-avião já te tinha condenado à morte,
e ia falhar ou implodir no dia 5 de agosto.

Ana Luisa Amaral,
nem a tua Ritá nem nós, teus leitores, 
te vamos esquecer.
E tu serás a primeira a concordar
que  a poesia tem de se partilhar,
e chegar a todo o lado,
sem respeito pelas fronteiras ou outras barreiras
como os semáforos vermelhos.
Precisamos urgentemente do TGV da poesia
a percorrer a autoestrada da vida
mesmo em contramão,
mesmo em contravenção,
excedendo o limite legal dos 120 km/hora de velocidade.

Mas que pachorra,  este nosso comboio 
que, no seu ramerrame, pouca terra, pouca terra, 
mal faz pela vidinha!

E foste tu a dizer, há dias,
que os futuros jovens professores,
saídos das nossas faculdades de artes e letras, 
teus alunos, afinal, 
mestres e doutores de Bolonha, 
sabem quão coisa séria e grave é a poesia
a tal ponto que têm medo de a ensinar e de a dizer....
Por vergonha.

Há fome de poesia no mundo, 'priga'
(como se diz na minha terra natal)
mas, por favor, Ana,
que não nos venham fazer crer, Luísa,
que é tudo tetras,
e que a poesia não enche barriga, 
oh poetisa  Amaral!

Luís Graça, Lourinhã, 7 de agosto de 2022

2. Testamento

por Ana Luisa Amaral (1956-2022)

Vou partir de avião 
E o medo das alturas misturado comigo 
Faz-me tomar calmantes 
E ter sonhos confusos 

Se eu morrer 
Quero que a minha filha não se esqueça de mim 
Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada 
E que lhe ofereçam fantasia 
Mais que um horário certo 
Ou uma cama bem feita 

Dêem-lhe amor e ver 
Dentro das coisas 
Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes 
Em vez de lhe ensinarem contas de somar 
E a descascar batatas 

Preparem minha filha para a vida 
Se eu morrer de avião 
E ficar despegada do meu corpo 
E for átomo livre lá no céu 

Que se lembre de mim 
A minha filha 
E mais tarde que diga à sua filha 
Que eu voei lá no céu 
E fui contentamento deslumbrado 
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas 
E as batatas no saco esquecidas 
E íntegras.

In Ana Luisa Amaral - "Inversos. Poesia 1990-2010" (Lisboa, Dom Quixote, 2010, 656 pp.)  (Esgotado)

3. Mensagem da nossa amiga (minha e da Alice Carneiro),  Laura Fonseca, socióloga, especialista em Estudos sobre as Mulheres (Faculdade de Letras, Universidade do Porto), natural da Lixa, Felgueiras, a viver no Porto, que conheceu (e conviveu com) a Ana Luisa Amaral:


Laura Fonseca, Porto (by email)
8 ago 2022 20:14

Olá, Luís

Ainda não digeri a morte deste grande ser humano, poeta, colega, mulher de causas e também de algum relacionamento pessoal, feminista, académica de excelência. Partilhei com ela, nos anos 1990/2000(?), a direção da APEM - Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres. Estava ainda no início do seu reconhecimento poético e no final do seu doutoramento. O que nós partilhávamos e apreendíamos!!!

Na verdade, o teu amigo Adão Cruz (*) faz um texto belíssimo, que exprime bem o que penso e sinto em relação a esta mulher: tão culta, tão solidária, tão inquieta e subversiva perante os problemas humanos. E fazia-o sempre e tinha sempre tempo, com a sua presença, a sua poesia.

Admirava a sua cultura, o seu empenho, o caminho de maturidade poética que estava a trilhar, sem perder o pé na terra nas pequenas e grandes coisas. Ana Luisa adorava partilhar o seu trabalho, fazer e dizer poesia, divulgar o trabalho de outras mulheres e homens. Não se cansava de dizer sim e ser generosa, mesmo que crítica com tudo o que fosse errado para as pessoas e a natureza neste mundo.

É uma pessoa que nos deixa muito. Mas é também uma pessoa que nos vai fazer muita falta, ao mundo, ao país, ao Porto, à academia, à ciência, ao movimento cívico e político, aos amigos e à sua adorada filha Rita,  sempre sua companheira e sua inspiração de amor e de humanidade.

Obrigada, Ana Luísa, obrigada, Adão Cruz, pelo seu maravilhoso texto de homenagem. (**)

____________

Notas do editor:


 

6 comentários:

Unknown disse...

...a poesia é pura liberdade, liberdade livre disse outro poeta e a liberdade quando é livre é capaz de irritar tão ou mais que uma manadas de elefantes a pisar a relva do jardim.
QUEM SÓ VÊ AS COISAS ATRAVÉS DO MANUAL DA SUA ESCOLA, OU DO MURO DO SEU QUINTAL.....

Belo texto de homenagem a uma grande portuguesa.

Abraço fraterno Luís

Eduardo Estrela

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Sinceramente não conhecia esta poetisa. Pode ser que o erro seja meu, porque não procuro bem, pode ser que seja da dificuldade que quem escreve tem em ser ouvido (na TV e nos jornais) ou pouco divulgado. De qualquer modo, agradeço ao blog a divulgação de alguém com valor que morreu pouco conhecida, apesar da obra realizada.

Um Ab.
António J. P. Costa

Hélder Valério disse...

Caros amigos, se me for permitido, secundo o comentário de António J. P. Costa

Também eu não tenho ideia de "conhecer" esta poetisa e também agradeço a ter conhecido através dos depoimentos que fui lendo e, já agora, um agradecimento ao poema/homenagem do Luís Graça.

Hélder Sousa

José Teixeira disse...

A Ana Luísa Amaral fugia da ribalta. Gostava de estar e conviver em pequenos grupos. Além de poeta, era uma mulher de causas, causas que incomodam o cidadão comum, mas lhe enchiam a vida. Talvez seja uma das razões por que era pouco conhecida. Prendi-a a escrita e a leitura, mas falava pouco dela. Tive o prazer de a ouvir numa tertúlia de poetas e adorei.
Partiu cedo. Deixou-nos os seus escritos que por vezes são gritos. Que encontre a paz que sempre procurou construir em vida.
Zé Teixeira

Valdemar Silva disse...

Mesmo incomodados, os que não querem ouvir ou os que não querem ver, podem ler ou ouvir as palavras da Ana Luísa Amaral. É a sorte dos ingratos.

Ana Luísa Amaral deixou-nos as palavras em testamento das suas cerca de 50 obras de poesia, ensaio, teatro, ficção, literatura infantil e traduções.
Até os estrangeiros de cerca 15 países diferentes têm as suas palavras publicadas nas suas línguas.
As palavras das suas obras foram 11 vezes premiadas em Portugal e no estrangeiro.

Portugal é um país de poetas

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não é um livro barato (c. 45 euros, na FNAC, com 10% de desconto para os aderentes), mas vale a pena oferecer a nós próprios ou à nosss caras-metade, ou aos nossos filhos, em dia de anos...

O Olhar Diagonal das Coisas
Ana Luísa Amaral (1956-2022)
Lisboa, Assírio & Alvim, 1ª edição, abril de 2022, capa dura, 1383 pp, um calhamaço. Posfácio de Maria Irene Ramalho.
__________

SINOPSE
Estes são poemas de precisão, questionamento e de receitas para várias crises: O Olhar Diagonal das Coisas reúne os 17 livros de poesia de Ana Luísa Amaral, trinta anos em verso inaugurados por Minha Senhora de Quê (1990), até ao mais recente Mundo (2021).

METAFÍSICO FRUTO

Um fruto reticente é a saudade:
a pele custosa à faca, olhos como
cavernas onde a faca não chega e

uma arte cirúrgica é precisa.
Não posso permiti-la no caixote
a insistir-me a alma. Por isso

insisto a arte e a minha perícia
em lhe arrancar a pele, os olhos
reticentes de Sibila.

Às fatias depois — tarefa
igual —

https://www.assirio.pt/produtos/ficha/o-olhar-diagonal-das-coisas/25534213

"Este volume reúne toda a obra poética de Ana Luísa Amaral, iniciando com o livro inaugural da autora, «Minha Senhora de Quê», publicado em 1990, e terminando com o muito recente «Mundo», publicado em 2021" (...).

"São mais de trinta anos de um fulgurante trabalho poético que, como poucos em Portugal, tem vindo a ser reconhecido além-fronteiras, como o demonstra a recente atribuição do Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana. O volume, que congrega os 17 livros de poesia da autora, conta com posfácio de Maria Irene Ramalho.

https://www.e-cultura.pt/evento/26538