Queridos amigos,
Cheguei eufórico a Bruxelas, é a primeira viagem no continente desde aquele março de 2020 em que passei semanas a limpar a casa, a devorar livros, a ver as óperas que tão graciosamente a Metropolitan Opera House de Nova Iorque oferecia, a telefonar a meio mundo, por ora são relíquias do passado, ainda não ganhei consciência de como o mundo mudou. Bruxelas sofreu as mesmas transfigurações que aqui provamos, muitas lojas fechadas, profundas alterações na oferta, mas é talvez, depois de Londres, a cidade mais cosmopolita de toda a Europa, aqui trabalham povos de todo o mundo. A grande deceção são as exposições, já me falta a paciência para ver pedregulhos ou fieiras de metal e os arbustos, a que chamam instalações, ou aquelas telas com seis pinceladas, umas mais berrantes que as outras,todas elas intituladas sem título. Decidi reviver o passado, o primeiro dia a percorrer Marolles, igrejas e o museu Magritte, é sempre uma lavagem para a alma. Amanhã o dia será em Namur, viaja-se barato de comboio, quem me espera vai ficar de olhar arrelampado quando lhe disser que ela é a heroína subliminar do meu romance A Rua do Eclipse. Então sim, iremos passear por Meuse e contemplar a arte fantástica de Félicien Rops.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (63):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 1
Mário Beja Santos
Era o regresso a Bruxelas, depois da pandemia, a última visita fora no ano anterior. Do aeroporto de Zaventem toma-se o comboio para a Gare Central, aqui o metro até Herrmann-Debroux, daqui até Avenue du Geai, em pleno Watermael-Boitsfort, é um salto. Sinto-me praticamente em casa, ocorreu-me uma estranha lembrança, passou-se em meados de março de 1968, regressava de São Miguel para formar batalhão num regimento na Amadora. Cheguei a casa e tive a sensação que saíra na véspera, tudo arrumado como eu deixara, naturalmente que andara por ali o pano da limpeza, não era visível um grão de pó, deu gosto conversar com as minhas coisas. O mesmo ocorrera durante a viagem de comboio, a confirmação dos lugares, as igrejas, as estações ferroviárias, os mesmos sons de apito a mandar seguir a composição. Chego e é uma festa de amizade, proponho um passeio ali bem perto, ao Parc Seny, vamos para a natureza e desfiar recordações sobre estes últimos anos, tão difíceis para quem me recebe, não há nada como a viva voz superar o que se foi dizendo ao telefone ou mandou por mail. E de braço dado reenceta-se a festa da amizade, o doce reencontro de espaços e lugares.
Estás na mesma, meu adorável parc Seny, famílias e crianças estridentes, as brotoejas em flor, o parque confina com a floresta de Soignes, é uma vegetação delicadamente ajardinada, há para ali uns periquitos selvagens a fazer ninho, o lago tem o seu encanto, até as árvores mortas ornamentam este belo lugar de lazer. Conversa-se muito, regressamos, há muitas saudações à mesa, lembramos os que partiram, programamos esta semana de convívio que hoje começa, tão ansiada. Sim, amanhã começamos por onde tu gostas de começar, Marolles, é inevitável a feira da ladra, passeamos pelo bairro, tudo tão ao teu gosto, alguém recorda que gostava que fôssemos todos ao museu Magritte, na parte da tarde, tudo aceite. É um dia seguinte cheio de promessas.
Como aconteceu. Já se fez a praça do Jeu de Balle, quem me diria que me fizera comprador de ações e obrigações de há um século atrás de companhias de transportes ferroviários de Odessa, Moscovo, Xangai, Buenos Aires, papéis lindíssimos, cheios de cupões, fora tudo bem regateado, coisas de colecionador eclético, mas que dão indiscutível prazer. E passo a fazer a vigilância das paredes entre Marolles e o Grand Sablon, as paredes grafitadas são um encanto, não conhecia esta intervenção, importa registá-la, o passeio continua, estamos a ganhar lastro para uma boa almoçarada.
Coloco estas duas imagens neste artigo e importa explicá-las. Passei por aqui inúmeras vezes sem me dar conta do encanto desta montra de uma loja de adelo, e quanto à rua dos Tanoeiros nunca tinha dado pela boa escala deste quarteirão social, é um bairro dominado por população emigrante, é um prazer o vestuário africano berrante e ver passar gente do Magrebe. É nestas circunstâncias que me ocorre sempre o que José Saramago escreve no final do seu livro Viagem a Portugal, 1981: “O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com Sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles.”
Por esta é que eu não esperava, entrar num verdadeiro ferro velho, ali dominava o mobiliário e eis que subitamente se olha para um barco emoldurado e se fala consigo próprio, mas é o Santa Maria, onde o capitão Henrique Galvão andou a fazer as suas tropelias. E era mesmo, era uma fotografia do Santa Maria, o adeleiro pedia um preço exorbitante, 70€, além disso intransportável em voo low cost, mas gostei deste encontro com um dos ícones do que foi a nossa marinha mercante.
A Queda de Ícaro, Bruegel, o Velho
Entrámos todos na Igreja de Nossa Senhora da Capela, não só nos une uma grande amizade como todos nós gostamos seriamente de Pieter Bruegel, o Velho, um génio do renascimento, morreu com cerca de 40 anos, consta que só temos para dele fruir 40 quadros, alguns deles estão aqui bem perto no Museu Real das Belas Artes, felizmente que deixou sucessores, logo Bruegel, o Moço, formou-se uma grande empresa, há uns bons anos vi a exposição sobre a firma Bruegel, tão produtiva que os mais representativos museus do mundo têm obras suas. Pieter era flamengo, irá instalar-se em Bruxelas, trabalhou para a corte dos Habsburgo e para o cardeal arcebispo de Malines. Vezes sem conta subo ao Museu Real das Belas Artes só para ver um dos seus quadros mais espantosos, A Queda de Ícaro.
O púlpito da Igreja de Notre-Dame de la Chapelle
É o último passeio da manhã, sempre conheci esta igreja pelo nome de Notre-Dame du Sablon, afinal o seu verdadeiro nome é Notre-Dame des Victoires au Sablon, iniciada no século XV, gótico flamejante, relativamente poupada pelas guerras de religião e pela Revolução Francesa; foi restaurada no século XIX. Funcionou como igreja de peregrinação, ainda hoje há uma importante cerimónia na Grand Place em que a estátua da Virgem vai em procissão, é uma evocação da receção a Carlos V e Filipe II. Foi chamada a visita de médica, voltou-se à rue Blaes, vamos experimentar comida libanesa, nesta altura ainda não sabíamos que antes de visitar o museu Magritte íamos dar uma saltada ao centro cultural da Coreia, uma verdadeira surpresa.(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 6 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23499: Os nossos seres, saberes e lazeres (516): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (62): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 6 (Mário Beja Santos)
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