sábado, 29 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23746: In Memoriam (458): Manuel Alberto da Costa Marinho (1950-2022), ex-1.º cabo, 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512 (Nema / Farim e Binta, 1972/74)




Manuel Aberto da Costa Marinho (1950-2022)

1. Mensagem de Maria João Ferreira, sobrinha do nosso camarada Manuel Marinho, membro desde 15/9/2009 da nossa Tabanca Grande (*), entretanto falecido há três meses, notícia que acabámos de saber e nos deixa desolados:

Data - quinta, 27/10, 22:05/2022
Assunto - Manuel Marinho (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74),

Boa Noite,  

Não sei se posso enviar por aqui mas sei que muitos dos seus camaradas não sabem e pedia se podiam publicar este meu testemunho no vosso blogue sobre o meu tio Alberto Marinho que, depois das doenças que lhe diagnosticaram,  afastou-se de várias áreas da sua vida.

O meu nome é Maria João da Costa Marinho Ferreira. Sou licenciada em História e Mestre em História e Património.

O caminho que segui não foi por acaso. Sou sobrinha do ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), Manuel Aberto da Costa Marinho. O meu tio (como um segundo pai) sempre me contou as suas histórias que passou durante a guerra e isso inspirou-me a seguir o caminho da história e contar a história daqueles que já cá não estavam e que mereciam ser homenageados.

É isto que me traz aqui hoje.

O meu tio faleceu a 22 de Julho deste ano e está sepultado no cemitério de Agramonte, Porto (**)

Depois de alguns meses ainda sinto de luto, talvez porque não me despedi como deveria. No final da sua vida,  o meu tio escolheu a amargura da doença que o atacou e preferiu não ver a sua família ou amigos. Algo que hoje me arrependo de não ter forçado a minha visita.

Encontrei novamente o blogue que lhe apresentei anos atrás (*) e descobri a sua primeira mensagem no qual ele me menciona sem saber o quanto me inspirou:

"Apresenta-se o ex-1.º Cabo Manuel Alberto Costa Marinho, do 1.º GComb/1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, comissão em Nema/Farim, Binta, em 1972/74.

É com enorme sentido de gratidão, extensível aos restantes colaboradores do blogue e a todos os tertulianos da Tabanca Grande, que me dirijo, pela primeira vez. Mais vale tarde que nunca.

Como ex-combatente da Guiné, não posso ficar indiferente ao que de melhor temos neste País para testemunhar o que foi a Guerra Colonial, mais concretamente a da Guiné, vivida e contada pelos seus protagonistas, por isso mais uma vez, um muito obrigado pelo excelente trabalho que podemos testemunhar.

E antes de mais peço a admissão na “Tabanca”, certo que já o poderia ter feito, mas só agora julgo oportuno, pelo facto (se calhar egoísta) de estar a ajudar uma sobrinha a fazer um trabalho sobre a Guerra Colonial, foi a miúda, que me incentivou a contar as minhas vivências na Guiné, depois de consultar muitas vezes o blogue, e sabendo que estive no inferno de Guidaje, praticamente em todas as suas incidências.

Como muitos de nós já o disseram, é penoso lembrar o que já estava na penumbra da memória, mas acho valer a pena este esforço, porque entendo que uma parte muito importante das nossas vidas ficou para sempre na Guiné, numa Guerra da qual eu não me envergonho de ter participado, e sou dos que sabiam minimamente para o que iam.

Depois porque ao longo destes anos (e já são 35), somos vergonhosamente ostracizados por todos os poderes instituídos neste País, que foram coniventes com o apagar da memória colectiva, de tudo o que diga respeito à Guerra Colonial, e mais grave do que isso, transformando os que por razões várias desertaram, em heróis, e nós que combatemos, só nos falta pedir desculpas por ainda estarmos vivos a contar (dissecar) esta guerra.

Pessoalmente, sinto-me ofendido com a imagem redutora que tem sido dada às gerações que se seguiram, não quero louvores, mas exijo respeito pelos que morreram, e por todos os que ficaram marcados por ela para sempre.

Desculpa, camarada Luís, este desabafo, corta tudo o que achares necessário, porque sinto esta revolta surda sempre que abordo esta questão.

Quero saudar muito especialmente os camaradas Amílcar Mendes (*) da 38.ª de Comandos, Victor Tavares,  da 121 dos “Páras”,  e o Albano M. Costa,  da CCAÇ 4150, os dois primeiros que descrevem operações de combate e o Albano que me fez rever Binta, peço desculpas ao omitir mais camaradas, sei que os há que viveram Guidaje e escreveram sobre esse fatídico mês, os Fuzileiros por exemplo.

Como também não desejo que outros contem a Guerra por mim, vou descrever o ataque à primeira coluna para Guidaje, que como é sabido não chegou ao destino.”


A vida são dois dias e por vezes amarguras indispensáveis levam-nos ao afastamento dos nossos entre queridos.

Pretendo honrar o meu tio em um livro. Contarei as suas memórias que ele me deixou e precisava de comentários ou conhecer o batalhão que ele fez parte.

Sendo assim, presto a homenagem ao meu tio Manuel Alberto Marinho e imploro que de vocês entre em contacto comigo para falarmos sobre as memórias de Guiné e Guidaje e memórias de Manuel Marinho.

2. Comentário do editor LG:

O Manuel Marinho tem 37 referências no nosso blogue. Fazia anos a 11 de abril. Deixou de fazer prova de vida. A últíma vez que lhe publicámos um poste de parabéns foi em 2020. Temos a agora, com um atraso de 3 meses,  a funesta notícia da sua morte, dado pela sua querida sobrinha Maria Ferreira, cujas palavras nos comovem.

Vamos, naturalmente, ajudá-la a completar a escrita do seu livro com as memórias do seu querido tio e nosso já saudoso camarada que, conforme podemos verificar pelos postes que aqui publicou, era um apaixonado sobre tudo o dizia respeito a Guidaje e os duros combates que lá se travaram e os exemplos de abnegação e coragem que ele lá viveu, em maio de 1973 (****).  
Acho que podíamos publicitar aqui o endereço de email da Maria Ferreira, a quem convidamos para integrar a nossa Tabanca Grande e, de algum modo, suprir a falta que o Manuel Marinho nos faz, De qualquer modo, aguardamos que ela nos autorize a divulgar o seu endereço de email, se achar conveniente e necessário,  para troca de informações com os camaradas do Manuel Marinho, do BCAÇ 4512. E que, na volta do correio, nos diga se aceita o nosso convite. 

Sabemos que em 28/4/2013, o Manuel Marinho estava "a ultimar um trabalho sobre Guidaje, tentando sistematizar tudo o que se passou", mas acrescentando: "não sei se terei fôlego para chegar ao fim" (***)

Temos cerca de seis dezenas de referências ao BCAÇ 4512. Vamos partilhar essa informação com a Maria Ferreira.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4957: Tabanca Grande (173): Manuel Marinho, ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Farim e Binta (1972/74)

(**) Último poste da série > 19 de outubro de  2022 > Guiné 61/74 - P23720: In Memoriam (457): Xico Allen (1950-2022), ex-Soldado Condutor Auto, CCAÇ 3566, "Os Metralhas" (Empada e Catió, 1972/74): A minha homenagem ao amigo Xico Allen, como sempre o tratei (Albano Costa)

(***) Vd. poste de 28 de abril de  2013 > Guiné 63/74 - P11491: 9º aniversário do nosso blogue: Questionário aos leitores (31): Respostas (nº 58 e 59) de Manuel Marinho, ex-1.º Cabo do BCAÇ 4512 (Nema e Binta, 1972/74) e José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf da CART 2716 (Xitole, 1970/72)

(...) Gosto das estórias que vou lendo sobre a nossa presença na Guiné, e tenho a impressão que já conhecia muitos destes camaradas, é uma aprendizagem constante, de facto este Blogue é um caso único de afectos e camaradagem. (...)

(...) No Blogue, não gosto de escritos que nada têm a ver com a Guiné, não gosto de ver fotos de camaradas nossos aos abraços com elementos do PAIGC, não gosto de escritos sobre quem nos traiu, estou a referir-me a desertores, (o lugar deles não é neste Blogue), não gosto de elogios ao PAIGC, porque não lhes devo nada, e não gosto da ficção de muitas das estórias contadas, devemos fazer um esforço para escrever (contar), com os nossos 20 anos de então, e não com os olhos e a experiência de hoje.

(****) Vd. por exeplos postes de:

7 de outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5067: Guidaje, Maio de 1973 (1): Momentos difíceis para as NT (Manuel Marinho)

7 de novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5230: Guidaje, Maio de 1973 (2): O fim do pesadelo (Manuel Marinho)

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23745: Notas de leitura (1511): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
O Zé Matos teve a gentileza de me enviar o mail com o miolo deste livro que ele escreveu em parceria com um reputado especialista, Matthew Hurley. Oxalá que surja a possibilidade de haver uma tradução portuguesa, pelo menos as instituições da Força Aérea deviam cuidar de quem investiga em sua memória. Aqui vai a introdução, só lhe introduzo um reparo acerca da estagnação económica que os autores referem sobre o período. Não foi nada assim, autores da maior probidade e rigor já esclareceram como os anos 1960 foram decisivos de diferentes títulos: a tumultuosa emigração, a avalanche turística no Algarve, os investimentos estrangeiros, a explosão industrial, etc., são dados indiscutíveis. O mesmo não acontece com os primeiros anos de 1970, e a crise petrolífera atingiu-nos em cheio, é contemporânea de uma situação aguda em mobilizar mais jovens para os conflitos africanos. Ainda bem que vemos investigadores portugueses envolvidos em trabalhos que possam circular na arena internacional da pesquisa e confronto de posições.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (1)


Mário Beja Santos

Este primeiro volume d’O Santuário Perdido por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

É um pequeno volume onde, depois de se dar informação sobre abreviaturas e notas terminológicas, se faz uma curta introdução, a que os autores intitulam “Crocodilos e Bombas”. Na edição de hoje, sumariamos, por conta e risco próprios, o essencial de tal introdução.

Em 1960 ocorre uma mudança extraordinária na aviação militar, aparecem no terreno aviões supersónicos, misseis e o radar concorreu para o modo de fazer a guerra. Em Portugal, nesse mesmo período, a mudança foi outra. De 1961 para 1975, Portugal combateu em África e a Força Aérea Portuguesa (FAP) travou uma guerra a baixa-altitude com aparelhagem eletrónica rudimentar contra a guerrilha. Estas operações da FAP eram de baixa intensidade. É uma das razões por que a guerra portuguesa em África passou praticamente sem nenhum estudo de observadores contemporâneos, em Portugal ou fora de África.

Mesmo com estas limitações, a FAP, no teatro africano da Guiné, mostrou o valor e as vulnerabilidades do poder aéreo num contexto irregular, como instrumento da contrainsurgência. De 1963 a 1974 a FAP desempenhou sucessivamente missões que incluíram bombardeamentos ofensivos e atividades humanitárias. No nível de ação direta e de resultados militares imediatos a FAP provou ser a mais importante arma contra a guerra subversiva e, em alguns momentos, o seu modesto desempenho pareceu levar a insurgência ao colapso. Contudo, devido à efetividade da FAP, o aparelho imperial – e especialmente a sua componente militar – foi crescendo excessivamente dependente da operacionalidade aérea. Os independentistas viram-se obrigados a dar prioridade à defesa aérea. Os imperativos da competição envolveram as capacidades da FAP e da guerrilha e acabaram por se constituir o pivô do resultado da guerra.

Durante a guerra que Portugal travou na Guiné, a FAP demonstrou um notável poder de intervenção, e assim se conseguiu manter uma campanha ao longo de uma década em ambiente austero apesar das deficiências crónicas em meios aéreos, armamento e pessoal – fragilidades devidas à estagnação económica interna (?), mudanças demográficas e hostilidade internacional ao império português.

Há ainda que ter em conta a resiliência da FAP tendo em conta a existência de outros teatros de operações e o enquadramento logístico exigido pela NATO (recorde-se que a NATO exigiu a retirada dos F-86 da Guiné). A adaptabilidade da FAP e a utilização hábil dos seus meios permitiram manter sempre o apoio a um exército disperso em alguns dos terrenos mais inóspitos do planeta. Antigos comandantes portugueses e historiadores têm assinalado esse excelente desempenho da FAP e alguém disse que se tratou de “uma notável proeza de armas”, independentemente do desfecho da guerra.

Acontece que a situação mudou radicalmente com o aparecimento em primeira mão dos teatros de guerrilha dos misseis terra-ar, que exigiram procedimentos estritos à FAP, quando no passado dispunha de uma supremacia quase absoluta, e a partir do momento em que os outros ramos das Forças Armadas se aperceberam do caráter retrátil dessa operacionalidade, acusaram emocionalmente a baixa.

A guerra aérea na Guiné Portuguesa continua em grande parte inexplorada nos círculos militares e mesmo académicos, merece maior audiência o seu estudo pela forma económica e eficaz com que atuou não só num enquadramento geopolítico tumultuoso e de rápida mudança tecnológica.

Imagem do “DO”, a aeronave que nenhum dos antigos combatentes esqueceu pela sua tão estimável presença

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23734: Notas de leitura (1510): "O Negro Sem Alma", romance de Fausto Duarte, 1935 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23744: Parabéns a você (2109): Cor Inf Ref Luís Marcelino, ex-Cap Mil Inf, CMDT da CART 6250/72 (Mampatá e Colibuia, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23722: Parabéns a você (2108): Rogério Cardoso, ex-Fur Mil Art da CART 643 (Guiné, 1964/66)

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23743: "Alfero Cabral ca mori": Lista, por ordem numérica e cronológica, das 94 "estórias cabralianas" publicadas (2006-2017) - V (e última) Parte: de 80 a 94


Lisboa > Sociedade de Geografia > 2008 > O "alfero Cabral" e as suas... máscaras

Foto: © Jorge Cabral (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro de Jorge Cabral (1944-2021)
"Estórias Cabralianas", vol I. Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp. 


1. O nosso Jorge Cabral, que nos deixou, inconsoláveis,  no dia 28 de dezembro de 2021 (*), vai fazer um ano, tinha um II volume das "estórias cabralianas" praticamente pronto para ser publicado. O editor adoeceu e a morte surpreendeu o autor. 

Do I volume, ainda restavam 11 exemplares até há dias, segundo informação do nosso camarada Luís Mourato Oliveira que lá foi, por indicação minha,   comprar dois exemplares para levar para Bissau, dentro de um mês.  Contacto desta livraria (especializada em livros usados e de pequenas editoras independentes):

Leituria, Rua José Estêvão, 45A, Lisboa
telem: 967 224 138, email: livros@leituria.com


Hoje publicamos a lista final das estórias cabralianas que o nosso blogue foi editando ao longo dos anos, entre 2006 e 2017 (**). As últimas (de 80 a 94) são já da última fase da produção literária do autor (entre setembro de 2013 e janeiro de 2017). 

Refira-se que,  desta última lista,  a estória mais lida (=503 visualizações) foi a nº 83 (Da Gata Catota à Tabanca da Queca...). Teve 14 comentários, entre os quais o de um outro histórico membro da Tabanca Grande que a morte também já nos arrebatou, no mesmo ano horrível  de 2021, o Torcato Mendonça (1944-2021): 

Olá, meu caro Jorge,  eu, neste fim de tarde friiiiooooo e chato, necessitava mesmo de uma destas. Li, e ao aparecer a "catota", fiz "Oh!! e ri com gosto. Genial e a confirmação de que muitos capitães, talvez devido a excesso de esforços, muitos deles não tinham sentido de humor...ou, pelos deuses, nunca "partiram catota" (26 de novembro de 2013 às 18:06).

Também muito vista (=459) e comentada (n=11) foi a estória nº 89 (Os filhos do sonho...)
Escreveu o Cherno Baldé: 

Jorge Cabral, não sei se aconteceu de verdade, mas a ÁQfrica é rica e incrivelmente surpreendente do ponto de vista da mística e do misticismo inexplicável. Entre certas etnias da Guiné acredita-se que uma pessoa (uma mulher ou homem) com poderes místicos pode transformar-se num lagarto e, assim, roubar a alma da pessoa (do homem ou da mulher) de quem se gosta, podendo assim dar *a luz a um(a) filho(a) tal e qual ao homem ou mulher a quem se roubou a alma ou espírito.

Estas e outras técnicas de méstica (engenharia social) ajudam as famílias a aceitar no seu seio aquilo que à primeira vista poderia ser inaceitável como,  por ex., fazer, sobretudo, com que os homens (maridos) participem na educação de criancas nascidas fora do lar (mestiças) de uma forma natural e sem constrangimentos (4 de setembro de 2015 às 10:17 )

Como eu também escrevi, a escassas semanas dee morrer, o Jorge Cabral era um verdadeiro oficial e cavalheiro, o último dos românticos do império (**) (LG)

PS - Espantoso: os meus amigos e amigas não o esquecem. Quase um ano depois da sua morte, a sua página no Facebook continua a ser "alimentada" com gratas e (e)ternas recordações da sua vida como professor e ser humano. Tratava as suas queridas alunas por "Alminhas", e ele era, para elas, a "Alma Maior"... Alma de Almeida, Jorge Pedro de Almeida Cabral... 


2. Lista das estórias cabralianas, por ordem numérica e cronológica - V (e última) Parte: De 80 a 94 (*):

13 de setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12035: Estórias cabralianas (80): As mulatas de Luanda (Jorge Cabral)

(...) Numa noite, no início de Maio de 1968, apareceu-me irritado o meu amigo Filipe. Ia para a tropa.
– Tens a certeza Filipe? Olha vamos passar por lá, pela Junta de Freguesia. (Onde à porta afixavam as listas).

E fomos. Corri os olhos pelo edital e era verdade. Lá constava, Filipe Narciso Gonçalves da Silva. Só que, um pouco mais abaixo, encontrei o meu nome, Jorge Pedro de Almeida Cabral. Devia ser engano, um erro, eu tinha direito a adiamento. Que o Filipe fosse, não era para admirar. De igual idade e entrados ao mesmo tempo na Faculdade, ele não passara do primeiro ano, enquanto eu contava acabar o curso no ano seguinte. (...)

30 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12222: Estórias cabralianas (81): Em Vendas Novas, de ronda, na Tasca das Peidocas (Jorge Cabral)

(...) Em Janeiro de 1969, eis-me garboso aspirante na E.P.A. [Escola Prática de Artilharia], em Vendas Novas. Ao contrário dos outros aspirantes, encarregados da instrução no C.S.M. [, Curso de Sargentos Milicianos], eu fui colocado na Secção de Justiça e na Acção Psicológica, sendo ainda nomeado árbitro de andebol da Região Militar. (...)

2 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12238: Estórias cabralianas (82): Quando cabeças e rabos não são equivalentes, e nem sempre dois mais dois são igual a quatro: O Sitafá, as fracções e as sardinhas (Jorge Cabral)

(...) Em Missirá durante dois meses, estivemos sem abastecimentos. Época das chuvas, o sintex e os dois unimogues avariados .Ainda tínhamos conservas,mas faltavam as batatas, o vinho e o arroz para os africanos. Um dia porém, o Pechincha conseguiu fazer dos dois burrinhos, um, que andava. Fomos a Bambadinca, deixando a viatura, à beira da bolanha de Finete, que atravessámos até ao rio, o qual cambámos na piroga do Fodé. (...)


26 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12345: Estórias cabralianas (83): Da Gata Catota à Tabanca da Queca... (Jorge Cabral, com bolinha...)

(...) No fim dos anos 70, era um simpático advogado, com muitas clientes que me gabavam a grande sensibilidade…Entre elas, destacava-se a D. Prazeres, que eu divorciara de um marido violento e me assediava todos os dias, com questões que, de jurídico, tinham muito pouco. (...)

8 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12556: Estórias cabralianas (84): Ganhámos! O Alfero meteu golo!... (Jorge Cabral)

(...) Um dia, ouvi, em Bambadinca, que ia haver um campeonato de futebol. Para além da CCaç 12 , entravam todos os Pelotões e Serviços da CCS. Inscrevi o Pel Caç Nat 63, embora não tivéssemos equipa, nem sequer bola, que me apressei a adquirir.

Chegado a Fá, ordenei treinos diários. Tarefa difícil, pois os meus soldados africanos nem as regras conheciam. Eram fortes e rápidos, mas pareciam especialistas em sarrafadas. Para tirar a bola ao adversário valia tudo. (...)



(...) A 24 de Dezembro pela manhã, fomos a Bambadinca. Trouxemos bacalhau e o correio. 

Para mim chegou uma carta dos meus sobrinhos, escrita pela minha irmã. Dentro dela, um desenho do Pai Natal. Barba branca e uns óculos na ponta o nariz. Tal e qual eu ,agora…

À noite consoámos. Nem tristes, nem alegres.

No dia 25, como fazia sempre de madrugada, fui atrás do meu abrigo, junto ao arame, aliviar a bexiga. Mas, mesmo antes de iniciar a função, olhei a mata. Olhei e vi todas as árvores enfeitadas com luzes e bolas cintilantes:
 –Venham ver! – gritei. (...)

17 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14760: Estórias cabralianas (86): Alferofilia (...uma parafilia a acrescentar à lista DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, da APA - American Psychiatric Association (Jorge Cabral)

(...) O Alfero nem oito dias tinha de Missirá, quando Binta, a mulher do Milícia, se meteu no seu quarto – abrigo, convidando-o a ...Ainda pensou resistir, mas... Na função era básica, mas os dotes pedagógicos do Alfero, surtiram efeito.

Era conhecida como a mulher do Milícia, mas não tinha marido, pois o repudiara, segundo os usos e costumes, por questões anatómicas, como se dizia na Tabanca. (...)


(...) Em Missirá, jantávamos cedo. Éramos apenas onze brancos e rápidamente despachávamos o pé de porco com arroz ou a cavala com batatas. Depois ficávamos à mesa conversando. Alguns mais resistentes permaneciam noite dentro. Um deles era o novo cozinheiro, o Espanhol, soldado básico, que mancava. (...)

 29 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15054: Estórias cabralianas (88): A bebé de Missirá (Jorge Cabral)

(...) Só no início de julho de 1969, quando o Pelotão se preparava para ir para Fá é que descobri que além dos vinte e quatro soldados africanos, contava com as respectivas mulheres, filhos, cabras e galinhas… Instalados, o quartel virou tabanca, animada com as brincadeiras das crianças e os risos das mulheres. Todos os soldados fulas eram casados e alguns com mais de uma mulher, pelo que existiam sempre grávidas e partos. (...)


3 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15070: Estórias cabralianas (89): Os filhos do sonho (Jorge Cabral)

(...) Grande escândalo em Missirá. A bela bajuda Mariama, apareceu grávida. Sobrinha do Régulo e há muito prometida a um importante Daaba de Bambadinca, era preciso averiguar...

Reuni com o Régulo e chamámos a rapariga, Após um interrogatório cerrado, ela, muito a medo, esclareceu:
– O pai era o Alfero…
– Mas quando e onde?
– É que uma noite sonhei com ele. (...)

22 de dezenbro de 2015 > Guiné 63/74 - P15526: Estórias cabralianas (90): A Pátria é um Natal, e o Natal é uma Pátria (Jorge Cabral)

(...) Foi no dia 25 de Dezembro de 1970.

Talvez porque o Spinola nos havia visitado há pouco,  o Sitafá, o puto que vivia connosco, interrogou-me:
– Alfero, o que é a Pátria? (...) 

9 de janeiro de  2016 >  Guiné 63/74 - P15598: Estórias cabralianas (91): Alfero Obstetra, mas também Dentista de Balantas... (Jorge Cabral)

(...) Numa noite, aí pelas três horas, fui acordado pelas Mulheres Grandes, que me pediram para levar uma parturiente a Bambadinca.

Embora a bolanha de Finete estivesse transitável, seria impossível atravessar o rio, acordando o barqueiro. Claro que os partos eram assunto de mulheres e foi com muita relutância que me deixaram observar a situação. Não só observei, como colaborei activamente no nascimento de uma menina. (...) 


(...) Bacalhau ensaboado e os Três Reis Magos. Poucos são os Natais de que me lembro. E no entanto, já passei mais de setenta. Mas este, Missirá 1970, nunca esqueci. Tínhamos bacalhau. Tínhamos batatas, Fomos tarde para a mesa, a mesma de todos os dias, engordurada, sem toalha. Chegou o panelão fumegante e começámos.
– Caraças!, o bacalhau sabe a sabão! – disse o Branquinho. (...) 


8 de janeiro de 2017 >Guiné 61/74 - P16930: Estórias cabralianas (93): Porra, meu Alferes, não sabia que os Turras também tinham Mãe!?! (Jorge Cabral)

(...) NI-OI, NI-OI, NI-OI… Continuamos Amigos e Cinéfilos, Dalila.Tu vês filmes, eu, entro neste, tragicomédia que nunca mais acaba…

Desta vez houve guerra, dois mortos em Salá, mesmo junto a um limoeiro. O milícia Demba pisou uma mina reforçada e desapareceu da cintura para baixo. Os gajos abriram fogo e o meu soldado Guiro de rajada lerpou um turra, de pistola à cinta.
- NI-OI, NI-OI,NI-OI… - berrava o turra. (...) 


16 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16958: Estórias cabralianas (94): 1º Cabo Monteiro, pedicure: "Ó meu alferes, olhe-me só essas unhas dos pés, essas enxadas! Venha cá!"... (Jorge Cabral)

(...) Entre os meus militares metropolitanos, há o homem mais habilidoso que conheci, o Monteiro. Foi ele que construiu o forno e desmontou e montou o gerador. Ora uma vez, ainda em Fá, olhando as minhas unhas dos pés, chamou-me:
– Oh, Meu Alferes, olhe-me essas enxadas! Venha cá! (...)

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(**) Vd. postes anteriores da série >

(***) Vd. poste de 6 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22693: Antologia (79): "Alfero Cabral", oficial e cavalheiro... ou o último dos românticos do império (Jorge Cabral, autor de "Estórias cabralianas", 1º volume, 2020)

Guiné 61/74 - P23742: Blogoterapia (305): A Boina (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 24 de Outubro de 2022:


...A boina

Já faltava pouco tempo para regressarmos à Europa, assim, a nossa mente andava um pouco ocupada, mas não tanto para que não se reparasse na falta de recursos daquelas pessoas. Quando livres das nossas tarefas, continuávamos andando por ali, visitando algumas aldeias próximas do aquartelamento levando comida e pão que roubávamos no aquartelamento, assim como rebuçados que comprávamos na loja do Libanês.

Não compreendíamos a alegria nos rosto daquelas pessoas ao ver-nos chegar. Viviam na mais profunda miséria, mas aparentavam sentir-se bem naquelas casas térreas, cobertas com folhas de colmo, com toda aquela falta de utensílios domésticos. Uma simples lata vazia de conserva, que levávamos do aquartelamento, era guardada como se fosse uma coisa preciosa. Não havia água potável, era suja de lama, pó, lixo em tudo o que fosse lugar, improvisando quase tudo e, nunca ouvimos da boca daquelas pessoas uma pequena lamúria.

Mas agora recordando aquele miserável conflito armado em que estivémos envolvidos em África, sabíamos que os objectivos eram provar que a força encontrava a força e, para qualquer dos vencedores, era uma conquista fútil, era uma agressão errada, pois num conflito armado não existem vencedores, os que perdem nunca esquecem, transmitindo a mensagem à próxima geração de família, portanto está provado que um conflito armado, simplesmente não funciona.

E, para nós havia diversos rostos. Talvez o primeiro fosse o verdadeiro conflito armado, o das emboscadas mortíferas, do terror, dos tiroteios, dos ataques do inimigo aos aquartelamentos com as armas morteiro calibre 90 ou das bombas de napalme lançadas pelos aviões das nossas forças que destruiam aldeias e, dos soldados cansados, alguns desmotivados por verem os seus companheiros morrerem ali mesmo, junto de si, os quais, quando era possível, ajudavam a embrulhar no seu própro camuflado o que restava dos seus corpos.

Talvez o segundo rosto da guerra fosse a busca de uma solução política, ou seja, a diplomacia política, mas naquele tempo, com um primeiro-ministro, que se considerava um pai da nação, que tinha falado ao seu povo que devíamos "ir para a guerra e…, em força", sabendo que ia traumatizar uma geração de jovens que, práticamente foram abandonados, assim que se procedeu à independência das ditas Colónias em África, possívelmente envergonhando-se que essa geração era uma geração de combatentes, que defenderam a bandeira do país Portugal, ignorando a legenda que diz: "País que não respeita o passado, não pode ter um bom futuro”.

Não nos querendo alongar, talvez um terceiro rosto da guerra que vivemos em África seja a mais trágica. Era a necessidade humana, onde existia o doente abandonado, a família faminta, a criança analfabeta, centenas, talvez milhares de homens, mulheres e crianças abandonadas, sem abrigo, vestidas com farrapos, lutando pela sua sobrevivência, numa terra muito rica.

Onde as árvores, deixando-as em paz, cresciam com fruto, o peixe dos rios era abundante, havia animais nas savanas, florestas e pântanos e se houvesse paz cresciam e, sobretudo com um solo que era muito fértil.

No entanto, esta última vertente da guerra, trazia-nos angustiados, pois infelizmente alguns, mesmo nos dias de hoje, não querem o fruto das árvores para comer, procuram única e simplesmente, os frutos materiais das árvores.
Voltando de novo às aldeias e ao povo que vivia naquela profunda miséria, quando comiam, chamavam os cães magros e famintos, que por ali andavam, repartindo o pouco que lhe levávamos. Estas cenas ainda nos davam mais angústia, fazendo-nos lembrar os valores morais da nossa civilização, que repousa na natureza de sermos úteis ao próximo e, não procurar a guerra em que estávamos envolvidos, que naquela época era uma ameaça àquelas pessoas que viviam uma vida de sobrevivência.

No entanto, e este escrito é dedicado a ela, havia por lá uma criança, que não nos largava, sempre vinha em nosso redor agarrando-nos na mão, queria carinho e talvez rebuçados, pois imediatamente nos colocava a mão no bolso. Nós, às vezes embaraçados, não sabíamos com agir para nos despedirmos dessa criança, os seus olhos falavam, eram humildes, dizendo tudo o que lhe ia na alma, não necessitava abrir a boca, aqueles olhos falavam todos os idiomas do mundo.

Ao regressar à Europa, deixámos as botas de cabedal e parte da roupa da farda, assim como algum dinheiro a essa família, mas a criança, não queria a roupa da farda, queria a boina e o emblema. Nós, quase chorando, entregámo-la com um grande beijo, mas a criança sorriu, tirou o dedo da boca, limpou o ranho do nariz com as costas das mãos, deu uma gargalhada, mostrando um sorriso que dispensava palavras, pois a sua alegria falava todos os idiomas do mundo.

Tony Borie,
Outubro 2022.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23707: Blogoterapia (304): Éramos um combatente da “farda amarela” e… desarmado (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

Guiné 61/74 - P23741: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte V: 4º e último episódio, "Laços de Sangue", hoje, 5ª feira, dia 27, às 20h00, na SIC Notícias, Jornal da Noite


Série documental "Despojos de guerra", 4ª episódio: "Laços de sangue", Fotograma do "trailer" (3' 58''). Um dos entrevistados é o José Maria Indequi, secretário da direção da Associação da Solidariedade dos Filhos e Amigos dos Ex-Combatentes Portugueses na Guiné-Bissau (FIDJU DI TUGA).

1. Sinopse, com a devida vénia, SIC Notícias > 25 out 2022, 12h17;

Chamam “filhos de tuga” aos mestiços nascidos das relações entre militares portugueses e mulheres africanas que foram deixados para trás. Entre a revolta e a esperança, ainda hoje tentam encontrar um nome de pai e descobrir a outra metade da sua identidade, como sucede aos irmãos Elva e José Maria Indequi.

"Despojos de Guerra" revela histórias extraordinárias de espionagem, patriotismo, sobrevivência e romance, tendo como pano de fundo a guerra colonial portuguesa em África (1961 a 1974).

Com recurso a imagens de arquivo extraordinárias e pela primeira vez submetidas a um processo de colorização inédito em Portugal, esta série documental, com assinatura de Sofia Pinto Coelho, vem dar voz a heróis anónimos que relatam agora, na primeira pessoa, as encruzilhadas que enfrentaram em tempo de guerra e de descolonização.

"Despojos de Guerra" é uma coprodução da Blablabla Media com a SIC, com o apoio à inovação audiovisual do ICA – Instituto do Cinema e Audiovisual.

Esta quinta-feira é apresentado o último episódio da série documental "Despojos de Guerra", disponível na plataforma Opto.

Sobre este tema, e sob o descritor "filhos do vento", temos mais de 6 dezenas de referências no nosso blogue. ]

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23740: Historiografia da presença portuguesa em África (340): A Reconquista da Costa da Guiné, por Leite Magalhães, coronel e antigo governador (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Não se pode dizer que este trabalho represente uma lança em África, reconheça-se que o antigo governador da Guiné procurou ser meticuloso quanto à presença portuguesa desde o Infante D. Henrique até ao fim da dinastia de Avis, embora ele não tenha dado o devido valor, que agora os arquivos reconhecem, à tenaz afirmação dos concorrentes que vinham de Espanha até aos Países Baixos, todos na mira do tráfico negreiro, do comércio do ouro e da malagueta. Dizer-se que o espaço ocupado pelos portugueses se manteve incólume até à chegada dos Filipes é um tanto flor de retórica, como diz o povo "quem não aparece, esquece", é evidente que estes reis apoiaram o tráfico negreiro mas não colonizaram. Bem dizia André Álvares de Almada no termo do seu Tratado Breve dos Rios da Guiné, dirigindo-se a Filipe I de Portugal, que aquela zona era riquíssima e que precisava de ser colonizada. Não foi, e D. João IV viu-se em apuros para restabelecer a presença portuguesa a partir de Cacheu e contando com a orientação de Cabo Verde.

Um abraço do
Mário



A Reconquista da Costa da Guiné, por Leite Magalhães, coronel e antigo governador

Mário Beja Santos

"A Restauração e o Império Colonial Português", edição da Agência Geral das Colónias, 1940, é uma obra coletiva e nela consta um texto assinado pelo Coronel Leite Magalhães, antigo governador da Guiné, ele aparece na seção intitulada "A Reconquista do Império", e faz uma apreciação do que se passou na Costa da Guiné.

Procede a uma resenha dos acontecimentos ligados ao projeto henriquino, observando que depois da morte do Infante a Costa da Guiné se estendeu com D. Afonso V e D. João II até ao Cabo da Boa Esperança. Usava-se o termo Costa da Guiné para falar de toda a costa ocidental de África para além do rio Senegal, esta designação foi usada bastante tempo. O máximo da sua extensão deverá considerar-se atingido pela viagem de Rui Sequeira em 1475, ele chega ao Cabo Catarina. Foi este o último dos navegadores que, nos termos do contrato celebrado entre Fernão Gomes e D. Afonso V, fez o descobrimento da costa desde o Cabo Mesurado até ao extremo do Golfo de Biafra, também descobrindo as ilhas de S. Tomé, Príncipe, Ano Bom e Fernando Pó, todas no mesmo Golfo. Toda esta nova e vasta zona passou a jurisdição da ilha de S. Tomé, foi doada a Álvaro de Caminha, seu povoador.

Assiste-se agora a um compasso de espera, já que D. Afonso V tinha duas preocupações dominantes, continua Leite Magalhães: Marrocos e Castela. Seja como for o contrato com Fernão Gomes acabou por abrilhantar o seu reinado, tendo o seu filho, D. João II, dado continuidade ao projeto henriquino.

O Infante D. Henrique pelo seu testamento (1460) legou a Guiné e “suas ilhas” (Cabo Verde) ao seu sobrinho, o Infante D. Fernando, irmão de D. Afonso V. Acresce dizer que desde de 1461 toda a costa da Guiné, entre o rio Senegal e a Serra Leoa fica ligada a Cabo Verde. Em 1474, findo o contrato com Fernão Gomes, D. Afonso V faz doação a seu filho D. João de todo o comércio da Guiné. A costa era rica em mercadorias preciosas: o ouro, a malagueta, o marfim e os escravos. E logo começou a aparecer a pirataria em descarada competição. É nesse contexto que se abrem hostilidades com Castela, em 1479, segue-se um tratado de paz com os Reis Católicos, nesse mesmo ano, e nele se fez o reconhecimento do senhorio da Guiné ao Rei de Portugal.

Dada a presença constante de concorrentes ao comércio português nestes pontos da costa ocidental africana, houve um plano de construção de fortalezas, deu-se primazia ao Castelo de S. Jorge da Mina, pois para aqui convergia todo o comércio da Costa da Malagueta, Costa do Marfim, Costa do Ouro e Costa dos Escravos. Este plano de construções continuou no reinado de D. Manuel, construiu-se uma fortaleza em Axém, onde se resgatavam “em cada ano 30 a 40 mil dobras de bom ouro”. Em Lisboa, todos os negócios daquelas bandas corriam pela Casa da Mina e Tratos da Guiné. Contudo, a presença portuguesa era episódica e limitada aos pontos de comércio. Iniciara-se um sistema de colonização com o povoamento de Santiago, com cultivos feitos por gente da Guiné. D. João II acrescentou aos seus títulos, em 1485, o de Senhor da Guiné, na prática era um título decorativo. Ele doou em 1489 as ilhas cabo-verdianas a D. Manuel. E em 1490, Rodrigo Afonso, Capitão em Santiago, iniciou o povoamento da ilha da Boa Vista com negros transferidos da ilha de Santiago.

Outra peça importante, mas meramente em termos legais, foi o Tratado de Tordesilhas em que se regularam as zonas de influência portuguesa e castelhana em Marrocos e também a divisão geral das terras descobertas e por descobrir. O período que decorre desde a morte de D. João II até a ocupação de Lisboa pelas tropas castelhanas não regista alterações sensíveis na costa da Guiné. Mantinham-se inalteradas as jurisdições das capitanias. Porém, aquela expansão do espaço imperial trouxe novas preocupações e exigências. Indiferente ao que se passava no continente africano, as ilhas de Cabo Verde aumentavam de população, crescia a exploração agrícola e pecuária. Surgiu a cultura do algodão, os gados bovino, caprino, cavalar e suíno multiplicavam-se nas ilhas. Convém recordar que o porto da Ribeira Grande na ilha de Santiago servira de porto de escala à armada de Vasco da Gama em 1497, ia este em demanda da Índia. O mercado de escravos continuava a tentar a concorrência, o rei D. Manuel bem tentou por alvará criar disciplina quanto a esta presença estrangeira, chegou a proibir os moradores das ilhas de fazerem resgates na Guiné sob pena de prisão e perda de navios, com magros resultados.

Durante o período filipino vai crescer a presença dos inimigos de Espanha e automaticamente Portugal, mas em caso algum se pode dizer que esta pirataria pôs em causa o que se chamava a presença portuguesa. E Leite Magalhães dá como demonstrado que até Filipe I de Portugal nada se perdera na Costa da Guiné, o saque começou depois. Admitamos que as coisas que se tenham passado mais ou menos assim, mas é na ausência da presença portuguesa que nomeadamente ingleses, holandeses e franceses começam a tomar posições que futuramente merecerão a ocupação envolvente do enclave da Guiné Portuguesa, era tarde demais para melhorar a nossa presença no que outrora fora a Alta Senegâmbia.

É bem curiosa a exposição de Leite Magalhães, não esqueçamos que estávamos a comemorar a Restauração e não ficava mal lançar o ónus do que se viera a passar na Senegâmbia aos Reis Filipes…


Bissau, o Mercado do Bandim
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23719: Historiografia da presença portuguesa em África (339): Três artigos sobre a Guiné nos Anais do Clube Militar Naval (1946 e 1947) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23739: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte V: a juventude antes da tropa, quando o pai sonhava para ele uma grande carreira no exército francês


Lisboa > Museu Militar >  15 de Abril de 2010  > 
 Sessão de apresentação do livro Amadu Djaló > A filha e o neto, antes do início da sessão...  [Foto da criança reproduzida com a devida autorização, na altura, da sua mãe e do seu avô].

 O Amadu foi apresentado como um grande contador de histórias, dotado de uma prodigiosa memória, como um homem bom, recto e profundamente religioso, bem como um grande operacional que serviu, com coragem e dedicação o exército colonial português, a partir de 1962,  ano em que fez a sua recruta em Bolama... Promovido a 1º Cabo em 1966, foi sucessivamente graduado em furriel (1970), 2º sargento (1971) e alferes (1973). Na altura, tinha mais uma filha e um filho, a viverem no estrangeiro

Foto: © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu, neste caso  relativas ao período que antecedeu a sua incorporação na tropa portuguesa, no princípio do ano de 1962 (*). Antes disso, o seu pai tinha o sonho de o levar até ao Senegal, onde dois sobrinhos-netos eram militares do exército francês, ambos 2º sargentos. Após consulta a um vidente, passou a sonhar com uma carreira militar brilhante para o filho, coisa que ele na Guiné portuguesa nunca  poderia ambicionar...

Neste segundo excerto, que publicamos abarcando os seus primeiros vinte anos,  podemos  vê-lo como negociante de fruta (que ia comprar, com um primo,  na região de Tombali para depois ir vender no Senegal) e de gado, além de organizador de "festas de despedida de rapariga solteira", nos bairros populares de Bafatá.

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro.

O  nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk". É de relembrar  aqui o "making of" deste livro. Reproduzimos um mail recente que ele nos mandou, aos editores de serviço, no dia 22 do corrente: 

(...) "Boa noite, Caros Camaradas Carlos e Luís: Obrigado pelo excelente trabalho de edição que tem sido feito sobre o livro do Amadú. E naturalmente trazem-me à memória o ano que levou a preparar o livro. Quase todos os dias o Amadú tocava à campainha para mais um dia de trabalho. Almoçava comigo (não era grande garfo, por falta de dentes) e muitas vezes prosseguíamos pela tarde fora até o levar ao comboio em Entre-Campos. Foram uns tempos muito interessantes que me fizeram recuar mais de 40 anos.

Lamentavelmente o negócio não foi devidamente esclarecido entre as partes e julgo que a pressa em levar por diante o projecto (as folhas já tinham passado por mais que uma mão) interferiu com o desentendimento que se seguiu. Mas levámos a peito o projecto e fomos até ao fim, o lançamento do livro. E é sobre esse acontecimento que vos envio algumas fotos que me vieram parar às mãos . Quase todas elas estão identificadas. Obrigado pelo vosso empenho.
Abraço do Virgínio Briote. (...)

.
Os primeiros anos de vida - Parte II:
a juventude antes da tropa, quando o pai sonhava para ele uma grande carreira no exército francês 
 (pp. 26-29)

por Amadu Bailo Djaló



O meu pai tinha dois sobrinhos-netos na Guiné Francesa, que eram militares do Exército Francês, ambos 2º sargentos e ex-combatentes na guerra da Indochina. Depois de três anos de serviço, tiveram direito a três meses de férias. Quando as vieram gozar, um deles, o Aguibo [1], veio a Bafatá visitar a mãe e, nessa ocasião, encontrou-se em nossa casa com o meu pai.

− Aguibo, quando regressares, podes levar o Amadu para o Senegal e deixá-lo em casa do meu sobrinho, o Idrissa Djaló? Ele fica lá até arranjarmos documentos para ele poder ir também para França.

− Sim, tio, não vejo inconveniente.

O meu pai, apesar de eu ter irmãos mais velhos e mais novos, via em mim, algo diferente dos outros. Quando estava com a doença, de que veio a morrer, quis falar comigo, não sei se para me contar algum segredo se para me dar algum conselho, mas eu, infelizmente, não pude ir. 

Na altura, eu já era militar, estava em Bissau, e não me autorizaram a deslocação a Bafatá. Minha mãe pediu que lhe confiasse a conversa que ma transmitia, quando surgisse a oportunidade de estar comigo. Meu pai, doente, não disse nada, não sei porquê, talvez porque a minha mãe, em certas ocasiões,  revelava mais afeição a um dos meus irmãos.

Sempre que podia, o meu pai ia trocando escudos por francos. Às vezes, era eu próprio que os ia trocar a uma loja que fazia câmbios, a Casa Pinheiro. E ia-me informando dessas poupanças.

Dizia-me que não queria que eu fizesse tropa no exército português, pois nunca passaria de cabo. Falava-me disto como se fosse um segredo. Que, em consultas que tinha feito, tinha visto para mim um posto brilhante, com galões, que na Guiné nunca eu viria ter. Que preto não conseguia postos desses na Guiné.

Um rapaz que trabalhava comigo na horta, chamado Abdulai, vinha todos os dias dormir a nossa casa e era o meu companheiro de quarto. Queria acompanhar-me, ir comigo para o Senegal, mas antes queria fazer uma consulta para a viagem e perguntou-me se eu conhecia algum adivinho.

Levei-o ao meu tio-avô Canjura Drame, tio da minha mãe. Era um velho com cerca de 70 anos, muito estimado, procurado por muitas pessoas para consultas. Quando chegámos a casa do meu tio-avô, disse-lhe que o meu companheiro o queria consultar.

Depois de Abdulai lhe entregar 2$50, Canjura juntou os búzios, fechou-os numa mão, passou-lhos para a mão de Abdulai e disse-lhe:

 Pensa aí o que desejas.

O rapaz ficou algum tempo com a mão fechada junto à boca e devolveu-lhos. Mas Canjura, disse:
 Larga-os!

Os búzios espalharam-se na esteira e o meu tio-avô, passado um bocado, perguntou:
 Trata-se de alguma viagem?
 Sim − respondeu Abdulai.

Esta operação do lançamento dos búzios repetiu-se mais duas ou três vezes. Depois, o meu tio-avô, virando-se para Abdulai, disse:
 Olha, vejo que se fores,  vais encontrar muito dinheiro. Agora, eu não estou a ver nenhuma viagem nem nenhuma saída tua.

No fim da consulta o meu tio-avô olhou para mim e perguntou-me para onde eu queria ir.
− Para o Senegal, o Abdulai quer ir comigo.
 O teu pai sabe disso?   perguntou-me o meu tio.
 O meu pai está a tratar da viagem!
 Diz então ao teu pai que veja bem essa viagem. Porque se fores, nunca mais voltarás a ver os teus pais. Quando o teu pai morrer, ninguém te vai substituir em casa e tu és o único herdeiro. A vossa casa vai ser abandonada, vai cair de velha, e os terrenos vão ser ocupados por gente de outra etnia. 

E continuou:
 Tu, Amadu, se não fizeres a viagem, vais ficar com a casa, com os terrenos, com a família à tua beira, mas isso só vai acontecer até um dia. E quando esse dia chegar vais ter que aguentar, porque é o dia em que vais acordar com uma calça, uma camisa e um par de chinelos, mais nada [2]! Quando a camisa se romper, vais querer mudar e não vais ter outra para vestir. Então, a sorte vai outra vez aproximar-se de ti.

Voltámos, eu e o Abdulai, para casa e à noite perguntei ao meu pai se ele tinha feito alguma consulta sobre a minha ida para o Senegal.

 Não, tu fizeste?
 Eu também não, pai.

Não lhe contei nada da conversa com o meu tio-avô. Nesse próprio dia, o meu pai disse que no dia seguinte me diria o resultado, porque ainda ia fazer a consulta.

Desde os meus quinze anos, o meu pai obrigava-me a fazer um tratamento para evitar que alguma coisa má me pudesse atingir no futuro. Era um costume a que alguns pais recorriam para bem dos seus filhos. Um tratamento simples. À noite ao deitar-me e ao levantar-me de manhã, dirigia-me ao quarto do meu pai, despia-me e lavava-me com a água [3], as mãos, os braços até ao cotovelo, a cara e a cabeça e espalhava um pouco pelo corpo e pelos pés. Um tratamento que durava quarenta dias, durante o qual não era permitido ter relações. Eu era muito jovem e não me agradava o tratamento, por isso o meu pai obrigava-me a lavar-me no quarto dele. Vendo a minha cara, às vezes, um pouco contrariada, apontava-me o dedo e dizia:
 Amadu, se soubesses o que tens à tua frente, agradecias-me!

O meu pai falava, às vezes, de uma guerra e que eu iria participar nela. E, quando ele falava nisso, eu pensava numa guerra que se viria a travar na Europa.

Na manhã do dia seguinte, entrei no quarto do meu pai, para me lavar. Quando peguei na garrafa reparei numa grande quantidade de notas de francos, em cima do Alcorão. Abanei a cabeça e disse para mim, que já não ia viajar. O meu pai entrou, nessa altura, no quarto e disse-me:
 Estive a ver aquilo da viagem, ontem à noite. Tu não podes ir, Amadu. És o meu único herdeiro e, se fosses para o Senegal, isto iria ficar ao abandono. Vai morrer um homem de cor clara, que sou eu, e tu és o meu único herdeiro. E finalizou:
 Leva o dinheiro, é teu, guarda-o ou compra o que quiseres, não quero que penses que é por causa do dinheiro que não vais fazer a viagem.

Troquei as notas por escudos, comprei um maço de “Português Suave”, uma caixa de fósforos e o que restou devolvi-o ao meu pai, que não queria aceitar. Mas eu insisti, deixei-lhe o dinheiro em cima da cama.

Nos finais de 1959, o meu primo Ussumane comprou um carro, uma Commer, de caixa aberta, e passámos a negociar laranjas com as populações senegalesas de Ziguinchor. Deslocávamo-nos para sul, ficávamos em Salancaur, cujo régulo era nosso patrício e dali partíamos para comprar a laranja em Guilege, Quebo Sutubá, Mejo, Afiá, enchíamos a Commer e íamos para o Senegal vender a fruta. Este trabalho durou até Abril de 1960.

A incorporação de Janeiro já tinha passado. Tive conhecimento que os meus companheiros, da reunião com o governador, já tinham sido todos incorporados, feito a recruta em Bolama e, depois, escolhidos para condutores. E também soube que, na administração em Bafatá, tinham chamado pelo meu nome.

Terminadas as viagens para Ziguinchor, voltámos ao negócio do gado. Levava uma vida boa, tinha 19 anos, algum dinheiro no bolso e gostava de me divertir. Ia a festas e depois, eu e o meu primo Fuad, começámos a organizá-las, cobrando as entradas. 

Tínhamos uma casa desocupada, que era do meu irmão mais velho, que servia para as nossas festas. Falávamos a dois ou três amigos que sábado ou domingo ia haver baju [4] de sala e eles encarregavam-se de contar a outros e em breve quase toda a Bafatá sabia. Quando queríamos fazer festas de despedida de rapariga solteira, fazíamos uma carta e entregávamo-la no bairro da Ponte Nova e em Nema, onde tínhamos amigos que se encarregavam de avisar as pessoas. Era sempre aos sábados e ia até às madrugadas de domingo, a dançar e a comer. Passou-se assim o ano de 1960.
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Notas do autor (Amadu Djaló) e/ou do editor literário ("copydesk") (Virgínio Briote)

[1] Aguibo Djaló já morreu. O irmão, Tchana Djaló, seguiu a carreira militar até atingir o posto de Coronel. Foi piloto de aviões, reformou-se e enveredou pela carreira política, chegando a ser Ministro da Agricultura da República da Guiné-Conakry.

[2] Durante dois dias seguidos, em 1979, não tive comida em minha casa, para os meus cinco filhos, a minha mãe, as minhas duas mulheres e para mim próprio. Recordo que no terceiro dia fui até ao mercado, encontrar-me com dois antigos companheiros de infância. Um tinha um bar e o outro uma banca com artigos diversos. Quando chegou o meio-dia, as mulheres trouxeram-lhes os almoços. Que tinha comido bem, foi assim que respondi ao convite deles. Se não havia comida em casa, também não tinha direito a comer, dizia para mim. Levantei-me e fui embora dali. Para passar o tempo dirigi-me a casa de um amigo, Suleimane, que era comandante do PAIGC. Quando entrei, Suleimane disse que lhe tinham oferecido tanto cuscuz, que ele sozinho não conseguia comer. Suleimane, não me apetece, há três dias que não tenho nada para dar de comer em casa. Amadu, se queres ter alguma coisa para dar, tens que comer aqui, respondeu o meu amigo. Depois de lhe fazer companhia, Suleimane repartiu comigo um saco de arroz, 25 quilos para cada um, e ainda me passou para as mãos 500 escudos. Fui ao mercado, gastei pouco mais de 50 escudos em peixe, óleo de palma e cebolas, e fui para casa.

[3] Consiste em escrever, numa tábua de madeira, um versículo do Alcorão e depois lavar as letras com água. Depois da lavagem a água passa a designar-se por “Nassi”. Perfumada com algumas gotas, é metida numa garrafa e tapada. É essa água que é utilizada nos tratamentos do jovem.

[4] Baile.

[Seleção / revisão / fixação de texto / subtítulos / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. ]
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terça-feira, 25 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23738: (Ex)citações (418): Os Consulados da Guiné, a Preparação Militar e a tarimba dos "velhos" (Victor Costa, ex-Fur Mil, At Inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)

1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), com data de 23 de Outubro de 2022:

Amigos e camaradas da Guiné
Nem sempre a minha actividade me dá o tempo necessário para escrever sobre os diversos temas aqui abordados. Esta mensagem está relacionada com o meu comentário de 10 de Julho de 2022, sobre as Directivas do Gen. Bettencourt Rodrigues e o MFA, espero que o debate sobre este tema não esteja fechado.

Guardo na memória uma das minhas primeiras patrulhas de reconhecimento feita num local do rio Mansoa próximo da travessia de João Landim durante a noite com o objectivo de verificar se havia movimento do IN.



Os Consulados da Guiné, a Preparação Militar e a tarimba dos "velhos"

Partimos ao anoitecer no fim de Março de 1974, a fim de realizar uma patrulha de reconhecimento e verificar se havia movimento nas proximidades da travessia do rio. As nossas armas eram apenas as G3 e carregadores. O condutor do Unimog levou-nos até ao fim duma picada e aí nos deixou.

Ele voltou para o Quartel e nós iniciámos a patrulha pela mata até chegar a uma bolanha, conheço bem este tipo de terrenos, cresci junto e exerço a actividade de Aquacultura Marinha no Estuário do Rio Mondego.

Sirvo-me da proteção duma maracha coberta de vegetação meio-seca, (pequenos muros de terra), que corriam na direção do Rio, estávamos na época seca e o terreno encontra-se seco e duro, eu ia à frente da secção a visibilidade era boa e a progressão decorria sem dificuldade, mandei aumentar a distância entre nós e paramos algumas vezes durante o percurso para escutar sons que viessem do rio.

Ao chegar ao aluvião brilhante constatei que tinha chegado à praia (sapal) na zona de influência das marés, estava baixa-mar e era bem visível a água turva do rio e a praia, não avancei mais. O nosso peso podia dificultar muito os nossos movimentos se o aluvião não fosse compacto, por isso continuamos a nossa progressão pelo terreno seco ao longo da margem, até ao nosso objectivo.

Procurei um local seguro e ali ficamos umas horas protegidos e envoltos pela vegetação, a vigiar a praia e as águas do rio procurando não fazer movimentos. Era uma noite de luar e a visibilidade era boa. Tinham já passado umas horas e não vimos quaisquer movimentações de pessoas, decidi iniciar o regresso, para ir ao encontro do Unimog.

Depois de sairmos da bolanha voltamos a entrar na mata, vi um mangueiro e uma pequena clareira e reconheci que já tínhamos passado ali no início da missão, estávamos perto do ponto de reunião. O mangueiro pareceu-me um bom local, mandei o pessoal aproximar-se do tronco da árvore e aguardar.

O Soldado Silva tinha à data mais de 26 anos e era o mais velho da Secção, era um militar experiente, chamou-me à parte e perguntou-me se iríamos continuar naquele local e como eu confirmei, comentou: - Olhe que não me parece um sítio bom, se aparece um turra com um RPG e faz pontaria ao mangueiro, pode lixar-nos! - E com o dedo indicador apontou para a malta junto ao grosso tronco do mangueiro e continuou, olhe que nós estamos no fim da Comissão, o nosso último morto foi no dia 7 de Janeiro deste ano e eu quero regressar a casa.

Bati na real, estava a receber uma lição dum soldado e ainda mais, nunca tinha ouvido falar nem conhecia o RPG, não pensei duas vezes, o mais sensato era ouvir o que o "velho" dizia e seguir o seu conselho, ia arriscar para quê? Assim foi, continuamos dentro da mata, fizemos o reconhecimento do local fomos aguardar próximo do ponto de reunião, para escutar o som da chegada do Unimog, que chegou quase ao romper do dia.

Como era possível nunca ter ouvido falar de RPG nem me ter passado pela cabeça aquela forma de utilização. Aquilo para os "velhos" era rotina, uma coisa simples e banal, para mim foi aprender e começar a pedir a sua opinião. Assim se formou um grupo coeso, tudo o que eles precisavam eu procurava resolver e tudo o que eu pedia era feito, minha integração foi tão simples, que passado umas seis semanas a CCaç 4541/72 elegeu-me para a delegação do MFA.

As bolanhas podem ser cultivadas e nós devíamos conhecer e ter presente que a guerra obrigou algumas populações ao abandono das culturas de muitos destes terrenos, em alguns locais desenvolveu-se um sentimento hostil, a maioria das NT nem ligava a isto e por isso uma simples travessia podia pôr-nos numa posição de desvantagem perante o IN.

Existe uma fotografia demonstrativa, no Blogue, do que parece ser um pelotão de homens com água pela cintura a atravessar uma bolanha rodeados de plantas aquáticas, que me parece no mínimo insensato, mas é também um desafio ao heroísmo (tangente à loucura) que se enquadra no livro "homens, espadas e colhões", que Rainer Daehnhardt descreveu sobre a coragem dos nossos antepassados.

A instrução de tiro instintivo é muito importante desde que os instruendos tenham aptidão para isso. Dominar uma arma e o tiro instintivo torna-nos mais confiantes e seguros, mas não o conseguimos sem treinar bastante e gastar muitas munições, o tiro instintivo na guerra não é o suficiente mas ajuda muito, eu dominava essa técnica.

Eu não conhecia as Directivas do Com-Chefe Bettencourt Rodrigues e por isso ver escrito preto no branco "Um cartucho por homem serve para detectar um mau atirador", conhecer a realidade dos factos e não ver uma única palavra escrita sobre a má alimentação, os seiscentos escudos por mês que as praças recebiam, a insuficiente preparação militar das NT, desde praças, sargentos e oficiais milicianos, o livro do combatente - patrulhas - o desconhecimento sobre o terreno da Guiné e a sua ideia que a carne para canhão continuava disponível para tudo, incluindo resistir até à exaustão e deixar cair a Guiné, mas nunca negociar com o PAIGC, foi uma desilusão ler estas Directivas e a sua visão da Guerra.

Não podemos no entanto esquecer que este problema era do conhecimento dos militares que compunham o estado embrionário do MFA, também nunca foi uma prioridade para o MFA. A seguir ao 25 de Abril, havia uma vontade da tropa regressar e quanto mais depressa melhor, o TCoronel Almeida Bruno deslocou-se a Bissau em representação do MFA no dia 7 de Maio de 1974 para promover a reestruturação e apelar à preservação da disciplina e da hierarquia das FA como consta da 1.ª pág. do BI do MFA n.º 1 na Guiné.

Essas decisões foram reforçadas pela Circular n.º 1703 da 2.ª Rep do EME e do Com-Chefe das FA da Guiné de 28 de Maio de 1974, também publicada aqui no Blogue, com as negociações de paz a decorrerem, a disciplina e a hierarquia eram mais importantes do que nunca, só um exército forte e coeso pode fazer uma boa negociação.

Sabendo disto alguns oficiais do MFA preferiram fazer política, Otelo Saraiva de Carvalho admitiu as fragilidades do seu pensamento político ao declarar em (os dias loucos do PREC, pág. 324 José P. Castanheira) "Faltou-me estrutura política que me podia ter possibilitado, desde o início ser o líder da Revolução, se tivesse cultura livresca, podia ser o Fidel Castro da Europa" e quantos membros do MFA quiseram ser os líderes da revolução? Não sabemos, o que sabemos é que foram todos para a Academia para seguir uma carreira militar, mas alguns mudaram de opinião, quiseram ser também revolucionários e nunca tiveram a coragem de assumir que estiveram perto lançar o povo numa guerra civil. Ainda bem que não estive sob as suas ordens, porque tinha que sujeitar-me a ver mais um livro publicado cheio de boas intenções e com a sua opinião sobre a sua verdade dos factos.

Tinha apenas 22 anos, mas percebi perfeitamente o que se passava em Bissau. Apenas um pequeno número de elementos do MFA tomava as decisões, mesmo assim sujeitas à direção do "comité central" de Lisboa, a maioria eram figurantes como eu , o que aconteceu às NT africanas, não devia ter acontecido e o MFA é o único responsável por não saber estar à altura da situação.

Eu nunca precisei do RDM para ser respeitado e exercer a disciplina, mas devo dizer àqueles que à data estavam a 4.000 km de distância que gostavam de ler o RDM e tresler uns Boletins e sabiam de tudo, que a única vez que obriguei um Superior a cumprir com aquilo a que ele estava obrigado, foi precisamente por causa de documentos do MFA e apenas precisei de levantar o braço, acenar um papel com a mão direita e o aviso e, passadas 48 horas, os documentos estavam na minha mão e o problema resolvido.

Em anexo:
Duas fotografias do Rio Mansoa e arredores de João Landim.
Cópia da capa e contracapa do livro de Instrução do Combatente-Patrulhas.
Cópia da capa do livro "Os dias loucos do PREC"- Ad. Gomes e José P. Castanheira.
Cópia da capa e contra capa do livro de Rainer Daehnhardt.
Cópia do papel que exibi na mão direita a um superior.
Cultura de amendoim
Travessia em João Landim
Capa e contra-capa do livro de Instrução do Combatente
Capa do livro "Os dias loucos do PREC"- Adelino Gomes e José Pedro Castanheira
Capa e contra-capa do livro de Rainer Daehnhardt
Papel que exibi na mão direita a um superior

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur Mil At Inf

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Nota do editor

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Guiné 61/74 - P23737: Os nossos seres, saberes e lazeres (535): Trabalhos de pintura da autoria de Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (6)



1. Publicamos hoje mais cinco trabalhos de pintura de autoria do nosso camarada Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, 1968/70), enviados ao nosso blogue em 19 de Outubro de 2022,  que estamos a mostrar na série "Os nossos seres, saberes e lazeres".



Trabalhos em acrílico sobre papel 30x42
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Notas do editor:

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