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segunda-feira, 24 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26609: VI Viagem a Timor Leste: 2025 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II: de 6 a 20 de março: um país onde se respeita o katuas (velhote), mais do que o malae (branco) e o amu (padre)


Timor Leste > Liquicá > Manatti > Boebau > Escola São Francisco de Assiz (ESFA) > O 7º aniversário foi celebrado este sábado, dia 22 de março...  Houve muita alegria e uma grande surpresa que o João Crisóstomo já partilhou connosco. Mas deixemos a  feliz notícia para a próxima crónica do Rui ... O Rui merece, a ASTIL merece, os meninos de Manatti Boebau merecem...

Portugueses e timorenses de Liquiçá construiram uma escola, esperam agora, ao fim de 7 anos, que o Estado timoerense pague ao menos os professores...Mas quem quer ir trabalhar para a Manatti/Boebau na montanha, a 5/6 horas de Dilí na monção ?


Foto (e legendagem):  © Rui Chamusco (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. O Rui  Chamusco é membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio de 2024. Natural da Malcata, Sabugal, vive na Lourinhã onde durante cerca de 4 décadas foi professor de música no ensino secundário. É um dos cofundadores e dirigentes da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015, com sede em Coimbra, com outros amigos, o luso-timorense Gaspar Sobral e a  malcatense  Glória Sobral.

É uma grande história de amizade e  solidariedade. Em Timor (onde, com esta, já foi seis vezes, desde 2016), o Rui continua a  dedicar-se de alma e coração aos projetos que a ASTIL tem lá desenvolvido, nas montanhas de Liquiçá, onde estão as raízes da  família Sobral, e nomeadamente a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em Manati / Boebau, município de Liquiçá, que no dia 19 de março de 2025 celebrou o seu 7º aniversário. (Em rigor, foi anteontem, sábado, dia 22.)

Em Dili ele costuma ficar em Ailok Laran, bairro dos arredores, na casa do Eustáquio (alcunha do João Moniz) , irmão (mais novo) do Gaspar Sobral. É tratado como tio ou pai. Ou malae (branco) e agora, mais recentemente, por katuas (velhote), à medida que os 80 anos começam a pesar. Mas, claro, ninguém lhos dá... em Portugal. Em Timor, um país extremamente jovem, quem vai para os  80 é um katuas (velhote, mas respeitado). 


VI Viagem a Timor Leste: 2025 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II: de 6 a  20 de março: um país onde se respeita o katuas (velhote), mais do que o malae (branco) e o amu (padre)


06.03. 2025,  quinta – Reminicências…


Ontem à tarde vi crianças, a Adobe e a Felismina apanhando flores aqui, no quintal do Eustáquio. Curioso, imediatamente perguntei à Adobe: 
Para que são as flores?” E a Adobe respondeu-me: “Pra levar à missa de amanhã, que será também por intenção da mãe”. 

Recordo que a mãe Aurora faleceu inesperadamente vai a fazer dois anos em 19 de Julho. E depois perguntou: 

– O pai Rui também quer ir?

–  Sim, eu também vou. Quero ver…

 – Então, amanhã às 6 horas vamos, por que a missa é às 6.30h. 

E pronto. Toca a levantar cedo para não falhar. A Adobe, a Felismina e eu, katuas (velhote) lá vamos andando, a pé, durante 15 minutos rumo à igreja do seminário, onde vai ser celebrada a missa. Reconheço que se eu não fora, o caminho teria sido feito em menos tempo, pois estas duas moçoilas são duas autênticas gazelas. Aquelas horas, já com tanta gente a circular, aqui é assim, o malai (branco) era o alvo das atenções. Algumas pessoas perguntavam à Adobe se eu era amu (padre). E
faziam cumprimentos de reverência. Já na capela repleta de participantes, sendo mais de metade seminaristas e a outra parte familiares das pessoas de quem foram nomeadas as intenções, rezavam-se as laudes em português, enquanto, suponho que um seminarista, recolhia as cestas com as flores e os envelopes com o nome e a esmola do defunto. 

Então foi uma celebração “sui generis”: laudes em português, ritual da missa em inglês, homilia em tétum, e cânticos em tétum e em português. E pronto.

 Mais uma vivência que me traz reminiscências dos tempos passados em seminário, e um embarramento com a vida desta gente, com os seus valores, com o seu modo de ser. 

De regresso a casa, repetem-se as reverências, as saudações, talvez porque com diz a Adobe, muitos pensam que eu sou amu.

08.03.2025, sábado – Sobe a montanha, e verás…

Conforme a nossa promessa, aqui vamos nós buscar as irmãs R.J.M. que vivem em Casait, para lhes irmos mostrar a ESFA (Escola São Francisco de Assis) e o povo de Boebau/Manati. 

Esta viagem é sempre uma aventura, devido às dificuldades do caminho e à imprevisibilidade da chuva. Por isso, quem se disponibiliza para tal tem de contar com imprevistos e alguns sustos, dos quais só fica livre quando chega a casa. 

Mas como o condutor nos merece toda a confiança (eu direi que conhece todos os buracos do caminho), com certeza que havemos de chegar a bom porto. E passo a passo, quilómetro a quilómetro, lá se fez o caminho. 

Como diria a professora Cristina Castilho a primeira vez que visitou Boebau, “tudo vale a pena quando a paisagem que avistamos nos enche a alma!”

Depois de dar-mos a conhecer a escola e a residência dos professores às irmãs visitantes, seguiu-se uma eucaristia celebrada pelo frei Luen, um capuchinho que todos os fins de semana percorre na sua mota aqueles montes e vales para garantir a estes povos (abandonados) alguma assistência religiosa. Houve logo uma grande empatia devido a ideal comum (franciscanos capuchinhos), assim como com todo o povo que participava. 

Regressamos logo que possível com receio da chuva, sentindo que os objetivos da visita foram cumpridos. Agora, ficamos à espera da decisão favorável ao nosso pedido, na certeza de que “quem espera sempre alcança”.

09.03.2025, domingo – A caminho do “calvário”…

Se há estradas (caminhos) esburacadas, mal tratadas, enlameadas, apertadas, sobrelotadas e quantas outras coisas mais, o caminho para Ailok Laran, onde eu passo grande parte do tempo das minhas estadias em Timor Leste. Brada aos céus. 

A partir do mercado de Perunas é uma desgraça, e é assim desde a minha primeira estadia em 2016. Como é possível que, mesmo às portas de Dili a capital, haja um cartaz de visitas como este? 

Tanta circulação de pessoas, motores (motorizadas), carros, carretas, microletes, camionetas, vendedores num caos impressionante, onde é mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que sair ileso desta enorme confusão. 

E nós que fazemos este caminho algumas vezes por dia, chegamos a casa desenculatrados, com o corpo feito num molho. Em dias de chuva, os veículos a motor mais parecem saltimbancos que, em dias de chuva se transformam em barcos navegando ao sabor das ondas. Sim, isto mais parece o “cabo das tormentas”. 

Até quando estas ruas, estes becos, estas gentes terão de esperar por melhores condições de circulação? O que é mais incompreensível é que por aqui até circula gente importante, com responsabilidades no governo da nação. Até parece que estão contentes com a situação. Nem sei que diga. Eu…Não!

12.03.2025, quarta 
– Atividade musical na escola CAFE de Liquiçá

Já estava combinado com a professora Teresa Costa, que é a coordenadora do CAFE  (Centro de Aprendizagem e Formação Escolar) de Liquiçá. Apesar de já estar aposentado há 16 anos, o bichinho da docência, de ensinar e de aprender com os alunos continua a mexer cá dentro.

E como tenho alguma aptidão para o ensino da música, então é fácil encontrar campo de trabalho seja aonde for. Não foi esta a primeira atividade musical no CAFE de Liquiçá. Já em anos anteriores me ofereci e concretizei atividades musicais nesta escola. 

Claro que a professora Teresa, à semelhança dos coordenadores anteriores, aproveitou logo, e muito bem, a minha disponibilidade, partindo de imediato para o agendamento do dia, horas e grupo. 

Mais a mais, há um grupo de alunos que tiveram durante dois anos aulas de Educação Musical, mas que já não tem porque nenhum professor(a) foi aqui colocado este ano pelo ministério de educação de Portugal. Por isso faz todo o sentido aproveitar os recursos já existentes para desenvolver um pouquinho mais as capacidades musicais destes alunos.

Durante mais ou menos duas horas, interpretamos, com a voz, guitarras, lautas e acordeão canções escolhidas pelos participantes e por mim que foram envolvendo alunos e alguns professores de uma forma lúdica e agradável. Não foi necessário utilizar o “pau de chuva “ para fazer os ritmos porque o som da chuva que caía, às vezes abundantemente, serviu de base rítmica perfeitamente. 

Os participantes pediram mais, e querem que eu volte lá. Assim
farei, certamente.

13.03.2025, quinta  – O Eustáquio é chamado “à atenção”

Quando esta tarde demos entrada no palácio do governo, O Eustáquio foi chamado pelo guarda (segurança) que nos viu em caminho para lhe dar uma repreensão. 

 – Tens de dar a mão ao senhor katuas (que sou eu) e ajudá-lo a
caminhar. 

É que eu, devido a dores que me têm atormentado sobretudo o pé
esquerdo, vinha coxeando e andando com muita dificuldade. 

É isto que às vezes me comove. Esta gente tem um respeito impressionante pelas pessoas de idade. E eu, deste cliché, já não me livro. Os quase 80 anos não enganam ninguém, e por isso vou usufruindo destas atitudes carinhosas. É bom ser velho/velhinho – Katuas em Timor Leste.


13.03 – Palácio do Governo: encontro com o vice- primeiro ministro

Com a preciosa ajuda dos amigos Professora Cristina Castilho e do Senhor Rui Pacheco, foi marcada para hoje uma audiência com o vice primeiro ministro, sr. Dr. Mariano Assanami Sabino. 

De manhã, em reunião informal no café Aroma, o sr. Rui Pacheco, eu (que também sou Rui), o Eustáquio e o senhor Nuno Almeida (TUTU) que é assessor do vice-primeiro ministro estivemos preparando este encontro que, na melhor das hipóteses seria de 15 a 20 minutos, acabou por ser uma amena conversa de quase duas horas, onde foram apresentados os projetos de solidariedade da Astil em Timor Leste, e em particular a Escola São Francisco de Assis “Paz e Bem” e os problemas que atualmente enfrentamos.

 Das três hipóteses apresentadas pelo senhor vice primeiro ministro com possível apoio do Estado, ressalto a que mais nos convém nos convém: uma parceria com o Estado, em que a gestão da escola seja da responsabilidade da AstilMB  (Manatti / Boebau) e os salários dos professores pagos por um dos organismos do Estado (ministério da educação ou ministério dos assuntos sociais). 

A ver vamos, pois ainda há muito caminho a fazer. Mas temos a esperança de que o problema vai ser resolvido. Encontramos muito boa vontade nesta equipa deste ministério. 

Para além do bom acolhimento que nos proporcionaram, demonstraram que eram bem conhecedores da situação, com sensibilidade e vontade de nos ajudarem. Reconhecem e agradecem a nossa solidariedade e tudo o que temos feito por Timor, particularmente os benefícios que temos proporcionado às crianças esquecidas das montanhas de Boebau e Manati. 

Saímos deste encontro muito bem impressionados, e fazemos votos para que esta relação continue…


(...) 14.03,2025, sexta – “Ai, costa,  custa!...”

O Eustáquio já me tinha chamado a atenção: 

–  Tiu, é preciso mudar o filtro e o óleo do carro (pick up). Pode?... 

Pois, tem que poder. E vai daí lá se foi comprar o óleo e o filtro. Mas, devido ao estado dos pneus já desgastados, e que na última viagem que fizemos a Boebau deram alguns sustos, achamos que seria logo melhor substituir os sapatos (pneus). Depois de saber lá dos preços nas lojas  da especialidade, fez-se a compra e a substituição. 

Agora está em condições de subir e descer as montanhas, de nos servir com alegria. Mais uma conta a suportar mas, com maior segurança, é mais fácil fazer o caminho.

17.03.2025, segunda– Afinal, quem manda aqui?...

Estou a falar dos galináceos, que todos os dias convivem connosco, aqui em Ailoik Laran. Já tinha verificado que em todos os rituais destas criaturas, há sempre alguém que comanda, seja de manhã seja à tarde.

Como norma há sempre uma árvore que faz de poleiro, e a subida e a descida da mesma respeita sempre a ordem do rei da capoeira: primeiro os mais pequenos e os mais débeis, seguindo-se depois os voos ascendentes ou descendentes, alguns com mais de cinco metros, de toda a tribo. O capataz, é um galo bonito e altaneiro, muito parecido com o Xico (o galo que há dois anos o sr. Francisco me ofereceu) e que o Eustáquio diz que “parece” ser o filho do galo do Tiu Rui.

Pois, o outro que já foi para os anjinhos, que cantava tão bem (creio que
morreu de tanto cantar). Se assim é, ainda bem, “porque quem sai aos seus não degenera”. O Xico filho também canta que nem um desalmado. Tem uma posse interessante: antes de cantar bate as asas, põe-se firme, estica bem o pescoço, e aí vai o seu canto potente que se faz ouvir por toda a redondeza. Às vezes há outros galos que lhe respondem, mas eu penso que ele pensa ser sempre o maior solista que por aqui anda, até ao dia que, tal como o pai galo, morra a cantar ou que alguém se lembre de lhe “fazer a folha”.

18.03. 2025, terça – Há males que vêm por bem…

Desde há oito dias que me queixo do pé esquerdo. Tentei erradicar a dor, que quando ando me atormenta e me faz coxear, mas a automedicação que tenho tomado não tem conseguido debelar o problema. A quem por nós passa. Hoje tive que ir ao médico(a) da MDC (Medical Dili Center), que depois de verificar a situação, chegou à conclusão (não definitiva) que será o ácido úrico, receitando-me medicamentos para o combater. Com uma recomendação: 

– Se isso não passar volte cá.

Esta é a parte mais chata. O malae katuas(velhote) a coxear devido às dores, a causar pena e dó(compaixão) a quem por nós passa. Por outro lado, é impressionante como toda a gente quer ajudar. Só falta levarem-me ao colo, quais samaritanos.

19.03. 2023, quarta – A Escola São francisco de Assis “Paz e Bem” em Boebau / Manati

Faz hoje 7 anos que a ESFA foi inaugurada, com pompa e circunstância. E desde então para cá , contamos sete anos de vida, de caminho, de luta e de trabalho para que a escola seja um centro de educação e de aprendizagem, ao serviço das pessoas desta região, mas sobretudo das centenas de crianças que por aqui vivem. 

Quantas alegrias, penas, dores e cansaço nos têm acompanhado.  

Quantas esperanças e desilusões, quantas vitórias e derrotas, quantos sóis, quantas luas, quantos quimeras… 

Quantas entidades, quantas pessoas, quantos amigos e amigas já a visitaram, e alguns(umas) já ofereceram o seu trabalho voluntário. 

Obrigado,  sobretudo à ASTIL de Portugal que tudo tem feito para o funcionamento da ESFA, e a todos os que têm contribuído para a concretização deste projeto de solidariedade. 

Vamos continuar a lutar para que os nossos desejos se concretizem, nomeadamente a colocação e o pagamento de salários aos professores que lecionam nesta escola. Sem isso, não há continuidade possível. E nós todos queremos que a escola não encerre, por respeito às crianças e aos habitantes destes povos. 

Mais até, queremos que a Escola São Francisco de Assis “Paz e Bem” seja um centro ou um polo de desenvolvimento que desenvolve a escolaridade, a cultura e o saber destas gentes através de ateliês cursos que vão de encontro às suas necessidades. O povo do interior de Timor, como o de qualquer outra nação do mundo, é esquecido dos poderes centrais. E tem de haver alguém, pessoas ou instituições, que lhe dê a mão, que o valorize e que o dê a conhecer.

Por conveniência e porque hoje é quarta feira, a festa do 7º aniversário terá lugar no próximo sábado, dia 22, sábado.

20.03.2025, quinta – Guerra aos mosquitos!

Estas criaturas de Deus parece que só existem para nos chatear. E então, estes mosquitos timorenses quando lhes “cheira” a malae, toca a atacar. Uns são quase invisíveis, e pouco ou nada há a fazer, quando nos apercebemos já têm o trabalho feito. Pouco importa que nós, cheios de raiva, disparemos uma palmada no sítio onde eles estiverem (ou não porque já voaram). 

Outros um pouco maiores como as melgas, avisam através de som irritante (ultrassom) que vão aterrar. De sobre aviso lá nos preparamos até que ele poise, para de seguida contra atacarmos. Quase sempre as nossas armas são as mãos, que disparamos com toda a força. Algumas vezes acertamos no bicho inimigo, que literalmente fica esborrachado, e exibimos aos outros o troféu. 

Outras vezes acontece o insólito: não acertamos no alvo, ficando o bicho a rir-se da nossa aselhice. Por essas e por outras razões é que, já por três vezes, ia ficando sem os meus óculos. 

A primeira vez foi uma criança de dois anos, filho da Assun e do Abe, que não sei o que viu na minha cara, me manda um chapada que as cangalhas voaram logo para o chão. Toma que já levas!... A segunda vez foi o Eustáquio, que me mandou ficar quieto, para de seguida me enfiar uma palmada na testa. Vitória! O Eustáquio matou o bicho melga, e fazendo prova do mesmo exibiu o esqueleto e o sangue de que ele se alimentou. A terceira vez, fui eu próprio que dei uma chapada em mim mesmo sem nada conseguir, pois os óculos e o mosquito voaram para onde quiseram. 

Tenho que pedir ajuda a Don Quixote e a Sancho Pança para me ajudarem a vencer esta guerra…

(Revisão / fixação de texto: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26570: VI Viagem a Tmor Leste: 2025 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I: de 22 de fevereiro a 4 de março: a importância ainda de ser "amu" (padre), na terra do sol nascente

domingo, 23 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26608: Os 50 Anos do 25 de Abril (37): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte III


De acordo com a legenda, esta imagem é a reprodução de um postal de c. 1906 (Fonte: João Loureiro: "A Sociedade Angolana de há 100 anos", pref. António Barreto.  Lisboa: Maisimagem, 2008. pág. 94).


Painel II . "Missão Civilizadora" e "Progresso" > 3. O trabalho indígena: modalidades, violência e denúncias.


Exposição > “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. 
O Colonialismo Português em África: 
Mitos e Realidades”

 Lisboa, Belém,
30 out 2024 / 2 nov 2025


1. Continuamos a "visita resumida"  desta exposição, que pode ser vista até 2 de novembro de 2025. (Há visitas guiadas, tem que se reservar.)

Requer "tempo, vagar e... distanciamento crítico"! ... Merece pelo menos duas visitas, para se lidar com tanta informação. 

Para já é uma oportunidade única para se conhecer uma tão vasta e rica  documentação fotográfica, que ilustra os diferentes painéis, e que é proveniente de diversos arquivos, públicos e privados, incluindo o Arquivo Histórico-Militar, o Arquivo Histórico Ultramarino e o Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Sem esquecer a notável coleção de postais antigos do dr. João Loureiro (ou João M. Loureiro:): uma das suas obras, "Postais Antigos da Guiné", já foi aqui, oportunamente objeto de recensão em quatro postes do nosso crítico literário, Mário Beja Santos. "Uma relíquia", este trabalho, de um grande colecionador que percebeu o valor iconográfico de um simples bilhete-postal... 

De resto, desde cedo, no blogue, fizemos um esforço por recolher e salvaguardar os nossos velhos postais ilustrados (temos meia centena de referências).

Por outro lado, estamos a falar de um período da nossa história (e da história africana) mal conhecido de todos nós. antigos combatentes: grosso modo, vai do último quartel do séc. XIX até à descolonização.

Quem é que no nosso tempo de escola (incluindo o liceu), nos anos 50/60,  ouviu falar em "trabalho forçado", "imposto de palhota". "assimilados", "colonialismo",   "código do trabalho indígena", "acto colonial", "luso-tropicalismo", "nacionalismo africano", etc. ?!... 

Eu não ouvi, nem me perguntaram nada disso no exame de admissão ao liceu, em 1958... Era lá coisa para uma criança de 10 anos ter que saber!.. Perguntaram-me, isso sim, os nomes e cognomes de todos os reis de Portugal... (Felizmente, sabia-os, na ponta da língua!)

Nós já somos do tempo, em que as "colónias" passaram a "províncias"... Mas não sabíamos que só em 1962 fora"abolido legalmente o trabalho forçado", era então ministro do ultramar  o professor Adriano Moreira (1922-2022)... Tinha eu 15 anos.  

O  objetivo desta exposição pretende ser  "pedagógico e didático",  resultando da colaboração de 3 dezenas de especialistas mas não deixando de ter o cunho muito pessoal, profissional, metodológico e teórico-ideológico da sua curadora, Isabel Castro Henriques (vd. aqui a entrevista que deu à RTP África). 

A exposição é organizada pelo CEsA Centro de Estudos sobre África e Desenvolvimento (do ISEG / UL)  e pelo Museu Nacional de Etnologia, com curadoria da historiadora Isabel Castro Henriques. Integra as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.


2. Recorde-se que, de acordo com a folha de sala, a "narrativa da exposição" centra-se em dois  eixos:

(i) um primeiro eixo baseado  "em painéis temáticos, nos quais texto e imagem se articulam, pondo em evidência as linhas de força do colonialismo português dos séculos XIX e XX, e dando a palavra ao conhecimento histórico"; 

(ii) e um  segundo eixo que "pretende 'fazer falar' as   [139] obras de arte africanas", quase todas do espólio do Museu Nacional de Etnologia (que, acrescente-se,  não é um museu do colonialismo...)  como "evidências materiais do pensamento e da cultura africanas, evidenciando a complexidade organizativa dos sistemas sociais e culturais destas sociedades, permitindo mostrar a criatividade, a vitalidade, a sabedoria, a racionalidade, a diversidade identitária e as competências africanas e contribuindo para evidenciar e desconstruir a natureza falsificadora dos mitos coloniais portugueses."

Ainda não visitámos a exposição toda que, se não erramos, tem oito painéis (sendo o último dedicado à descolonização e o legado colonial).



3. O segundo painel  (*) tem como subtemas os seguintes (pelo menos, os que eu registei na minha máquina fotográfica), e que são profusamente ilustrados com imagens da época (mais de Angola, Moçambique e São Tomé, e muito menos da Guiné, que não era uma "colónia de povoamento"):

(i) a criação do "indígena" e o "grémio da civilização";

(ii) a obra civilizadora da Igreja: evangelização e instrução:

(iii) o trabalho indígena: modalidades, violência e denúncias;

(iv) o imposto indígena: caracterização e significado histórico.

Seguem-se alguns conteúdos (reproduzidos aqui com a devida vénia, e a pensar sobretudo nos nossos leitores fora de Lisboa que dificilmente terão oportunidade de se deslocar ao Museu Nacional de Etnologia, no Restelo, de entrada gratuita para os antigos combatentes)... 

A exposição é muito rica do ponto de vista documental, com se pode aferir pela pequena amostra que apresentamos (seleção de c. de 220 imagens que fiz de metade dos painéis):



























"Sacralização da vida: objetos e rituais" (Uma das diversas vitrines com objetos de arte africana , na sua maioria espólio do Museu Nacional de Etonologia)






















(Imagens obtidas da exposição "in situ",  sem flash, com a devida vénia, e aqui reproduzidas com propósito meramente informativo...)


(Fotos, seleção, edição: LG)

(Continua)

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Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores:


15 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26499: Os 50 Anos do 25 de Abril (36): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte II

sábado, 22 de março de 2025

Guiné 61/74 – P26607: (Ex)citações (530): Guiné, da escravatura à carne para canhão. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Guiné, da escravatura à carne para canhão 


Camaradas,

Os tempos, que por ora atravessamos, remete-nos para outras eras em que a escravatura eram “dotes” de senhores cuja presunção os remetia para a escravidão de seres humanos, sobretudo de gentes de linhagem negra.

Camaradas, sabeis que essas jactancias pressuponham poder absoluto sobre o mundo que certamente os rodeava, logo, o homem e as mulheres negras eram simplesmente matéria que rendiam dinheiro, por isso cada qual valia bastardos cruzados e os “magnatas” não olhavam a meios para atingir os seus fins.

Mais tarde, em pleno século XX, nós não fomos escravos como aqueles de antigamente, mas sim jovens militares atirados para as frentes de uma guerra colonial que fora demasiado cruel.

Deixo um pequeno texto do meu livro – UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ-BISSAU 1973/1974 – Edições Colibri, Lisboa

Guiné, da escravatura à carne para canhão

Escravos e combatentes


Imagem retirada da internet

Numa apurada caminhada sobre a problemática dos antigos escravos na Guiné, seres humanos que sofreram as amarguras da crueldade de uma atroz escravidão por parte de genuínos patrões de “carne para virtuais fregueses”, pessoas sem escrúpulos, maliciosos, miseravelmente déspotas e que usufruíam da sua condição senhorial para atingir infinitos objetivos, servindo-se, simultaneamente, das obsequiosas mulheres para os prazeres sexuais, eis o retrato de uma sociedade onde os poderosos de outrora ditavam lei.

Investiguei o tema escravos numa Guiné que todos conhecemos. Andei por trilhos, agora desarmadilhados, e deparei-me com a fundação de uma tal Companhia do Cacheu que no século XVII terá sido determinante para a comercialização de escravos. Naquele local controlava-se, olho por olho, o negócio. As caravelas portuguesas levavam tecidos, barras de ferro, muitas bugigangas, álcool, de entre outras mordomias, e aí executavam a troca direta, recebendo escravos, pimenta de entre outros objetos de valor.

Para se efetuar o respetivo comércio havia os intermediários que eram, naturalmente, os armadores e os régulos. Existiam, também, os lançados, homens brancos, sendo que alguns deles tinham a origem judia que interferiam, à socapa, no tráfico e que atuavam no negócio à revelia das autoridades ali existentes.

A curiosidade desta demanda remete-nos para as queixas que tanto os capitães-mores como os comerciantes mais fortes, que partilhavam os dividendos do comércio de escravos, lançavam àqueles que, para eles, atuavam à margem das regras legais impostas pelas autoridades oficiais.

Este pequeno introito sobre o comércio inicial de escravos no Cacheu, transporta-nos para séculos posteriores, ou seja, para a guerra na Guiné, século XX, na qual fomos atores forçados. A 23 de janeiro de 1963, na região de Tite, iniciaram-se as ações da guerrilha, estendendo-se depois a todo o território, sendo que a luta armada só terminou em 1974, mercê da Revolução dos Cravos, o 25 de Abril.

E se o PAIGC se revelou como o partido da revolução no solo guineense, na Metrópole, Lisboa, a capital do Império, os senhores da guerra enviavam um outro tipo de escravos para o cenário da peleja, os chamados carne para canhão.

Creio, conscientemente, que o termo carne para canhão não é um ímpeto deselegante, e nem tão-pouco o deverá ser. Pelo contrário, ele reflete uma realidade conhecida por todos os camaradas. Isto porque enviar jovens para as frentes de combate com uma arma na mão cujo estatuto era matar para não morrer, significava que os nossos soldados, muitas das vezes, davam o corpo às balas numa pura e simples veracidade que eles, meninos e moços, se apresentavam para os teores da ferocidade da guerra como “miúdos” indomáveis que literalmente resvalavam para a meteórica expressão denominada como carne para canhão.

Se os escravos, vendidos aos lotes para patrões de outros continentes, o europeu nomeadamente, sendo o lote das mulheres melhor taxado, a condição física dos homens passava por monotonizar minuciosas visualizações, isto é, o conhecer da força, a doutrina da composição de toda a massa muscular, as doenças africanas, a saúde dos dentes, vistorias às partes íntimas, de entre outras malazengas, nós, eternos camaradas e antigos combatentes, éramos a tal carne para canhão, onde os aspetos físicos que cada um apresentava pouca ou nenhuma importância teria para uma missão deveras agressiva.

Falamos, e é verdade, de sistemas e de conteúdos completamente diferentes, melhor, de sistemas sob uma ancestral matéria humana conhecida nos séculos XVII e XX, contudo, os elos que unem os antigos combatentes resvalam para restos de uma escravatura que se propagou no tempo num agreste terreno de batalha chamado Guiné.

Este entrosar de realidades observadas, em séculos diametralmente diferentes, volto a referir, é somente o reavivar de histórias passadas, sendo o conflito da Guiné um dado real por todos nós conhecido.

Escravos além de combatentes? Admitamos um pouco que sim! Não fomos “vendidos” em lotes, nem tão-pouco sujeitos a humilhações humanas, ou motivo para notórias vistorias corporais, mas sim atirados sem dó nem piedade para Batalhões, Companhias ou Pelotões onde o fator da morte estava sempre iminente.

Em Gabu fui, tal como muitos dos milhares de camaradas que por lá passaram, mais um elemento onde o fenómeno da escravatura se enraizou em combatentes que tudo fizeram para salvar a pele. Restava o pacato aguardar pelo fim da comissão militar, mas isentos de eventuais marcas de guerra e sobretudo bem vivo.

Factualidades de um tempo sem tempo!



Mulheres seu papel de escravas  
    
Abraços, camaradas
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 

19 de dezembro de 2024 » Guiné 61/74 – P26291: In Memoriam (529): Comandante Almada Contreiras (1941-2024), um antigo camarada que conheceu as terras da Guiné, e um dos militares do 25 de Abr (José Saúde)

 

Guiné 61/74 - P26606: Desaparecido do nosso radar (2): Silvério Dias, o "senhor PIFAS!



A mascote do Programa [de Informação]  das Forças Armadas (PIFAS), da responsabilidade da Repartição de Assuntos Civis e Acção Psicológica. Autor (até à data) desconhecido.  Imagem cedida  pelo nosso camarada Miguel Pessoa, cor pilav ref (ten pilav, Bissalanca, BA 12, 1972/74). 



1. Publicou há dias o Manuel Resende na página do facebook da Magnífica Tabanca da Linha > 6 de março às 17:34 

Caros Magníficos, já procurei em tudo onde podia estar o nosso Magnífico, e não o encontro. 

Alguém sabe dele? 

Mora(va) em Oeiras, o telefone está desligado, já contactei alguém da Biblioteca de Vila Velha de Ródão, onde ele era colaborador e natural, e ninguém sabe dele. 

Silvério Dias

Tinha um blog "Poeta Todos os Dias", desactivado desde finais de 2023. Disse-me ele, "Manel,  publico todos os dias alguma coisa em verso até morrer".

O seu nome é Silvério Pires Dias.

Se alguém souber algo sobre ele, diga.



2. Comentário do editor LG:

O nosso camarada o Silvério Dias, 1º srgt ref, ex-radialista do PIFAS, grão-tabanqueiro nº 651 (*),  é um cso extraordinário de "resistência e resiliência" contra os "males da idade"...

Mas também deixei, infelizmente, de ter notícias dele (**), depois do último convívio da  malta do Pifas no "Páteo Alfacinha", em Lisba, em 9/9/2023, com a presença do general Ramalho Eanes (***).

Tinha então 89 anos completados em 18 de agosto. Ainda me desafiou para aparecer, o que não me foi possível por estar fora de Lisboa. Um das últimas vezes que o vi, erá sido em Oeiras, em 2017.



Oeiras > Galeria-Livraria Municipal Verney > 4 de março de 2017 > 15h00 - 16h30> A antiga equipa que deu voz e alma ao PIFAS: o primeiro sargento Silvério Dias (nosso grã-tabanqueiro nº 651) e a famosa "senhora tenente", sua esposa.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Recorde-se aqui, muito sumariamente,  o  percurso de vida do nosso camarada Silvério Dias: 

(i) nasceu em 19/8/1934,  em Sarnadinha, Vila Velha de Ródão  

(ii) como militar passou pela Índia, Moçambique e Guiné (ex-2º srgt art, CART 1802, Nova Sintra, 1967/69):

(iii) 1º srgt art, locutor do PFA - Programa das Forças Armadas, 'Pifas', Bissau QG/CTIG, 1969/74, onde trabalhou com Ramalho Eanes e Otelo, entre outros; 

(iv) civil, foi delegado de propaganda médica, 1974/76, em Bissau; 

(v) 1º srgt art ref, casado com a "senhora tenente", também do 'Pifas',  vivia em Oeiras até finais de 2023;

(vi) editou, até 26/11/2023,  o  blogue "Poeta Todos Dias"  (criado em 2011 e onde todos os dias, publicava um, dois, três, quatro , cinco ou seis apontamentos poéticos, em geral, quadras populares, sobre temas do quotidiano, e suas memórias de militar);

(vii) teve, até então, cerca de 526,5   mil vizualizações de páginas;

(viii)  apresentou  na Biblioteca Municipal de Vila Velha de Ródão em 23 de março de 2017 o seu livro  de poesia "Neste lugar onde nasci" (2017); 017, o seu livro  de poesia "Neste lugar onde nasci" (2017) (,

(ix) é membro da Tabanca Grande desde 24/3/2014; tem cerca de 3 dezenas de referências no nosso blogue.

Se alguém tiver notícias do Silvéro Dias, que partilhe connosco.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12894: Tabanca Grande (430): Silvério Dias, 1º srgt art ref, o senhor PIFAS, e "poeta todos os dias!...Nove anos de permanência em terras guineenses, incluindo uma comissão na CART 1802 (Nova Sintra, 1967/69)... É agora o grão-tabanqueiro nº 651

(**) Último poste da série > 3 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22168: Desaparecido do nosso radar (1): António Duarte de Paiva, ex-sold cond ambulâncias, HM 241, Bissau, 1968/70

(***) Vd. poste de 9 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24636: Convívios (972): Almoço/Convívio do pessoal do Programa das Forças Armadas da Guiné (PIFAS), hoje, 9 de Setembro de 2023, com a presença do senhor General Ramalho Eanes (João Paulo Diniz)