1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Guiné, da escravatura à carne para canhão
Camaradas,
Os tempos, que por ora atravessamos, remete-nos para outras eras em que a escravatura eram “dotes” de senhores cuja presunção os remetia para a escravidão de seres humanos, sobretudo de gentes de linhagem negra.
Camaradas, sabeis que essas jactancias pressuponham poder absoluto sobre o mundo que certamente os rodeava, logo, o homem e as mulheres negras eram simplesmente matéria que rendiam dinheiro, por isso cada qual valia bastardos cruzados e os “magnatas” não olhavam a meios para atingir os seus fins.
Mais tarde, em pleno século XX, nós não fomos escravos como aqueles de antigamente, mas sim jovens militares atirados para as frentes de uma guerra colonial que fora demasiado cruel.
Deixo um pequeno texto do meu livro – UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ-BISSAU 1973/1974 – Edições Colibri, Lisboa
Guiné, da escravatura à carne para canhão
Escravos e combatentes
Imagem retirada da internet
Numa apurada caminhada sobre a problemática dos antigos escravos na Guiné, seres humanos que sofreram as amarguras da crueldade de uma atroz escravidão por parte de genuínos patrões de “carne para virtuais fregueses”, pessoas sem escrúpulos, maliciosos, miseravelmente déspotas e que usufruíam da sua condição senhorial para atingir infinitos objetivos, servindo-se, simultaneamente, das obsequiosas mulheres para os prazeres sexuais, eis o retrato de uma sociedade onde os poderosos de outrora ditavam lei.
Investiguei o tema escravos numa Guiné que todos conhecemos. Andei por trilhos, agora desarmadilhados, e deparei-me com a fundação de uma tal Companhia do Cacheu que no século XVII terá sido determinante para a comercialização de escravos. Naquele local controlava-se, olho por olho, o negócio. As caravelas portuguesas levavam tecidos, barras de ferro, muitas bugigangas, álcool, de entre outras mordomias, e aí executavam a troca direta, recebendo escravos, pimenta de entre outros objetos de valor.
Para se efetuar o respetivo comércio havia os intermediários que eram, naturalmente, os armadores e os régulos. Existiam, também, os lançados, homens brancos, sendo que alguns deles tinham a origem judia que interferiam, à socapa, no tráfico e que atuavam no negócio à revelia das autoridades ali existentes.
A curiosidade desta demanda remete-nos para as queixas que tanto os capitães-mores como os comerciantes mais fortes, que partilhavam os dividendos do comércio de escravos, lançavam àqueles que, para eles, atuavam à margem das regras legais impostas pelas autoridades oficiais.
Este pequeno introito sobre o comércio inicial de escravos no Cacheu, transporta-nos para séculos posteriores, ou seja, para a guerra na Guiné, século XX, na qual fomos atores forçados. A 23 de janeiro de 1963, na região de Tite, iniciaram-se as ações da guerrilha, estendendo-se depois a todo o território, sendo que a luta armada só terminou em 1974, mercê da Revolução dos Cravos, o 25 de Abril.
E se o PAIGC se revelou como o partido da revolução no solo guineense, na Metrópole, Lisboa, a capital do Império, os senhores da guerra enviavam um outro tipo de escravos para o cenário da peleja, os chamados carne para canhão.
Creio, conscientemente, que o termo carne para canhão não é um ímpeto deselegante, e nem tão-pouco o deverá ser. Pelo contrário, ele reflete uma realidade conhecida por todos os camaradas. Isto porque enviar jovens para as frentes de combate com uma arma na mão cujo estatuto era matar para não morrer, significava que os nossos soldados, muitas das vezes, davam o corpo às balas numa pura e simples veracidade que eles, meninos e moços, se apresentavam para os teores da ferocidade da guerra como “miúdos” indomáveis que literalmente resvalavam para a meteórica expressão denominada como carne para canhão.
Se os escravos, vendidos aos lotes para patrões de outros continentes, o europeu nomeadamente, sendo o lote das mulheres melhor taxado, a condição física dos homens passava por monotonizar minuciosas visualizações, isto é, o conhecer da força, a doutrina da composição de toda a massa muscular, as doenças africanas, a saúde dos dentes, vistorias às partes íntimas, de entre outras malazengas, nós, eternos camaradas e antigos combatentes, éramos a tal carne para canhão, onde os aspetos físicos que cada um apresentava pouca ou nenhuma importância teria para uma missão deveras agressiva.
Falamos, e é verdade, de sistemas e de conteúdos completamente diferentes, melhor, de sistemas sob uma ancestral matéria humana conhecida nos séculos XVII e XX, contudo, os elos que unem os antigos combatentes resvalam para restos de uma escravatura que se propagou no tempo num agreste terreno de batalha chamado Guiné.
Este entrosar de realidades observadas, em séculos diametralmente diferentes, volto a referir, é somente o reavivar de histórias passadas, sendo o conflito da Guiné um dado real por todos nós conhecido.
Escravos além de combatentes? Admitamos um pouco que sim! Não fomos “vendidos” em lotes, nem tão-pouco sujeitos a humilhações humanas, ou motivo para notórias vistorias corporais, mas sim atirados sem dó nem piedade para Batalhões, Companhias ou Pelotões onde o fator da morte estava sempre iminente.
Em Gabu fui, tal como muitos dos milhares de camaradas que por lá passaram, mais um elemento onde o fenómeno da escravatura se enraizou em combatentes que tudo fizeram para salvar a pele. Restava o pacato aguardar pelo fim da comissão militar, mas isentos de eventuais marcas de guerra e sobretudo bem vivo.
Factualidades de um tempo sem tempo!
Mulheres seu papel de escravas
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
Sem comentários:
Enviar um comentário